Por esta altura do ano é muito comum as Juntas de Freguesia de Gaia promoverem ações de recolha de alimentos junto dos clientes das grandes superfícies comerciais, com vista à constituição de cabazes compostos por bens não perecíveis para oferta aos cidadãos mais carenciados dos seus respetivos territórios. É óbvio que saúdo essas iniciativas, com a condição, porém, de que elas não tenham também como propósito mais ou menos deliberado um aproveitamento político assente numa profusa publicitação da distribuição dos cabazes, ilustrada com fotos que juntam “beneméritos” e “beneficiados”, onde se identificam por vezes estes últimos, alguns deles a viver uma dolorosa situação de pobreza envergonhada que procuram esconder dos que lhe são mais próximos, ficando assim socialmente expostos.
Mas o que mais lamento é que as iniciativas de ação social desenvolvidas por algumas dessas autarquias se esgotem praticamente na distribuição de alimentos, como se os problemas sociais dos nossos dias se resumissem a focos de pobreza material e se resolvessem todos da mesma maneira. Mas não! Tem que tratar-se de forma diferenciada o que é diferente. Não há dois problemas iguais e cada um requer cuidado especializado. É preciso saber distinguir a pobreza material, que decorre da escassez de recursos financeiros por via do desemprego ou de muito baixos salários, das outras inúmeras formas de pobreza.
O perfil da pobreza dos nossos dias é radicalmente diferente da pobreza do século XX, que podíamos simplesmente resumir à incapacidade das populações em satisfazer as suas necessidades mais básicas. A pobreza de hoje surge espoletada por problemas emergentes da sociedade contemporânea, de onde se destacam a desagregação familiar, o isolamento e a exclusão social, questões para as quais é necessário encontrar respostas sérias. Existem inúmeras famílias a sofrer os terríveis efeitos de comportamentos transgressores, ou de risco, que destroem vidas e provocam inevitáveis focos de marginalidade, e subsistem no nosso seio formas intoleráveis de exploração de trabalho infantil, a que as crianças são sujeitas por serem consideradas levianamente como meio de sobrevivência da família.
Confrontamo-nos em cada Lugar com o sofrimento vivido em silêncio, entre as paredes das suas próprias casas, por mulheres, idosos e crianças, vítimas das mais variadas formas de violência física e psicológica. Somos diariamente agredidos com o conhecimento de situações dramáticas de isolamento e abandono de idosos que são atirados para lares e asilos como se fossem trapos velhos sem história nem memória. E as juntas de Freguesia podem e devem contribuir de forma ativa e empenhada para a irradicação destas chagas sociais, ajudando a abrir caminhos para uma sociedade mais justa, humana e solidária, através da criação de uma espécie de Unidade de Apoio Local, uma estrutura descentralizada e de proximidade que faça o levantamento, diagnóstico e acompanhamento técnico de todas as situações que exijam correção. É preciso identificar cada situação “de per si” e dar-lhe a melhor e mais ajustada solução, pelo que o objetivo principal deve ser a orientação das pessoas na resolução dos seus problemas, aos mais diversos níveis, proporcionando, por exemplo, apoio especializado à população socialmente mais vulnerável, nomeadamente no acesso a serviços nas áreas da qualificação, da segurança, da saúde e do emprego.
É óbvio que o verdadeiro combate a travar tem de ser nos domínios da pobreza material. Não apenas como uma questão de justiça social, mas também como condição para a sobrevivência da própria democracia. Não existe democracia plena enquanto houver cidadãos excluídos da sua participação na economia e na sociedade. É preciso, por isso, dar-lhes condições para que construam um futuro, com mais iniciativa e capacidade de criação de riqueza. Não podemos aspirar a uma democracia sólida nem a um desenvolvimento sustentável de uma sociedade enquanto houver injustiças gritantes na repartição da riqueza e do rendimento. E isso não se resolve com políticas assistencialistas ou caritativas.
O problema da pobreza só se resolve quando a pessoa se torna autossuficiente, com maiores qualificações, dotada de mais competências profissionais, técnicas e intelectuais. Por isso, é necessário conceber e desenvolver formas inteligentes de cooperação com o tecido económico local, que permita desbravar caminhos que facilitem e discriminem positivamente a integração da população residente nos postos de trabalho criados na área geográfica da freguesia. E, paralelamente, urge promover e estimular o autoemprego e a constituição de pequenas unidades familiares, apoiando tecnicamente os cidadãos em todos os processos relativos à obtenção do microcrédito, das bonificações e dos incentivos relacionados com a criação de empresas e emprego. As juntas de Freguesia podem ser ainda a porta de entrada para um conjunto de estruturas que procuram responder aos mais diversos problemas, desde a violência doméstica ao endividamento, passando pela falta de habitação.
O futuro não pode passar apenas pela ação das IPSS que se dedicam a combater problemas relacionados com a droga, exclusão social, marginalidade, etc., e a melhorar a qualidade de vida das pessoas. Compete às autarquias assumir um maior protagonismo na construção de uma sociedade mais justa e mais solidária. E isso não se faz com cabazes de alimentos!…