Maio é habitualmente o mês do tradicional convívio nacional da Tertúlia Policiária da Liberdade, iniciativa com realização ininterrupta há 16 anos, reunindo policiaristas de norte a sul do país. Foi neste evento que o ano passado O Desafio dos Enigmas procedeu à entrega dos prémios do torneio “Solução à Vista!” e do concurso “Mãos à Escrita!” conquistados pelos “detetives” de Santarém e Lisboa. Este ano, porém, numa altura em que se mantêm as medidas de contingência impostas pela pandemia do novo coronavírus Covid – 19, o evento não será realizado em maio. Estamos, por isso, a estudar outras formas, e o calendário possível, de proceder à entrega dos prémios dos concorrentes desses e dos outros distritos, decisão de que daremos nota em breve.
Sublinhe-se, no entanto, que a suspensão do convívio da Tertúlia Policiária da Liberdade foi determinada por razões de pesar e luto, face ao desaparecimento físico de um dos seus principais membros, um dos mais destacados policiaristas nacionais, com um longo e riquíssimo percurso como produtor e decifrador de enigmas e grande cultor e defensor da literatura policial. Figura de referência do mundo policiário, por todos estimado, ele foi o criador do impagável Detetive Tempicos e de icónicas personagens de inúmeras e inesquecíveis aventuras, como “Nelinha” e sua sobrinha “Katinha”…. Estamos a falar, claro, de António Raposo, mais conhecido no mundo policiário por A. Raposo, que nos deixou aos 84 anos, no passado mês de fevereiro.
A.RAPOSO – UMA BIOGRAFIA BREVE
Nascido no Algarve, onde regressava regularmente para matar saudades dos lugares da sua infância e visitar familiares e velhos amigos, António Raposo veio ainda adolescente para Lisboa e rapidamente se tornou alfacinha por adoção, sem nunca perder no entanto a sua forte costela algarvia. Começou por viver no pitoresco e popular bairro do Alto do Pina, mas calcorreou a velha cidade de lés-a-lés, sendo frequentador assíduo das tertúlias culturais dos cafés da baixa lisboeta.
A génese das tertúlias policiárias estará certamente nas célebres reuniões do já desaparecido Café Martinho, do Rossio de Lisboa, que juntava em alegre e amena cavaqueira muitos dos conhecidos intelectuais que viriam a ser os melhores policiaristas dessa época. Mas o “bichinho” do policiário começou a germinar ainda antes, andava ele na Escola Veiga Beirão, ali para os lados do Carmo, junto ao Chiado, em Lisboa, corriam os anos cinquenta do século passado. Havia ao tempo uma publicação de banda desenhada chamada “Camarada”, editada pela Mocidade Portuguesa, de linha editorial nacionalista, mas servida por uma grande equipa de desenhadores e com uma excelente impressão gráfica, onde um dia surgiu uma página dedicada ao policiário.
Essa página era orientada por Sete de Espadas, um homem verdadeiramente invulgar que tinha uma qualidade muito pouco comum: fazia tudo com gosto e muita paixão. Foi graças a ele que muitos destacados nomes da sociedade portuguesa, como, por exemplo, Matos Maia (ilustre homem da rádio), Luís Filipe Costa (radialista, jornalista e realizador de cinema) ou Firmino Miguel (general do Exército e ministro da Defesa dos I e II governos provisórios e do I governo constitucional do pós-25 de Abril), se iniciaram no policiário. E entre estes estava A. Raposo.
Por essa altura surgiram as grandes coleções de livros policiais, como a Vampiro e a Xis. Leu muitos deles, quase todos. E ficou fã de alguns dos grandes escritores da época, que foram a sua grande inspiração para se abalançar na escrita de contos, enigmas e poemas de índole policiária ou satírica e erótica-satírica – da vasta obra produzida, destacamos, entre muitas outras pérolas de fina literatura, os dois singulares “livrinhos” de bolso “O Cabo de Esquadra Jeremias” e “O Retiro do Quebra-Bilhas”, que nos permitem (…) “visitar uma Lisboa icástica, hoje quase desaparecida”.
Por volta de 1956, A. Raposo fundou com alguns dos seus amigos, sob a batuta do “velho” Sete de Espadas, o lendário Clube de Literatura Policiária (CLP), que teve como primeira sede um pequeno apartamento no lisboeta bairro dos Anjos. Como o seu nome figurava no requerimento feito ao Governo Civil de Lisboa para que a constituição do clube fosse autorizada, a famigerada PIDE foi a sua casa para saber se “era bom rapaz e trabalhador”… ou se tinha ideias subversivas.
Por essa altura confessava-se um completo analfabeto político! Se bem que já nesse tempo dizia ser um “anarquista-agnóstico, graças a Deus”. O CLP lá nasceu e ele esteve sempre na linha da frente pela dignificação da literatura policial. Em 1974, porém, perdeu o contacto com o policiário e ganhou aproximação à política. Foram bons os tempos que viveu durante o PREC, mas foi-se desiludindo aos poucos com o “estado a que a política chegou”. E regressou ao policiário!
Aí por volta de finais dos anos 80, um dos seus amigos das lides policiárias, que se assina como O Gráfico, começou a enviar-lhe o Jornal de Almada, onde aquele assinava uma página dedicada ao policiário. E ei-lo de regresso ao que ele considerava uma “droga”, uma “droga boa e sem contraindicações”, à qual acabaria por ficar irremediavelmente preso para sempre. Uma “doença” que foi partilhando com a sua querida Esposa, Helena, grande companheira na vida e no policiário, onde é muito estimada por todos, que carinhosamente a tratam por Lena ou Leninha.
Nos inúmeros torneios em que A. Raposo participou ao longo dos tempos, acrescentando muitas vezes ao seu pseudónimo o nome da sua Lena, esteve sempre nos lugares cimeiros, mas só uma vez ganhou um porque se considerava um bocado preguiçoso e curto nas respostas. O importante para ele era participar. Dizia que era assim como os grandes atletas dos Jogos Olímpicos, mas dos antigos, daqueles que disputavam as provas das várias disciplinas desportivas com o objetivo único de conquistar uma simples coroa de louros. E a coroa de louros no policiário é a solidariedade, a amizade e a fraternidade que A. Raposo personificava e germina entre nós.
- RAPOSO – UM MESTRE DO POLICIÁRIO EM REVISTA
Passar em revista alguns dos muitos problemas policiários produzidos por A. Raposo, constituindo com eles um “Torneio de Iniciação” especialmente destinado aos “detetives” principiantes na vertente de decifração, será uma das nossas próximas iniciativas. No entanto, embora essa prova seja prioritariamente destinada a iniciados, estreantes ou praticantes com menos de três anos de atividade na modalidade, poderão também participar outros policiaristas com mais experiência. Estes últimos integração um grupo especial, com uma tabela classificativa distinta da dos demais, onde seremos mais exigentes na avaliação das propostas de solução enviadas. Mas isso não é para já. Para já é o concurso de contos “Um Caso Policial em Gaia”, que arranca na próxima edição d’ O Desafio dos Enigmas e que animará a secção pelo menos até final deste ano.