A CIDADE NASCEU DO RIO, VIVEU DO RIO E O RIO ENTERROU (2)

(continuação da crónica anterior)

 

Em 26 de fevereiro de 1803 a povoação foi elevada à categoria de vila, desmembrando-se para sempre de Freetown. Tendo sido incorporada no Estado de Massachusettts como Fallriver, um ano depois mudaram-lhe o nome para Troy, e assim permaneceu por trinta anos. A vila nasceu do espaço que servia de “casa” a cerca de duas dezenas de famílias, de entre as quais sobressaíam os nomes de Durfee, Borden, Buffington, Davol e Cook. Um número de residentes provavelmente inferior a 500 pessoas. Sete anos depois, em 1810, a vila tinha 1,296 habitantes.

Em 1811, o Coronel Joseph Durfee estabeleceu a Manufactory Globe, de maquinismo giratório na saída de Cook Pond (uma pequena lagoa localizada a sul da cidade). Esta foi a primeira fábrica têxtil construída em Fall River, mesmo que por esse tempo esta área pertencesse ao Estado de Rhode Island (razão pela qual mais tarde foi disputada pelos dois Estados, chegando-se mesmo ao ponto de haver dois “Fall Riveres”. Um de Massachusetts, outro de Rhode Island).

Em 1813, no rio Quequechen surgiram mais duas fábricas: a Manufactory Troy Cotton & Woolen e a Fall River Factory.

Ambas as empresas cardavam e fiavam, sendo os tecidos fabricados em teares manuais. Mas em 1817 a Fall River Factory já tinha teares a trabalhar com energia hídrica. Acima das oito quedas do rio foi construida uma represa para melhor poderem manejar intensidades, quantidades e os desvios necessários para todas as operações.

Na vila de Troia, por cima do rio, nas suas margens e arredores, as fábricas se foram multiplicando. Em 1821 aparece Pocasset Manufacturing Company e Troy Mill, praticamente ao mesmo tempo que nasceu Iron Works – a fábrica de ferro fundada pelo coronel Richard Borden e pelo Major Bradford Durfee, na parte inferior do rio, mais perto dos cais.

Iron Works começou a produzir pregos, dobradiças, cantoneiras, barras, barrinhas e outras ferragens, ganhando estes artigos a mais alta reputação. Peças de ferro disponíveis, ao pé e à mão, era o essencial para a manutenção das máquinas.

Em 1827, o Coronel Borden começou o serviço regular de navios a vapor para Providence. Vinte anos depois iniciou também o serviço regular de navios a vapor para Nova Iorque, cuja empresa era conhecida por Fall River Line, que segundo alguns registos, era a linha de vapor mais luxuosa da América, ligando viajantes ferroviários de Boston a Manhattan, e funcionou até 1937.

Em 1830 Troy tinha 4,158 habitantes.

Como não podia deixar de ser, o porto de Troy (Fall River) desempenhou um papel importantíssimo na história da vila e da cidade. Por ele já entrava carvão da Escócia e ferro da Suécia em 1833, numa altura em que a Vila de Troia tinha 13 fábricas de algodão, empregando 1.200 pessoas, com 31.000 fusos e 1.050 teares. Mais tarde, em 1837 foi designado  pelo governo federal como porto de entrada.

Em 1834, aos 12 de Fevereiro, Troy deixou de ser o nome da vila, e oficialmente ela passou a chamar-se Fall River. Onze anos depois já tinha ligação ferroviária com outras localidades, graças a mais uma iniciativa do coronel Richard Borden.

Na tarde de 2 de Julho de 1843 deflagrou um grande incêndio que destruiu grande parte da vila. Cerca de duzentas famílias ficaram sem abrigo, e um apelo de socorro  foi lançado pelas autoridades locais a 4 de Julho. Poucos dias depois vieram donativos de Boston, Cambridge, Providence, New Bedford e outras cidades vizinhas que totalizaram mais de $50,000 – o que seria hoje equivalente a $1,400.000.

Em 1850 Fall River tinha 12,000 habitantes. Quatro anos depois, em 1854 a vila de Fall River foi elevada a cidade, sendo o seu primeiro mayor Mr. James Buffington.

No início da segunda metade do século XIX, com o aperfeiçoamento da máquina a vapor, as fábricas foram substituindo a energia hídrica pela térmica. Mesmo assim o rio não perdeu a importância relativa ao funcionamento das industrias que albergava, porque era dele que se tirava a água para as caldeiras e locomotivas; e era ele próprio que arrefecia motores e outros mecanismos.

Em 1860 a cidade de Fall River tinha 14,026 habitantes. Oito anos depois ultrapassou a cidade de Lowell, que até ali era a principal cidade têxtil da América, com mais de quinhentos mil fusos.

Por causa do seu porto, Fall River ganhou vantagem em relação a Lowell. Tanto ficava mais perto dos mercados de compras e vendas (Providence, Nova Iorque, e outros), como também daqueles que lhe forneciam as matérias-primas.

No início da década seguinte, em 1871 e 1872, aparecem na cidade 15 novas corporações, projetos de construção de  22 novas fábricas e expansão de algumas já existentes. O número de fusos a girar na cidade ultrapassava um milhão. Por isso é que chamam Fall River de “Spindle City”, ou seja: Cidade dos Fusos. Ou terra de fuseiros, tal como a minha Ribeira Grande, em São Miguel dos Açores.

As primeiras habitações mandadas construir pelas empresas para alojar trabalhadores consistia em casas de três andares, na sua maioria com seis apartamentos. A década de 1870 deu o início da imigração em massa para esta cidade.

Fall River tornou-se famosa também pela rocha de granito sobre a qual foi edificada. De variados cantinhos se tirou pedra para construção, mas uma pedreira que ficou gravada para sempre na história da cidade foi a que tinha por nome Beattie Granite Quarry, localizada no extremo norte da Quarry Street, entre o José da Silva Memorial Park e a Beattie Street. Dizem os entendidos que a mansão Chateau-sur-Mer, de Newport, RI, foi feita com pedra do Beattie Quarry.

A maioria das fábricas de Fall River, “acima da ladeira” usou o granito das suas pedreiras para a sua construção. As outras, lá em baixo, ao longo do rio Taunton, quase todas se viraram ao tijolo vermelho. Pormenores estes associados aos custos e aos transportes.

Em 1880 viviam em Fall River 48,961 pessoas. Dez anos depois o número atingiu 74,398.

Aos 4 de Agosto de 1892 deu-se em Fall River o caso que toda a América conhece, e que até já inspirou filmes de terror, para além de ser uma das histórias preferidas para se ouvir e contar pelo Halloween. Basta dizer: Lizzie Borden. Andrew J. Borden e sua esposa foram assassinados à machadada, na sua residência, na Second Street. Uma semana depois, a 11 de Agosto, Lizzie Borden foi presa pelo crime.

Em 1920 a cidade de Fall River atingiu o número máximo da sua população. O censo daquele ano deu-nos a conta de 120,485 pessoas.

Como todas as cidades, vilas e lugares, Fall River teve os seus altos e baixos. Gozou situações favoráveis e enfrentou outras terríveis. É considerada uma guerreira. Vai em frente, e o seu lema é “We’ll Try”. “Tentaremos”, se preferirem. Nasceu de um pequeno rio, que dele herdou o nome. Mas à maneira que a cidade foi crescendo, o rio foi desaparecendo. Em cima dele ergueram edifícios que deram a ganhar o pão a muita gente, e esperança de um futuro melhor aos seus descendentes.

Quem estas linhas escreve conhece uma pequena queda de água que saindo debaixo do edifício que alberga o Work out World logo se mete debaixo do outro que albergou por muitos anos a tipografia Express Printing e a Factory of Terror. Porém, também sabe que antes do rio entrar no primeiro edifício tem uma queda muito maior, pelo que, várias vezes já ouviu o barulho da água a partir da Pocasset Street, em frente do edifício do jornal Herald News. Vontade de lhe meter os olhos em cima nunca faltou, mas há que respeitar a propriedade alheia.

O jornalista Ben Berke, há um ano e tal, tentando saber mais sobre o rio e suas sumidas cascatas lá se deslocou, na companhia de dois empregados do departamento de água da cidade. Sobre esta visita diz-nos o seguinte:

Seguimos o som da água até uma cerca enferrujada em cima de uma parede de cimento armado. Atrás da parede, e uma distância significativa abaixo, o rio Quequechan emerge de um tubo incorporado no viaduto da auto-estrada que rodeia grande parte da propriedade. A água desce uma colina íngreme por cerca de 30 metros, antes de desaparecer sob o edifício da fábrica.

Foi-lhe então dito que para informações mais detalhadas devia contactar Alfred Lima, o qual descreveram como que  “o venerável planejador aposentado da cidade.”

Alfred Lima tem 80 anos, vive em Fall River e é autor de várias publicações, com especial destaque para o livro “A River and it’s City” (2007). Usando as palavras de Burke, Al Lima “sonha em restaurar as cascatas que deram o nome à cidade.”

Afinal, o que é feito do rio?

Todos nós podemos ver uma parte dele quando passamos pela auto-estrada 195. Mas nem todos sabem que a partir do Britland Park ele segue por um túnel de dois metros de diâmetro, e assim, debaixo do chão e desviado do seu leito original, atravessa o resto da cidade até chegar à antiga fábrica onde funciona o ginásio.

Segundo o relatório de  Ben Berke, “a última dessas oito quedas de água desapareceu na década de 1960” por causa da construção da Ponte de Braga e da respetiva auto-estrada.  “Os planeadores de transporte em Boston colocaram os seus pontos de vista no Quequechan como o caminho mais claro para a auto-estrada através do denso coração de granito de Fall River.

Ainda no relatório de Berke, é referido que Lima afirmou que “quando o Departamento de Transportes quis colocar o Quequechan numa sarjeta, ninguém levantou nenhuma grande questão sobre isso“. As cataratas estavam escondidas há um século, mas a inter-estadual 195 destruiu-as para sempre.

Ben Burke também nos informa que foi em 1997 que Alfred Lima entrou no mesmo complexo fabril que acabara de visitar para ver a mesma cascata. A partir de então começou a desenvolver esforços para ressuscitar o rio. Diríamos nós: devolvê-lo à cidade que ele criou, que dele se serviu, e que depois o enterrou.

Em 2003, após a sua reforma, ajudou a elaborar um plano para tecer o Quequechan de volta à paisagem de Fall River.

   Partindo da nascente do rio, uma lagoa não muito longe da sua casa, Lima desenhou uma ciclovia na sequência de um caminho-de-ferro abandonado. Os políticos gostaram da ideia. Hoje há uma ciclovia com o nome de Lima, onde pode seguir o Quequechan antes que desapareça num cano no centro da cidade.

Mas a segunda parte do sonho de Alfred Lima está longe de ser concretizada, porque envolve demolições, desvios e a criação de um pequeno parque com árvores e relvado. Além disso, como anotou Ben Burke, “Subindo, do outro lado do viaduto, Lima quer a câmara de comércio de um andar demolida para dar lugar a uma rampa de betão, que seria o quadro para (ver) uma cascata feita pelo homem”.

Não há dúvidas de esta ser uma boa proposta a considerar nas próximas câmaras ou nas gerações futuras. Mas o desejo de Lima de tirar o rio da “sarjeta e deixar a água vaguear livremente” já não cabe na cabeça de ninguém.

Haja saúde!