EM CACHOS

Não gostamos de ser usados, evitamos os lugares onde somos tratados como objectos, gostamos de fazer aquelas coisas em que podemos deixar a marca da nossa personalidade. Um trabalho que pudesse ser feito igualmente por uma máquina não nos enche as medidas, ainda que sirva para nos dar a subsistência.

Somos pessoas e preferimos que nos tratem de acordo com isso.

É interessante, sem dúvida, que nos digam “fazes isso bem” ou “estava a precisar de uma pessoa com as tuas características”, mas bom mesmo é quando, sem sermos especialmente úteis, ou mesmo quando não fazemos muito mais do que incomodar, notamos no olhar de outras pessoas um “é bom que existas”.

Sermos queridos incondicionalmente tal como somos – com a nossa boa vontade, com a nossa maneira de ser, com erros e defeitos – é parte fundamental da nossa estabilidade.

Mas isso só acontece plenamente na família.

Noutros ambientes, estamos para cumprir uma função e somos avaliados por aquilo que produzimos. Mas na família estamos porque é lá o nosso lugar. Temos de contribuir, temos uma função, naturalmente; mas não é para cumprir uma função que estamos na família. Não somos despedidos se a cumprirmos mal. Não se expulsa uma mãe que habitualmente deixa as luzes acesas sem necessidade, ou um pai que gosta demasiado de futebol, ou dois irmão que frequentemente resolvem as suas questões à pancada.

Na empresa, na escola ou no escritório,  se nós faltarmos, seremos substituídos por alguém que faça aquilo que nós fazíamos anteriormente. Na família, contudo, o negócio são as pessoas: a construção das pessoas, a sua felicidade. A tarefa que a família tem de me construir termina quando eu acabar. Deste ponto de vista, não é possível substituir-me.

Duas das piores coisas que podem acontecer a alguém são a rejeição e a indiferença. São injustiças tremendas, e não as podemos suportar. Há pessoas que fizeram coisas terríveis em reacção ao facto de terem sido rejeitadas por quem as devia amar ou estimar. A sociedade sabe bem que muitos criminosos são apenas pessoas que não foram amadas. Que muitos “monstros” não passam de pessoas necessitadas de carinho. Uma mãe e um pai sabem perfeitamente que um abraço ou um beijo, ou um passeio à beira-mar em dedicação completa, podem impedir o início de um caminho mau.

Quando a família não existe ou, por qualquer motivo, não funciona corretamente, nada consegue tomar o seu lugar com perfeição. Privadas de algo que teria sido fundamental para a sua estabilidade, muitas pessoas não conseguiram ultrapassar essa circunstância, e de modos muito diversos manifestam desequilíbrio, insegurança ou revolta.

Estas pessoas não só sofrem, e sofrem muito: também podem fazer mal à sociedade. Além de tentar curar-lhes as feridas, deve procurar-se que não aconteça o mesmo a outros.

É importante proteger as famílias, porque elas, embora sejam rochedo forte e porto seguro, são simultaneamente frágeis. A sociedade, no fim de contas, é um conjunto de famílias: cada tijolo do edifício social corresponde não a uma pessoa, mas a uma família. Porque é natural que as pessoas não vivam soltas, mas existam em cachos, como as uvas.