Aguardada com alguma expectativa, eis que chega hoje ao conhecimento dos leitores a solução do problema que constituiu a segunda prova do nosso Torneio Policiário.
Face aos seus inúmeros pormenores, este enigma mereceu um particular cuidado na sua decifração por parte da esmagadora maioria dos concorrentes, a julgar pelos excelentes relatórios apresentados.
Perspetiva-se, por isso, uma luta muito cerrada no topo da tabela classificativa que contamos atualizar na próxima edição.
TORNEIO POLICIÁRIO’ 2017
Solução da Prova nº. 2
“Trancado na Casa de Banho”, de Verbatim
Flávio Alves verificou, em primeiro lugar, que não estaria perante um caso de suicídio. O corpo estendido, como que arrumado ao comprido no espaço disponível, não conjugava bem com quem de pé, ou sentado no bordo da banheira, tivesse dado um tiro na têmpora. A pistola, perto do ombro direito do corpo estendido, parecia resultar do ato muito improvável de alguém que se tivesse dado ao trabalho de se estirar no chão para depois se matar. A ausência de qualquer salpico de sangue apontava para morte ocorrida em sítio diferente do da casa de banho. A cápsula dentro do bidé parecia também não acertar muito bem com tudo o resto. Finalmente, o facto de o cadáver não incomodar a livre rotação da porta não deixava ser uma particularidade a considerar.
No seguimento das observações anteriores, o Inspetor foi levado a encarar a hipótese de uma encenação de suicídio que, na circunstância, a porta trancada por dentro parecia não permitir sustentar. Todavia, ao presumível assassino não terá sido difícil aferrolhar a porta a partir do exterior. O pedacinho de fita-cola pode ter servido para segurar a haste da tranca antes de esta entrar no batente e, ao mesmo tempo, para suster uma linha que a envolvia e cujas pontas passavam por debaixo da porta. Puxando as duas pontas em simultâneo, depois de bem fechada a porta com o auxílio da maçaneta, a haste era obrigada entrar no batente. (Não se exclui a possibilidade de ter sido utilizada uma lâmina flexível, atuando de cima para baixo, em vez da linha). Uma vez encaixada a haste no batente, só havia que retirar o fio puxando-o por uma das pontas. Se a fita-cola tivesse saído com a linha, talvez o Inspetor não tivesse chegado tão depressa ao modo como a porta poderia ter sido trancada por fora.
Portanto, o Sr. Jacinto Dores terá sido assassinado e o autor ou autores do crime terão encenado um suicídio.
Flávio Alves, embora não tenha conseguido impedir que os hóspedes falassem com os donos da casa antes de os interrogar em separado, acabou por recolher indícios, na breve conversa que se estabeleceu entre os quatro moradores daquela habitação, que levavam a inculpar Maria da Paz e Inocêncio Guerra. Com efeito, a hóspede Maria da Paz Guerra, antes de poder saber o que se passara naquela casa, foi de imediato perguntar se tinha acontecido alguma coisa ao Sr. Dores e, depois de esclarecida, sem que alguém tivesse ou pudesse ter falado de um hipotético suicídio, aventou essa possibilidade, justificada como consequência da depressão devida ao cancro de que o falecido sofreria. Quer dizer, Maria da Paz mostrou ter em mente a ideia de que Jacinto Dores se havia suicidado, mas não por via da informação que lhe foi prestada. Aliás, José Mata contestou-a de imediato e adiantou um ataque de coração como aquilo que lhe parecia mais natural para alguém que, quanto sabia, foi encontrado morto dentro da casa de banho.
A exclamação de Inocêncio Guerra perante esta hipótese do ataque de coração, demonstrando dúvida e grande admiração, evidenciou também a surpresa de quem não estava à espera de tal suposição, talvez porque achasse que com um tiro, algo que os donos da casa desconheciam, só o suicídio ou homicídio se poderia aplicar ao caso.
O Inspetor verificou, assim, que Maria da Paz e Inocêncio Guerra deram a entender que sabiam o que se tinha passado, colocando-se como possíveis autores do crime.
O caso parecia deslindado mas ainda havia muito a fazer para se poder confirmar ou infirmar a conjetura de que o Sr. Jacinto Dores havia sido morto entre as 15:30 e as 17:00 daquele sábado por um ou pelos dois membros do casal Guerra, os quais, depois disso, teriam encenado o suicídio da vítima através do truque do quarto fechado.
Com efeito, entre outras diligências e exames, era necessário ouvir, em separado, os quatro moradores da habitação, isto é, a filha e o genro de Jacinto Dores bem como Maria da Paz e Inocêncio Guerra, tendo em vista registar as suas declarações sobre tudo o que fizeram naquela tarde, como e quando, saber das relações que existiam entre eles e, claro está, detetar e, se necessário, explorar quaisquer contradições; examinar o corpo e as vestes da vítima para detetar sinais de eventual violência exercida para além do tiro; verificar possíveis indícios de arrastamento do corpo; examinar as unhas do morto para ver se teriam material atribuível ao assassino; examinar o trajeto da bala para determinar a posição da arma no momento do disparo; confirmar ou não a morte como consequência direta do tiro sofrido; conferir a conjugação ou não entre a pistola, o projétil e a cápsula; verificar sinais de limpeza propositada da arma além de eventuais impressões digitais nela impressas; verificar, ainda, possíveis impressões digitais deixadas na cápsula; conferir a propriedade e registos relativos à pistola; rever todas as fotos da cena encontrada na casa de banho, nomeadamente para confirmar a presumível artificialidade da posição em que o corpo se encontrava.
Nota de esclarecimento do Autor:
O enunciado deste desafio saiu com um erro de que, como autor, sou o único responsável. Ele aparece no parágrafo que diz “Ela dirigiu-se logo a Maria do Céu, perguntando se tinha acontecido alguma coisa ao Sr. Dores. A viúva, em novo assomo de lágrimas, explicou-lhe o sucedido”. Assim, onde está escrito “A viúva” deveria ter aparecido “A filha deste”. O erro, embora não impeça que se chegue a uma solução como a que se deu atrás, não deixa de levar os solucionistas a colocar perguntas e a perder tempo até poderem concluir que, muito provavelmente, ali houve gato. Fiquei desolado com o que aconteceu e peço que aceitem as minhas sinceras desculpas.