O nosso convidado de hoje para mais uma reflexão sobre o teatro profissional em Gaia é o ator, marionetista e encenador Igor Gandra. Ele iniciou a sua formação artística no Balleteatro Escola Profissional, tendo concluído o curso de dança e teatro em 1993. A partir desse ano, integrou o elenco permanente do Teatro de Marionetas do Porto, dirigido por João Paulo Seara Cardoso, e em 1999 criou o Teatro de Ferro, que codirige com Carla Veloso e que teve sede social no centro histórico de Gaia. Como docente e artista tem colaborado com diversas instituições, como a Universidade de Évora, Instituto Superior de Ciências Educativas, Balleteatro – Escola Profissional ou a Escola Superior de Educação de Lisboa e a Universidade de Nova York – Abu Dhabi. É desde 2009 diretor artístico do Festival Internacional de Marionetas do Porto e integra desde 2013 a comissão artística das Comédias do Minho. Premiado pelo Clube Português de Artes e Ideias no concurso O Teatro na Década em 1997, vencedor do Prémio Revelação Ribeiro da Fonte-Teatro 2004 e galardoado com o Troféu Aquilino Ribeiro-Revelação 2005, Igor Gandra foi distinguido com a Medalha de Mérito Cultural e Científico de Gaia em 2005.
Na tua opinião, que tiveste num passado recente contacto com a realidade cultural local, o que pode explicar a pouca expressão do teatro profissional em Gaia?
É com certeza o resultado de um processo bem mais longo e complexo do que aquilo que pude observar ao longo dos cerca de dez em que o Teatro de Ferro esteve sediado em Gaia. Correndo o risco de forçar paralelismos e comparar o incomparável, parece-me que Gaia enquanto cidade da “outra margem” nunca tentou realmente fazer aquilo que Almada começou a construir bem cedo na história da democracia em Portugal e que há muito conseguiu, quero dizer, assumir uma identidade e uma dinâmica próprias – com projetos consistentes e investimento continuado. Uma certa falta de entusiasmo político pelo lugar da cultura e particularmente pelo papel do teatro na Cidade, não é, evidentemente, de agora. Não obstante algumas coisas interessantes que foram acontecendo, particularmente nos últimos anos, a verdade é que algo tem feito com que os artistas e as companhias profissionais nunca tenham chegado a sentir-se no “lado certo” do rio. Mas acredito que, haja vontade, é sempre possível reverter esta situação.
Se tivermos como exemplo essa cidade da margem esquerda do Tejo, que se transformou num dos principais focos teatrais do país, o que falta fazer em Gaia?
Antes de aventar alguma possibilidade, duas coisas: a primeira é que não é possível replicar mecanicamente nenhum modelo, a segunda é que a essa pergunta só poderão realmente responder aqueles que neste momento operam e trabalham na cidade, os agentes culturais, as forças vivas locais e, claro, os decisores políticos. Ainda assim, algumas ideias, talvez um pouco genéricas, ocorrem-me ao pensar nisto. Parece-me necessário operacionalizar as ligações entre os eixos da programação, criação e formação/ensino artístico, sem esquecer a articulação com mediação cultural e o chamado desenvolvimento de públicos. Para mim, uma das principais riquezas da cidade é a sua diversidade territorial e socioeconómica: é um concelho urbano, industrial (e pós-industrial), litoral, ainda mantém zonas de ruralidade e em algumas zonas consegue ser tudo isto ao mesmo tempo! Esta especificidade tem de ser tida em conta nas ações que vierem a ser tomadas, nos caminhos que vierem a ser seguidos.
Visando a implementação da cultura teatral em toda a sua diversidade e abrangendo a globalidade do concelho, que caminhos deviam ser seguidos?
Falando concretamente do teatro e das artes performativas, penso que há algumas lacunas que ainda são muito evidentes. Uma destas é a fixação de companhias e coletivos (uns com uma certa escala, equipa, etc., outros eventualmente mais pequenos, mas em ambos os casos com projetos artísticos capazes de se relacionar com o território). A outra é uma inclusão mais regular e consistente dos teatros e auditórios municipais nos circuitos nacionais e internacionais das artes performativas – criando uma programação regular que por um lado acolhesse a criação local e, por outro, a colocasse em convívio com propostas de origens diversas. Uma dinâmica como esta requereria alguma articulação entre todos os atores, mas iria seguramente enriquecer a oferta cultural, criar emprego no setor, e potenciar a imagem da cidade enquanto lugar de cultura teatral viva. A criação destas possibilidades iria, por exemplo, colaborar para uma ligação mais natural e facilitada entre o mundo do teatro amador, que em Gaia tem uma tradição importante, as escolas artísticas e o universo das diversas profissões do teatro. Importa também dizer que há desenvolvimentos que considero muito positivos que se deram nestes últimos anos: a participação da cidade de Gaia nos festivais DDD e FITEI (e num futuro próximo, no FIMP) ou ainda a Bienal de Artes de Gaia que, não se inscrevendo exatamente nesta disciplina, tem uma origem local e uma importância crescente no panorama da vida cultural da cidade. Penso que o caminho deve passar por um equilíbrio entre estes (e outros) grandes eventos de maior visibilidade e todo o outro trabalho que só se torna efetivo e transformador com a persistência, a insistência no trabalho aturado e feito em conjunto com os agentes culturais, com os artistas. Isto só é possível com uma conjugação de vontade política e de investimento público. A cidade tem um potencial que importa realizar. Uma parte da minha vida está ligada a esta cidade. O Teatro de Ferro, esteve instalado aproximadamente uma década em Gaia. Ocupámos dois armazéns contíguos na Beira-Rio que adaptámos à nossa atividade. Nesse espaço trabalhámos muito e crescemos como artistas e como profissionais. Tenho também uma ligação a este território que é também afetiva (a minha mulher e as nossas filhas nasceram aqui, além disso os nossos pais vivem no sul do concelho). A minha visão é também determinada por tudo isto, é simultaneamente próxima e distanciada, marcada pelo que vivemos, pelo que fizemos e também pelo que, na altura, não conseguimos fazer. O caminho é em frente.
Além de ser um poderoso instrumento de inclusão e cidadania, o teatro pode constituir-se num importante meio de criação de valor económico. Concordas?
Com a primeira parte, sem dúvida. A segunda obriga-nos a pensar um pouco mais, demoradamente. Desde logo na questão do teatro enquanto atividade profissional e na qualidade do emprego neste mesmo setor – não obstante os avanços que se anunciam é algo que, no presente, ainda deixa a desejar, quer ao nível da estabilidade e dos direitos laborais, quer ao nível do valor médio das remunerações. Não é difícil perceber que o teatro (enquanto setor produtivo) pode ter um impacto importante na economia de uma cidade – tem desde logo na vida dos que trabalham ou prestam serviços diretos e indiretos à criação, apresentação, circulação e divulgação de espetáculos. Para a vida dessas pessoas e empresas é seguramente importante. Mas se quisermos pensar a uma escala maior, ou seja num efeito estruturante na vida das cidades – exemplos vindos de França, que conheço razoavelmente, como o do Festival de Avignon ou Charleville-Mézieres (onde se realiza a cada dois anos o Festival Mundial de Teatro de Marionetas) merecem ser observados com alguma atenção – em ambos os casos estamos a falar de eventos de grande importância simbólica e que movimentam milhares de profissionais e dezenas de milhares de espectadores vindos de todo o mundo. Para além do papel central das gentes do teatro, é fundamental a articulação entre o estado central e os municípios (e no caso francês as regiões – em Portugal ainda não temos, infelizmente esta dimensão intermédia de decisão política). Foi a conjugação de vontades e a compreensão dos decisores políticos da importância destes eventos (também no plano económico – são gerados muitos milhões nas cidades e nas regiões que acolhem estes festivais) que permitiu que estes adquirissem a relevância que têm hoje, mas foi a partir de uma realidade cultural e socioprofissional muito concreta que foi possível fazê-los existir. Ainda assim, sublinho que é preciso observar estes exemplos com atenção, pois nem tudo é tão interessante como pode parecer…mas isto era outra longa conversa. Mas estávamos a falar da escala, da dimensão que determinada atividade tem de atingir para se tornar importante como “meio de criação de valor económico” e nessa medida é interessante pensar também em escalabilidade, ou seja na capacidade de produzir mais valor a partir da capacidade instalada ou operando apenas pequenas transformações. Penso que ainda estamos longe deste ponto, ainda faz falta organizar, financiar e estruturar, só depois se poderá perceber se é possível realmente “criar valor económico” a uma certa escala. Imaginar que podemos queimar etapas e se pode saltar imediatamente para “o evento” é como se tem verificado, em regra geral, contraproducente. Depois da “festa” resta pouco mais do que um grande vazio e não é possível cumprir o que estes acontecimentos socioculturais acabam sempre por, de alguma forma, prometer: a inclusão e a cidadania por um lado e a criação de valor económico por outro.
Nota final: esta entrevista foi realizada numa altura em que Igor Gandra acabara de estrear em Lisboa, no São Luiz-Teatro Municipal, no âmbito do FIMFA, o espetáculo “Maiakovski – O Regresso do Futuro”, que dirigiu numa cocriação Teatro de Ferro & Teatro de Marionetas do Porto, e quando se preparava para “mergulhar” na programação da edição deste ano do FIMP – Festival Internacional de Marionetas do Porto, que contou com a presença de alguns dos mais estimulantes projetos de teatro de marionetas, de diferentes linguagens e oriundos de diversos países, que ocuparam várias salas da cidade do Porto entre 15 e 24 de outubro passado. Como em 2021 passaram por Gaia alguns espetáculos do DDD-Festival Dias da Dança e do FITEI-Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, houve quem sonhasse que aconteceria o mesmo com o FIMP. Mas infelizmente não passou de um sonho. Talvez em 2022 isso aconteça. Quem sabe?!…