A história da Fábrica de Chá Gorreana começou com Ermelinda Pacheco Gago da Câmara quando, em 1883, foi fundada. A única fábrica de chá que funcionou em São Miguel (já que durante o século XX existiam cerca de 15) de forma ininterrupta conta também a história de uma família.
Angelina Gago da Câmara, neta de Ermelinda, herda a Gorreana e casa-se com Jaime Hintze, o homem responsável pela construção de uma central hidroelétrica na fábrica. Posteriormente, o filho de ambos, Fernando Hintz, casado com Berta Meirelles, toma a dianteira. No entanto, tendo ficado viúva com apenas 34 anos, é Berta quem continua o legado da família. O casal teve uma única filha: Margarida Hintze, que casa com Hermano Motta.
É aqui que encontramos a geração que gere atualmente a Fábrica de Chá Gorreana: Madalena e Sara Motta são filhas de Margarida Hintze e Hermano Motta. É esta sexta geração que tem em mãos um dos maiores projetos que a ilha de São Miguel conhece, e uma das duas únicas fábricas de chá existentes na Europa.
O AUDIÊNCIA quis saber mais sobre a história desta família e da mais antiga fábrica de chá da Europa. Encontrámo-nos com Madalena Motta que, simpaticamente, nos falou sobre o passado, o presente e o futuro da Gorreana.
Como é que começa a história da Fábrica de Chá Gorreana?
Tudo começou com a minha pentavó, Ermelinda Pacheco Gago da Câmara. Estávamos na época da laranja, a economia de São Miguel era a produção da laranja e houve uma doença que prejudicou esta produção [a chamada “crise da laranja”]. A minha avó era morgada, tinha muitas terras. Desde o ilhéu da Vila Franca até à Gorreana, esta faixa era toda dela. Então, nas suas terras mais altas cultivou o chá. Depois a minha trisavó é que herdou a Gorreana e começou o nosso trajeto aqui.
Vieram para cá chineses para ensinar como se produzia o chá.
Vieram chineses de Macau para as fábricas (porque havia mais fábricas) para ensinar como se fazia o chá. A família do meu pai também tinha chá. Quando o meu pai casou com a minha mãe, já vinha com o chá “dentro” de si.
O seu pai gostava muito da Fábrica de Chá Gorreana.
O meu pai deu a sua vida por isto e ensinou-nos a amar isto.
Desde pequenas que a Madalena e a sua irmã cá estão.
Desde miúdas. Não sei o que seria a minha vida sem o chá.
Que memórias guarda da fábrica?
Tantas. Na altura isto era muito sossegado. Tenho muitas memórias das pessoas e das vivências.
Foram essas pessoas que lhe passaram alguns ensinamentos para gerir a fábrica hoje?
Eles é que me ensinaram tudo. Aqui na Gorreana não há diferenças hierárquicas. Claro que há os líderes… mas todos nós temos o nosso lugar e sabemos o que temos de fazer. Os funcionários dão a vida por isto, gostam muito disto e também se vai passando de geração em geração. Há casos de haver marido e mulher aqui a trabalhar, também. Há pessoas a quem eu trato por “senhor” e eles me tratam por Madalena. A idade é um posto. Foi aqui que aprendi a ser mulher, a dar valor à vida e a saber que cada um tem o seu lugar no mundo. Hoje em dia as pessoas esquecem-se de que a idade é um posto. Lembro-me de que quando era miúda havia muitas mulheres aqui a apanhar chá. Havia uma senhora que era a Tia Saca-meia. Quando chegava o trator para levar as mulheres, essa senhora ia à frente. E aí fui percebendo que na vida temos um lugar especial consoante a idade que temos e a sabedoria que vamos tendo.
Houve uma grande aposta por parte do seu avó na parte industrial hídrica. Foi isso que também fez com que as outras fábricas fechassem e a vossa se mantivesse.
Isto foi assim: a minha avó Ermelinda tinha um filho que era muito gastador. Recentemente estive a ler algumas coisas sobre ele e realmente ele fez projetos fora do comum para aquela época. Por exemplo, ele fez um barco em Porto Formoso, e foi fazer uma expedição de pedras preciosas para a Austrália. Isso veio nos jornais da época… ele vivia numa ilha mas tinha uma visão fora do comum. Ele também iniciou a pesca do bacalhau em Portugal, mas cometeu um erro: em vez de secá-lo em Portugal Continental, veio secar para cá, onde há um clima húmido. A minha avó, que era uma mulher de regras, ao ver que aquele filho era gastador, não o deserdou, mas dava-lhe uma pensão todos os meses e as suas netas, que eram cinco, é que herdaram. Assim, a minha avó Angelina herdou a Gorreana e casou com meu avó, Jaime Hintze. Era um homem fora do comum. Era um republicano, e na altura vivíamos numa monarquia. Ele foi o primeiro governador dos Açores em São Miguel e aqui na Gorreana fez a hídrica. Foi onde começou a revolução industrial nos Açores, chegámos a receber uma comenda do Governo Regional por causa disso. Foi isso que nos fez viver até hoje.
E ainda se mantém. As máquinas são originais.
Ainda são. São máquinas da revolução industrial e eram feitas para “durar um mundo”. O mecanismo é fácil e as máquinas são fortes. Um dia encontrei uma senhora idosa na Maia que me disse que antigamente ir à Fábrica do Chá Gorreana era o mesmo que entrar agora num foguetão. Achei muito engraçado, porque, imagine-se, vinham aqui à fábrica para verem o que era a luz. Estamos a falar do início do século XX. Meu avó [Jaime Hintze] também fez da Gorreana um recreio. As pessoas vinham para cá, sentavam-se… era um sítio para sociabilizar. Depois, percebeu que precisava da mão-de-obra feminina, então fez um infantário onde as crianças pudessem brincar. As mães traziam os filhos e trabalhavam. A freguesia da Maia era uma freguesia muito evoluída para a altura. Não é normal haver homens com 50 ou 60 anos com cursos superiores, ainda por cima naquela época era uma freguesia muito longe de Ponta Delgada. Mas havia a fábrica de chá, a fábrica do tabaco e o Caetano Raposo e Pereira; as mulheres trabalhavam, nem que fosse sazonalmente, e os homens todos tinham emprego. Isso fez com que a sociedade se dignificasse. Muitos conseguiram emigrar e hoje em dia a Maia tem pessoas de muito valor.
A Fábrica de Chá da Gorreana não é só a história de uma família.
Também faz parte da história da Maia.
Foi nessa altura que o seu avó também fez da fábrica um museu.
Ele era um homem muito inteligente. Começou a ver que vivíamos isolados… Trouxe ‘fräuleins’, que eram senhoras que vinham de fora, da Alemanha, para educar o meu avó Fernando. Aí traziam a Europa para cá e tudo o que se estava a passar, por isso ele era um homem que se mantinha atualizado. Aí percebeu que se abrisse a fábrica ao público e aos visitantes que vinham de fora, eles entravam na fábrica e viam o que era a inovação. Fui convidada para ser oradora num congresso que houve de turismo. O título que puseram foi [aproximadamente] “Gorreana, o primeiro sítio onde houve turismo e o renascer das cinzas”. Ao princípio não percebi o título, mas depois comecei a perceber que era verdade. Nas nossas vidas renascemos das cinzas. Se vivermos mais de 100 anos, há momentos bons e momentos mais. A vida é isto e a Gorreana é isto: momentos bons, momentos maus, momentos de glória… e nisto o meu avó fez com que tivéssemos glória até aos dias de hoje.
Quando a Madalena e a sua irmã saem dos seus trabalhos para vir para cá, a fábrica estava numa altura mais crítica.
A primeira altura mais crítica que a Gorreana teve foi quando o chá que vinha das colónias não pagava imposto e o nosso pagava. Muitas fábricas fecharam mas a nossa continuou. Depois veio o 25 de Abril. Tínhamos os nossos armazéns no Continente, mas foram nacionalizados. Perdemos mercado. É a tal coisa, se vivemos 100 anos… temos momentos de tudo e temos de trabalhar. Nisso o meu pai foi muito importante, tal como a minha avó Berta, que ficou viúva com 34 anos. Ainda é viva e ainda toma conta do dinheiro da casa. O Jaime teve um filho, que é o meu avó Fernando, que viveu para pagar as contas. Não é fácil fazer uma central hídrica. Tivemos um momento muito crítico com Salazar a proteger os chás vindos das colónias. Quando o meu avó morre, fica minha avó à frente. Uma mulher de armas. Quando minha mãe casa com meu pai, ele vem para cá trabalhar. Foi um sacrificado aqui da fábrica, mas tinha um grande amor por isto. Na altura, nos anos 80, o Governo Regional dizia para acabar com o chá. Houve a entrada de Portugal na CEE e o meu pai achava que ia ter ajuda. Toda a gente fazia projetos e eram aprovados, mas a ele as portas foram fechadas porque diziam que era um negócio sem futuro. Diziam para pôr vacas nos terrenos e ele dizia “o que é que vou fazer com os meus funcionários?”. Ele tinha um grande amor pelos seus colegas de trabalho. Arranjou outros negócios, foi trabalhar para fora, e esses negócios foram pagando a fábrica.
Há 12 anos meu pai sentiu-se só. Eu sempre gostei muito disto, mas fez-me bem trabalhar para fora e saber como é ter um patrão. Mas voltei com a minha irmã Sara. Automaticamente fomos seguindo o trajeto. Meu pai fez esta parte [zona do bar] sem dinheiro… foi aos poucos. Agora já está desatualizada e em setembro vamos começar obras porque o turismo, felizmente, assim o pede. As coisas mudaram para melhor. Eu fui para fora. Fui para feiras vender o chá. Tive de ir à procura de mercado. Disse ao meu pai que não podia ficar cá. Sempre que me convidavam para ir para fora, nunca disse que não porque é uma forma de divulgar. Nunca recusei entrevistas porque é uma forma de publicidade. Na minha mensagem nunca tentei chorar nem fazer de “desgraçada”, mas sim passam uma mensagem de otimismo. Quando a pessoa vai ler ou comprar, não quer comprar a desgraça, quer comprar uma história. A minha irmã Sara teve e tem um grande papel na parte financeira; eu consegui um mercado na Alemanha, que é o nosso melhor mercado. É para onde exportamos mais e compram-nos com valor. Não ao volume, mas ao valor. Aquele chá que produzimos menos e com mais valor, eles compram.
O nosso chá é muito caro em relação aos chás da Índia ou do Bangladesh. Lá a mão-de-obra é muito barata… Quando comecei a vender o meu chá, tive que explicar porque é que era caro. Comecei por explicar porque é que o meu chá era bom: temos uma parceria com a Universidade dos Açores, o que nos ajuda a falar do chá e da sua essência. Sei fazer chá mas não sou formada em investigação, e esta parceria dá-nos uma grande segurança sobre aquilo que estamos a falar. Somos uma empresa pequena, não temos laboratórios, por isso esta é uma boa parceria. Também falo sobre a energia, que não polui, e hoje em dia a pegada ecológica tem muita importância no mercado; depois também falei da parte humana: o meu chá é caro porque os nossos funcionários ganham do ordenado mínimo para a frente, não trabalham crianças e isso também faz com que o nosso chá tenha um lugar muito especial, principalmente na Alemanha.
A Madalena sente que os europeus sabem que esta é a plantação mais antiga da Europa?
Sabem. É engraçado, porque quando comecei a ir para as feiras, ninguém sabia quem eu era, tinha sempre que me apresentar. Agora sabem quem eu sou. Nós somos muito pequenos, somos uma ervilha no meu do Atlântico, mas a nossa história e a do nosso chá, vejo que é conhecida. As pessoas leem a nossa história e conhecem-nos, não só em Portugal Continental, mas também no estrangeiro.
Falou na pegada ecológica. O chá Gorreana já é biológico.
Este foi um processo de cinco anos. A SGS [(Société Générale de Surveillance) uma empresa de inspeção e certificação] é que tratou do processo. Quando nos compram o chá lá fora, dizemos que foi a SGS que tratou e não fazem investigação sobre o chá, já toda a gente sabe que empresa é. São muito rigorosos com tudo o que está à volta do chá. Recentemente deram-nos o certificado de um ano e em setembro ou outubro teremos então o certificado definitivo. Também há uma empresa que nos faz limpeza com jatos água quente e queima as impurezas. A erva fica amarela e muitas vezes quem vê pensa que são produtos que pomos no chá, então temos de explicar que é um tipo de limpeza feita com água quente e acaba por cozer a erva.
Sobre a produção, atualmente quantos hectares produzem?
35 hectares, e estamos a aumentar. A minha mãe tem terras com rendeiros, mas a minha não os tira. Conforme forem dando as terras, nós vamos plantando. Isto dá 45 toneladas por ano.
Que parcerias têm atualmente?
Temos a parceria com a Universidade dos Açores, que é uma parceria muito interessante. Não só estudam o chá mas também as ervas aromáticas. Há dias em que a Dra. Lisete cá vem fazer experiências. Ela trabalha com o Professor Baptista, que é o meu anjo da guarda. Trabalhou nos Estados Unidos da América em investigação oncológica. Entretanto reformou-se, veio para os Açores e atualmente trabalha na Universidade dos Açores. Ele fez uma investigação sobre chá em que descobriu que se o chá não for secado e hidrofilizá-lo, não perde uma substância que é L-teanina. Essa teanina atua no globo central e faz com que sejamos focados. É um chá bom para pessoas com Alzheimer, por exemplo. Além do Professor Baptista me ensinar muito, teve um convite para ir à China para levar esta sua descoberta, que foi publicada numa revista científica. Fruto desta descoberta, vamos fazer esse chá em setembro ou outubro, que é um chá muito rico em L-teanina. Também temos uma parceria com a Santa Casa da Misericórdia da Maia que faz os campos das ervas aromáticas. Também estamos a estudar essas ervas aromáticas, para serem misturadas com o chá, para ter benefícios para a saúde. Chá com salsa, por exemplo, faz bem aos rins. Também chá com anis, poejo, ou a uva da serra, que tem mais antioxidantes que o mirtilo.
Quais são os desafios na Gorreana?
Os desafios encontram-se com os projetos e com os chás novos. E também não podemos perder o foco de uma coisa: inovação e tradição. Se o meu avó não tivesse trazido inovação, hoje em dia estava com a porta fechada. É preciso mantermos a nossa tradição e os chás tradicionais, mas ao mesmo tempo estarmos de mãos dadas com a inovação: o chá rico em L-teanina, o chá com as ervas aromáticas… Temos de estar atentos às parcerias, gosto muito de as fazer. Ainda no outro dia dizia-me um colega meu: “como é que vais fazer uma parceria com ele, e se ele enriquecer à tua custa?” e eu dizia “ótimo, se ele enriquecer é ótimo!”. Temos de pensar que ele também vai fazer outras pessoas enriquecer: a mim vai comprar o chá, a outro a embalagem… é assim que temos de pensar. Ainda por cima somos muitos pequenos, se não nos ajudarmos os outros…
Quais as dificuldades da fábrica?
Temos superado as dificuldades. Só são dificuldades quando não conseguimos arranjar solução, e se não há solução, nem é dificuldade.
Quantos trabalhadores tem atualmente?
Temos 62. O chá exige muita mão-de-obra. Só no campo são 32 homens e depois vêm mais seis durante meio ano. Temos de estar sempre a mondar e a limpar o chá. Aqui dentro da fábrica são mais 14 e a parte do turismo cresceu muito e envolve muita gente. É muito engraçado trabalhar aqui porque os jovens começam cedo a trabalhar na fábrica, principalmente ao fim de semana, e vamos vendo o crescimento deles. Muitos já estão numa geração que está a trabalhar. Um miúdo que trabalhou aqui, começou com 13 anos no OTL [Ocupação de Tempos Livres] e continuou sempre connosco. Fez o seu curso, já está a trabalhar, e há dois anos fui vê-lo a entregar a sua tese de mestrado. Fiquei muito emocionada por me lembrar como é que ele começou. É bom vermos esse crescimento de todos aqui dentro.
Além destes novos chás e das obras, o que é que se avizinha mais?
Temos muito que fazer. Em setembro começamos as obras. Íamos começar em janeiro, mas o empreiteiro aconselhou para que começássemos em setembro, porque quando estivéssemos no auge das obras, também estaríamos no auge da época alta. É um projeto que temos na Câmara Municipal há dois anos, mas estes projetos levam muito tempo a aprovar. Finalmente foi aprovado e em setembro começam as obras. Vamos ter uma zona nova para receber os turistas. Isto não está atual. Tenho um defeito muito grande com a minha irmã: vem alguém para vender qualquer coisa de artesanato, por exemplo, e nós aceitamos. Já estamos cheios de coisas, então vamos fazer uma loja mais bonita, onde as pessoas possam andar. Também vai haver uma zona exterior, e na parte da fábrica vai haver uma zona maior para estender o chá. Os telhados também já estão velhos e também vamos aumentar e reformular as casas de banho. Além disso, para comemorar os 140 anos da Fábrica do Chá da Gorreana, um senhor está a escrever um livro. Sobre a fábrica e sobre a história da família e dos funcionários.