De frente para o Douro, mas sem o ver, tendo por vistas o mamarracho de betão imposto pelo teleférico e uma fileira de barcos parados sobre o leito do rio que me tolhem o horizonte, vou desfiando os meus pensamentos. Reclino-me sobre a esquerda, ergo os olhos para o morro do Lugar de Gaia e questiono-me sobre o porquê de tanto desleixo, depois de me fixar (pela enésima vez) na Lenda de Gaia e de Rei Ramiro. Diz a Lenda que foi no Castelo, que existia neste morro da margem esquerda do Douro, que a frágil e sedutora Gaia, Rainha das Astúrias e consorte de Rei Ramiro, viveu com o Rei mouro Alboazar um grande amor consumado em traição que pagaria com a própria vida. Mas não se ficam por aqui os relatos dos acontecimentos que fazem a memória deste Lugar carregado de simbolismo e misticismo, repleto de vestígios de uma história que remonta a tempos medievais e que os achados arqueológicos ajudam a caracterizar. Por ali passaram romanos, muçulmanos, galegos e povos, que se desvendam nas lendas de Rei Ramiro, de Gaia e de Santa Liberata; nas marcas do Castelo, desmantelado pelas gentes do Porto, em 1386; na Capela do Bom Jesus de Gaia, que foi sede episcopal dos Suevos, anterior à do Porto, e fundada por S. Basílio; ou na fonte que se esconde na Quinta do Conde de Campo Belo, que foi pertença dos descendentes dos Senhores de Gaia, linhagem iniciada por Álvaro Anes de Cernache.
Esta extraordinária riqueza histórica, os inestimáveis vestígios arqueológicos do Castelo, a particular morfologia do terreno e o majestático sistema de vistas (um miradouro privilegiado sobre o rio e a cidade!) assumem-se como as grandes potencialidades deste Lugar, particularidades que justificariam por si só a reabilitação do edificado existente e a qualificação do espaço público como forma de revitalização da zona e seu aproveitamento turístico. Mas o que se tem visto no Lugar de Gaia por parte de quem tem governado a cidade nas últimas décadas foi… quase nada. E dessa triste e indesculpável omissão resultou um povoado quase deserto, degradado e votado ao abandono, com parte do seu edificado em estado de quase ruína eminente. Impunha-se por isso que os governantes do município despertassem para estratégias de atuação ousadas que fossem capazes de empolgar e entusiasmar a cidade e os cidadãos, explorando finalmente o potencial deste belo Lugar.
Há muito que ali se aconselha uma urgente e profunda intervenção, que requer um plano de investimentos devidamente sustentado em estudos e projetos complexos, que prevejam uma estratégia a três dimensões: dimensão ambiental e paisagística (assumindo o Lugar de Gaia como um valor fundamental da estratégia de reabilitação da cidade); dimensão patrimonial e cultural (garantindo a valorização e o reforço da identidade única do território através da revitalização e o reforço da sua identidade única, através da revitalização e reabilitação do património em todas as suas vertentes: natural, histórica, cultural e económica); e a dimensão socioeconómica (visando a criação de condições de promoção da fixação da população, designadamente através melhoria das áreas habitacionais existentes).
Mas muito pouco se tem feito para salvar este importante património material e imaterial ou explorar a sua riqueza histórica. Razão que me leva hoje a saudar como muito bem-vinda a iniciativa recente do município, traduzida num plano de algumas intervenções de requalificação e valorização da zona, que resulta de um investimento total de 3,5 milhões de euros, cofinanciado em 85% por fundos comunitários no âmbito do PEDU, Norte 2020 e FEDER, que tornou viável a requalificação do lavadouro e balneários públicos ali existentes, a substituição de infraestruturas de águas e eletricidade, a introdução de soluções de drenagem das águas pluviais, a eliminação de obstáculos à circulação pedonal, a introdução de pavimentos mais seguros e de nova iluminação, bem como a criação de várias zonas de estadia e contemplação da paisagem e de descompressão na malha urbana estreita e sinuosa.
A obra incluiu ainda a requalificação e transformação de um edifício de habitação unifamiliar em duas frações que virão a integrar o programa municipal de arrendamento acessível, bem como a instalação de escadas rolantes e de elevadores (há muito prometidos!) que ligam a marginal do rio Douro a este núcleo histórico de topografia acidentada, promovendo, assim, a mobilidade, ao melhorar não só o acesso da população residente aos transportes públicos e serviços localizados à cota alta, bem como ao reforçar a ligação entre o Castelo de Gaia e a cidade envolvente, para quem nos visita ou quer conhecer melhor o Lugar que foi território de imaginação de Almeida Garrett, que ali viveu e brincou em miúdo, e ouviu falar pela primeira vez da Lenda de Gaia, que viria a integrar no universo literário, e onde nasceu o seu interesse pela nossa cultura popular que defendeu de forma veemente.
Mas ainda há muitíssimo por fazer no Lugar de Gaia, como noutros dos nossos núcleos históricos, pelo que me pergunto se os governantes locais a eleger nas próximas autárquicas serão capazes de nos empolgar e entusiasmar, dinamizando todo este enorme potencial social, económico e cultural do nosso concelho, ao contrário da apatia e falta de imaginação evidenciadas pelos seus antecessores? Fica a pergunta! Que venha a resposta!…