Reforçando que “a democracia é uma conquista diária”, Eduardo Vítor Rodrigues, presidente da Câmara Municipal de Gaia, falou, em entrevista exclusiva ao AUDIÊNCIA, sobre a importância dos 51 anos da Revolução dos Cravos. Ao longo de uma reflexão centrada na importância do poder local, o autarca apontou as deficiências, que ainda estão por resolver, defendendo uma maior participação dos jovens na vida política e cívica, porque acredita que a democracia só é plena quando é vivida de forma próxima e participativa.
O poder local foi uma das maiores conquistas da Revolução dos Cravos. Como vê a evolução desde então até agora?
Tem sido uma evolução num certo sentido contraditória. Por um lado, um aumento absolutamente significativo de competências, quer dizer, quem se lembra ou quem imagina o que era uma Câmara Municipal nos finais dos anos 70 ou nos anos 80, lembra-se de Câmaras Municipais a tentarem instalar água e saneamento para chegar às torneiras e às casas das pessoas. Hoje, não é nada disso, as Câmaras Municipais são pequenos estados num certo sentido, tratam desde as creches até aos lares de idosos, seja diretamente, seja através das parcerias institucionais com a economia social, portanto, aí acho que a mudança é absolutamente radical. Hoje temos Câmaras Municipais que, comparativamente com aquilo que a Câmara era há 15 anos atrás, não há comparação possível. Hoje, temos 3800 funcionários, temos um orçamento que nunca tivemos, temos áreas de intervenção que são absolutamente novas, tudo isso. Depois há o outro lado, é que todo este envolvimento e até o nível de exigência das pessoas não tem uma correspondência direta nos recursos disponíveis, porque o Estado tem-se afirmado muito pelo princípio da descentralização, mas tem sido muito mais competente a descentralizar tarefas e a descentralizar competências do que a descentralizar os recursos financeiros para as exercer. E, portanto, desse ponto de vista eu acho que o 25 de Abril é sempre uma oportunidade para, não é para estarmos sempre a falar do dinheiro, mas é para lembrarmos que até para que as Câmaras cumpram a sua missão, têm de ter uma estrutura financeira que seja adaptada. E se eu digo isto em relação às Câmaras, imagine o que devo dizer relativamente às Juntas de Freguesia, que hoje estão com orçamentos muito diminuídos, com competências cada vez mais crescidas e, para além de competências maiores, há depois as expectativas das pessoas que são maiores do que as competências e os meios são reduzidos. Portanto, eu acho que o poder central tem de ser igualmente competente a descentralizar os recursos como é a descentralizar as competências.
O que o levou a enveredar pelo caminho da política local?
Acreditar que é possível fazer as coisas bem pelas pessoas, fazer crescer a nossa terra e resistir às dinâmicas atuais de degradação da democracia e do poder local, mas, sobretudo, de tentativa de degradação dos seus protagonistas, transformando muitas vezes a política num lodaçal.
Acredita que no contexto do atual clima de instabilidade política, estamos perante uma iminente ameaça à democracia?
A instabilidade em si mesma, enquanto ato eleitoral, não. As razões da instabilidade, sim. Quando se passa um mês e meio ou dois meses a falar sobre o parecer de uma empresa, ou sobre se o primeiro-ministro pode ou não pode ter uma empresa, ou sobre se o líder da oposição teve participação na indemnização à Alexandra Reis, quando o debate está neste calibre, eu acho mesmo que os populistas estão a ganhar e quando os populistas ganham, a democracia perde. Agora, quero acreditar que isto também seja uma fase que nós estamos a viver. A democracia também tem as suas crises, como tudo, e, portanto, da crise há de sair revigorada e o que eu espero é que os cidadãos aproveitem o momento para distinguir o trigo do joio, para perceberem o que é que está em causa e não se deixem alimentar pelo frenesim das redes sociais e pelas palavras fáceis dos populistas e isso é que é o perigo que a democracia enfrenta neste momento.
Na sua opinião, qual foi a importância de, ao longo dos últimos 12 anos, ter procurado aproximar os cidadãos do debate democrático, sobre a construção do concelho?
É muito grande, embora é absolutamente fundamental que a democracia passe por uma maior participação e um maior envolvimento das pessoas. Isso ao nível autárquico tem algumas dificuldades, porque o papel das Câmaras e das Juntas de Freguesia é de muita proximidade, o que significa de resolução de problemas de proximidade, ou seja, problemas do dia a dia e isso transforma a participação numa participação muito instrumental, quer dizer, eu participo porque tenho um interesse em concreto na minha coletividade, na minha rua ou nas árvores no sítio onde eu moro. As pessoas têm muito essa visão do seu problema. Acho que é preciso, é que para além do que temos feito, como as presenças abertas, tantas formas de envolvimento que tivemos com as pessoas e que também depois se repercutiram na votação, por exemplo, porque duas votações seguidas de 60%, não se pode dizer que seja uma coisa comum, nunca foi em Gaia e não é comum no país. Mas, acho é que o Estado central tem também de implementar estas práticas, porque aí a participação é um bocadinho menos instrumental, estamos a falar de valores coletivos, de âmbito nacional, europeu, global e, portanto, as pessoas têm um sentido da importância das coisas que estão a ocorrer, que não se traduzem na soleira da porta, mas que têm a ver com o mundo em que vivem e o contexto da guerra ou da paz, o contexto da instabilidade económica, da instabilidade agora comercial que as tarifas estão a trazer, ou seja, tudo isto tem de ser parte do debate das pessoas, no café, no grupo de amigos, na família, porque eu acho que nós ainda somos muitas vezes atordoados por aquela máxima salazarista de que não se fala política. Cada um tem o seu pensamento, não se fala de política e nunca estivemos numa situação em que fosse tão preciso falar de política, como hoje.
Qual é que considera que vai ser o legado que vai deixar para as futuras gerações?
Eu não tenho muito essa visão, quer dizer, nem essa preocupação, eu acho que o legado tem muito que ver com a questão histórica e a história um dia alguém fará sobre o concelho. Acho que, hoje, em Vila Nova de Gaia há um contexto quer de envolvimento de jovens, quer de participação, quer de medidas sociais, quer dizer, acho que um contexto que levou a que pela primeira vez na nossa história nós fossemos Capital da Juventude, em 2025, que não é capital de 2025, é o corolário de um trabalho que foi feito durante anos. Portanto, acho que quando olhamos para as escolas, para os serviços de saúde, para as creches que ganhamos no PRR, para tudo isto, eu acho que o que os jovens têm de fazer é sentirem-se beneficiados, enfim, sentirem-se prendados com o facto de viverem num país extraordinário como Portugal, numa cidade espetacular como Gaia. Apesar de tudo, quando vemos na televisão que se passa por esse mundo fora, temos de sentir orgulho no sítio onde estamos e sentir orgulho é também trabalhar para que o sítio onde estamos seja cada vez melhor e nós possamos fazer uma mudança do mundo à nossa escala. Há muita gente que está preocupada em mudar o mundo, pensando que consegue mudar o mundo com a sua ação e nunca consegue, nunca conseguirá. Consegue, quando muito, mudar o seu mundo e o mundo que nos envolve. Acho que é isso que as pessoas devem fazer. Se o meu legado foi contribuir para ter pessoas melhores, mais educadas, mais saudáveis, num concelho mais aprazível, com melhores parques, já fico contente, mas isso não é a mim que me compete. Não andei aqui nem atrás de legados, nem atrás de heranças, nada disso, é atrás de fazer todos os dias o melhor que a gente pode e sabe e pensar que a nossa história de quase 900 anos de Portugal é uma história em que depois vêm outros e continuam o trabalho. Não tenho dúvidas que o mundo será cada vez melhor, portanto não tenho nada a ideia, que depois de mim o dilúvio, como outros.
A seu ver, nos dias que correm é cada vez mais importante incentivar os jovens a participarem ativamente e a envolverem-se na comunidade, para que Abril se cumpra?
Claro, até porque, hoje, as ameaças são muito mais poderosas, porque no passado nós dizíamos que era muito difícil mobilizar os jovens, porque os jovens tinham as suas próprias formas de sociabilidade, o seu mundo, a sua geração. Nós, hoje, temos, ao mesmo tempo, jovens interpelados por coisas com um poder absolutamente extraordinário, como as redes sociais e o que isso gera de desinformação, como um certo individualismo, uma sociedade que, infelizmente, é menos gregária e muito mais centrada em cada um, às vezes um individualismo que parece ser até muito egoísmo e, portanto, os desafios que, hoje, os jovens têm são desafios colossais. A minha convicção é que também os jovens de hoje são muito mais preparados do que eram os da minha geração para enfrentar tudo isso e para ultrapassarem os problemas. É nisso que eu acredito e, portanto, acredito sempre que as coisas tendem a melhorar.
Qual é a mensagem que gostaria de transmitir nos 51 anos da liberdade em Portugal?
A democracia não é uma conquista definitiva, a democracia é uma conquista diária, é um trabalho de cuidado, de cultivo, de tratar bem, até de carinho, e a democracia tem de se afirmar dessa maneira, porque o facto de ter 50 anos ou de ter 100 anos, e noutros países tem mais, não garante absolutamente nada, sem querer usar exemplos dos dia de hoje, basta olhar para os Estados Unidos para se perceber que, muito rapidamente, o que se conquista pode perder-se, e perde-se, porque as pessoas se deixam iludir e se deixam atordoar. O que eu desejo é que as pessoas sejam cada vez mais informadas, cada vez mais atentas, mais participativas, mais exigentes e dessa forma a democracia será mais forte. Se pensarmos que isto é um dado adquirido e não tratarmos da planta, ela vai murchar.