Luís Pessoa, contista, ensaísta, produtor de enigmas, amante e divulgador da escrita policial, animador da secção Policiário da edição dominical do jornal Público, rubrica que mantém viva há mais de vinte e cinco anos, é o grande vencedor do Concurso de Contos “Um Caso Policial em Gaia”.
Nos lugares seguintes, posicionaram-se os concorrentes Rigor Mortis, António Raposo e António Jesus de Serra Nunes, por esta ordem, com os contos “Cruzeiro no Rio Douro”, “O Roubo da Abelha Gaia” e “Assalto ao Banco”, respetivamente. Recordamos, entretanto, que o Júri distinguiu ainda com menções honrosas os concorrentes Madame Eclética e Daniel Gomes, com os contos “Uma Noite no Convento” e “Viagem de Teleférico”, respetivamente.
No caso do grande vencedor, para além do respetivo troféu, conquistou também o direito à publicação do seu conto nas páginas do AUDIÊNCIA GP. E não sendo possível publicá-lo na íntegra, devido à sua extensão, vamos fazê-lo em seis partes, a partir desta edição.
Sol de Inverno, de Luís Pessoa
I – Parte
O dia amanheceu frio. O Sol brilhava em todo o seu esplendor, mas o vento cortante que soprava dos lados do Marão, fazia com que todos se refugiassem em roupa bem quente, encolhendo o pescoço para quase só sobrarem as orelhas de fora.
Carreira estava debaixo de fogo. A sua vida tinha dado uma cambalhota quando meses atrás se envolveu na investigação de um caso muito completo, em Lisboa, que o obrigou a correr riscos extremos, que se estenderam à sua família, à mulher Vera e aos filhos Joca e Sara. No momento de maior risco, foi mesmo forçado a retirar toda a sua família de Lisboa e instalá-la na aldeia, perdida na Beira Alta, numa operação de recurso, na calada da noite, em que foi auxiliado pelo seu colega e amigo de sempre, o Farinha. Toda a restante investigação acabou de forma trágica, com elevados danos colaterais, o que deixou profundas marcas em Carreira. Dois civis foram mortos em trocas de tiros e a repercussão nos meios de comunicação foi muito forte, ao ponto de quase ter sido crucificado na praça pública.
Mas o caso foi concluído, ainda que com alguns indivíduos bem referenciados por Carreira a escaparem às malhas da justiça. Só que ele sabia bem quem eles eram e o que fizeram e eles sabiam muito bem que estavam sinalizados por ele. Não surpreendeu, por isso, que o inspetor aparecesse ali, em Gaia, com o rio Douro a seus pés, seguindo uma nova pista em que acreditava que os tais indivíduos estavam envolvidos, numa nova história que envolvia vinhos, contrabando, moeda falsa, ouro, sem descurar tráfico de influências, porque havia muita “caça grossa” associada.
Ali mesmo, debruçado sobre o Douro, no Mosteiro da Serra do Pilar, com um frio de rachar, apenas estava carreira e um tipo baixote, de tez escura, gesticulando exageradamente, a falar a um telemóvel. Olhava freneticamente para o rio, onde um barco manobrava tentando uma acostagem ao cais de um dos armazéns de vinho do Porto. Com um pouco mais de atenção, Carreira quase ficou com a impressão que o homem comentava a manobra a que assistia.
Repentinamente, virou-se para Carreira e comentou irritado:
– Aquele gajo não percebe nada daquela m…
E logo voltou ao telemóvel, numa linguagem entrecortada por um chorrilho de asneiras e sons sem sentido.
Carreira assistia a tudo, incrédulo, sem perceber o que fazia ali aquele homem, àquela hora da manhã, num dia gélido e desagradável, agarrado a um telemóvel. Provavelmente o homem pensava o mesmo dele, ou nem tempo tinha para isso, tal era a concentração que evidenciava, olhando para o barco a atracar e falando, falando, gesticulando com a mão liberta. Finalmente o barco consegue encontrar a sua rota e acostar sem mais problemas e o homem gritou um “aleluia!” que ali pareceu descabido, como foi o erguer dos dois braços ao alto e o sorriso que lançou na sua direção, enquanto se afastava, deixando-o só.
Aproximou-se do varandim e pareceu-lhe notar que, ao mesmo tempo que o barco se imobilizava, um tipo espreitou lá para cima, na sua direção, para logo se recolher.
– Deformação profissional… – pensou em voz alta.
Todos aqueles armazéns estavam há muito debaixo de olho. Havia um volume imenso de vinho que se sabia ser contrafeito, que tinha de passar obrigatoriamente por ali, entrar sem controlo e sair devidamente certificado. Um negócio de milhões, que tardava a ser desmantelado. Havia vigilância nas estradas de acesso, fazia-se a contagem física e real dos barris que eram descarregados, quer de camiões, quer dos barcos, tudo parecia estar absolutamente controlado, mas o vinho continuava a ser falsificado. Em algum ou alguns daqueles armazéns entrava vinho clandestino, obviamente de pior qualidade, para sair com rótulo de excelência e render muitos milhões.
Carreira desceu ao cais e passeou despreocupadamente, pensando no modo que poderia ser utilizado pelos infratores para meterem lá dentro o produto, sem serem vistos. Não tinha dúvidas, os barcos acostavam e os barris eram descarregados, rigorosamente contados e controlados na sua qualidade. Havia agentes que verificavam todas essas tarefas e nada de anormal detetaram; quando o meio usado era terrestre, o processo era idêntico e nada ficava por vasculhar…
– Carreira, pega de imediato na tua família, que eu vou já para aí… – dissera-lhe o amigo Farinha.
Com a mulher Vera e os filhos prontos, apenas acompanhados pelo estritamente necessário e possível naquele instante, o carro partiu na escuridão da noite, depois de despedida fugaz, conduzido por agente experiente.
– Que se passa, Farinha, o que aconteceu?
– Estás debaixo de fogo, pá! Tu e eles, por isso retiramo-los desta cena e agora é só a ti que temos de proteger aqui. Eles ficam completamente seguros, confia em mim.
Sacudiu a cabeça com alguma violência, para afastar essas recordações que lhe eram incómodas. Sentiu raiva dos que lhe perturbaram o rumo da sua vida, certamente uma raiva igual à que sentiam esses tipos contra si, mas quando abraçou a profissão sabia ao que estava sujeito.
Cumprimentou com ligeiro aceno o agente que estava a controlar os movimentos por ali e seguiu o seu caminho.
Nessa noite, Carreira não saiu do escritório onde centralizou a investigação, um apartamento situado na marginal de Gaia, paredes meias com o que imaginava ser o centro do vulcão e onde pensava encontrar as pontas para puxar. Da janela ia notando as movimentações quase permanentes de pessoas entrando e saindo, mas nada de particularmente significativo.
(Continua na próxima edição)