“Não se deve dizer que nada é natural!
Numa época de confusão e sangue,
de desordem ordenada, arbítrio de propósito,
humanidade desumanizada.
Para que nada seja considerado imutável”
(Bertolt Brecht – A Excepção e a Regra)
Cheguei a Portugal nos primeiros dias de janeiro de 1975, o meu destino era o Teatro Experimental do Porto/TEP para assumir a direção artística durante três anos. Apoiado pelo Serviço de Belas Artes da Fundação Gulbenkian, o TEP formalizou comigo um contrato com essa instituição que ostentava orgulhosamente o título de ser a mais antiga Companhia de Teatro Independente do País. Chegar como que caído do céu, significou adentrar-me nos pormenores burocráticos que implicavam, além do artístico, levar um espetáculo à cena; direitos de autor, classificação etária, licenças de representação, etc. Afortunadamente a censura já não existia e era um trâmite a menos. Dela fui tomando conhecimento pelo que me contava José Cayolla, na altura Director da Companhia do TEP, e os funcionários, em especial o Sr. Roberto Valente- secretário da companhia, pai do Sr. Vidal Valente, que exercia as funções de ponto e contrarregra. José Cayolla falava, respeitosamente e com certa estima, do Monsenhor Moreira das Neves, que integrou a Comissão de Censura e que em repetidas ocasiões assistiu aos ensaios gerais antes da estreia dos espetáculos. Descubro mais tarde que Monsenhor é uma figura intelectual de renome e de prestigio cultural da igreja portuguesa, a censura foi, neste caso, delicada na escolha. O meu primeiro espetáculo com o TEP foi um Brecht-2; duas peças curtas de Bertolt Brecht, o autor tão desejado pelo público e tão proibido pela censura. Do espetáculo faziam parte A Excepção e a Regra, e uma peça quase inédita O Mendigo e o Cão Morto, uma espécie de fábula oriental na qual duas personagens, um emperador e um mendigo dialogam sobre o poder! Na RTP existe imagens deste espectáculo;
https://arquivos.rtp.pt/conteudos/estreia-da-peca-de-teatro-a-excepcao-e-a-regra/
Também com os alunos da escola do TEP fizemos Uma tarde com Brecht, poemas e canções e alguns do relatos do autor alemão retirados de As Histórias de Almanaque e das Histórias do Sr. Keuner, e uma versão livre de Aquele que Diz que Sim, peça escolar e didáctica. Foi uma temporada plena de Brecht! Todas estas recordações surgem motivadas pela celebração nº 48 do Dia da Liberdade, e pela exposição que está patente em Lisboa promovida e organizada pela EPHEMERA, obra monumental do historiador, investigador e político José Pacheco Pereira.
“PROIBIDO POR INCONVENIENTE” – EXPOSIÇÃO REVELA O QUE A CENSURA ESCONDEU – 08.04.2022
Abriu a 7 de abril, no edifício do Diário de Notícias, em Lisboa, a exposição “Proibido por inconveniente – Materiais das Censuras no Arquivo Ephemera”. A mostra está patente até 27 de abril, com entrada livre, e revela o que a censura escondeu durante 48 anos.
No documento que cito nesta crónica (*) os leitores poderão constatar quantas foram as censuras e as afrontas dirigidas contra o Teatro em Portugal! … e como é saudável viver num país democrático onde a censura (lápis bicolor) já não existe!
25 de Abril, Sempre!
Nota final; apenas como amostra
(*) … “Mas o debate nas reuniões da Comissão (de censura) manteve-se e no mês de Abril o estado da questão em relação a “O inferno” era o seguinte: Seguidamente, foram trocadas impressões acerca da peça “O inferno” (peça de Bernardo Santareno), salientando a Exmª. Senhora D. Mafalda Vaz Pinto que o novo final proposto pelo Sr. Bernardo Santareno é absolutamente absurdo, até porque o facto de ser afirmado que se trata de tarados de nascença, implica desde logo a sua irresponsabilidade e, consequentemente a criação de um ambiente odioso para a justiça que os vem a condenar. Julga por isso que a Comissão, embora lhe não caiba alterar os textos que lhe são submetidos, poderá, no entanto, sugerir a introdução de uma modificação que dê ao texto o sentido que a Comissão considera indispensável para a peça poder passar. Monsenhor Moreira das Neves, pronunciando-se em seguida, manifestou os maiores receios de que a peça – aliás, muitíssimo bem feita – venha a levantar sérios problemas, tal como está, acrescentando o Reverendo Padre Teodoro que, entre outras, uma das principais reacções é a que resulta do facto de o público, em face de toda a explicação, acabar por ter pena e absolver os criminosos, odiando o tribunal que os condena.”