“A PALAVRA TEM CORPO, RESPIRA, SOPRA…”

O  País, o Porto e em especial a comunidade teatral lamentam o desaparecimento do encenador Rogério de Carvalho.

O TNSJ lembra Rogério de Carvalho que nasceu em Angola, em 1936, e que nos deixou ontem- 22/09/24- tinha 88 anos. Em 2019, escreveu no programa de sala de Rei Lear, de Shakespeare, espetáculo coproduzido pelo Ensemble – Sociedade de Atores e o Teatro Nacional São João: “O conhecimento do teatro nunca está acabado.” Uma frase que nos devolve por inteiro a sua inquietação, a sua humildade, a sua grandeza.

Lembro, especialmente, uma das primeiras encenações de O Cerejal (O Jardim das Cerejeiras, nalgumas traduções) de Anton Tchékhov, realizada com o TEAR, na desaparecida sala da Rua do Heroísmo. O cenário de espelhos e vidros, ao fundo uma mesa de bilhar, um comboio em miniatura e o universo que Rogério soube aproximar tão bem do seu ao criado pelo autor. Um mundo em ruínas e queda, a alusão ao jogo e a infância, a morte da natureza, uma sociedade fragmentada à espera de uma revolução!

Entre as personagens, Firs um (*) servo de 87 anos, interpretado nessa encenação por José Pinto, é o retrato da ruptura e queda ,  deambula pelo cenário quase como um fantasma com poucas falas e que é abandonado e esquecido na propriedade vendida.

Foi um espectáculo de jovens actores, alguns com idades que não correspondiam às suas personagens, mas estava o encanto do autor, da encenação e o talento dos intérpretes, António Capelo, Jorge Pinto e Emília Silvestre, nesse momento, grávida do seu primeiro filho,  Ricardo.

Era o ano de 1989, mais tarde, em 2007, Rogério voltaria a pegar neste texto numa nova encenação com o Ensemble no Teatro Carlos Alberto.

Há um momento sublime em Tchékhov e está na sua peça A Gaivota, uma personagem na quietude do lago e da paisagem, lança esta frase que sempre me comoveu pela simplicidade e profundidade como foi escrita;

“O anjo do silêncio passou por aqui”. 

 Assim foi para mim Rogério de Carvalho, uma espécie de anjo do silêncio teatral, construindo os mais belos momentos de encenação, sempre apoiado em grandes autores aos quais imprimiu o seu selo particular de criador. Julgo ter visto quase toda a sua obra realizada no Porto, com o TEAR, Ensemble, As Boas Raparigas, e no TNSJ. Entre os últimos, o belíssimo díptico de Molière, O Avarento O Enfermo Imaginário, ao qual faltou apenas o Tartufo, que muito bem poderia ter encenado com o Jorge Pinto, uma vez mais no protagonista…

Mas a vida é assim, não há tempo para tudo, mas o Rogério  teve tempo para muita criação bela da qual guardaremos memória para sempre.

Cumprimentei o seu filho Carlos telefonicamente , a quem não conheço, transmitindo   os meus sentimentos de espectador e admiração.

Não fiz parte do círculo íntimo do Rogério, fomos íntimos através dos seus espectáculos.

Como espectador, obrigado!

Notas: (*) Um dos principais temas da peça é como as pessoas são afetadas pelas mudanças sociais. A emancipação dos servos em 19 de fevereiro de 1861 por Alexander II (1818-1881)

Agradeço ao actor e amigo Jorge Pinto do Ensemble pelas informações dadas.