“O TEATRO É UM JOGO DEMOCRÁTICO DE AFETOS E CUMPLICIDADES”

José Caldas, ator, encenador e dramaturgo, brasileiro radicado no nosso país desde 1974, é o nosso convidado para mais uma reflexão sobre o teatro profissional em Gaia. Estudou teatro no Brasil, em Inglaterra e em França, e fundou várias companhias em Portugal. Trabalhou com a esmagadora maioria das principais companhias lusas, de norte a sul do país, e revolucionou o teatro para a infância entre nós. Conquistou por cá três Prémios da Associação de Críticos, tendo alcançado ainda o Prémio Biennale du Théâtre de Jeunes Publics, em Lyon, e o Prémio María Casares, na Galiza. Exigente e combativo na defesa dos direitos dos artistas e frontal nas suas apreciações sobre a profissão, mas profundamente leal, foi crítico de teatro no Jornal de Notícias e no extinto O Jornal, e lecionou teatro na Academia Contemporânea do Espetáculo, na Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo, na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação e na Universidade de Évora. Autor dos livros “20 Anos de Teatro”, “Teatro na Escola – A Nostalgia do Inefável”, “Transgressões Disciplinares”, “40 Anos de Teatro” e “Milagres Profanos – 50 Anos de Teatro com os Grupos Independentes Portugueses”, José Caldas dirige atualmente o coletivo Quinta Parede. A propósito do seu trabalho como encenador e dramaturgista, o exigente e “temível” crítico Carlos Porto, disse um dia que ele “é um homem imprescindível ao nosso teatro, que criou alguns dos mais belos espetáculos do teatro português, que são, ao mesmo tempo, espetáculos que agradam simultaneamente a crianças, jovens e adultos”. Ouvido o crítico, oiçamos o que o próprio tem a dizer sobre o seu trabalho de criador e a importância do teatro como instrumento de inclusão e cidadania.

 

Para começar, em traços muitos gerais, o que mais destacarias do trabalho que realizaste nestes últimos 50 anos com os grupos independentes portugueses?

Talvez destaque a relação criada com os atores dos grupos com os quais trabalhei. Mais do que um encenador a encenar, o que me atrai (inclusive para a encenação) são os afetos e as cumplicidades criadas com quem está em cena. Porque faço teatro, talvez, para não sofrer a solidão – estar juntos tão intensamente no trabalho de invenção e criação de um espetáculo é uma medicina que mantém por longo tempo a sensação de estar junto, de partilhar o exercício democrático. Sim porque o teatro é sempre um jogo democrático de aceitação das diferenças e desta relação construir o que será o ato comunicativo com o público. Acredito que só quem viveu intensamente este labor artístico, quem tirou dele prazer e também algum sofrimento, poderá oferecer aos outros esta metalinguagem que está enraizada no que é visto – o invisível tornado comunicação.

 

Em regra, nunca utilizas textos teatrais nas tuas encenações. Escolhes textos de bons autores e realizas depois um trabalho de reescrita. Porquê esta opção?

No pós-25 de Abril de 1974, fundámos o CPITIJ – Centro Português de Teatro para a Infância e Juventude, um conjunto de grupos que trabalhava para a infância e juventude, um movimento de vanguarda que procurava emancipar as crianças do jugo do teatro “infantil” manipulador, moralista e escolarizado que via as crianças romanticamente e não como seres dotados de inteligência e espectadores de pleno direito. Como um dos criadores deste movimento, e adulto, não encontrava “textos Teatrais” que me interessassem como algo a oferecer a este público. Assim comecei a recriar em cena textos literários para a infância, e não só, também textos para adultos que poderiam interessar aos mais pequenos, como os de Clarice Lispector, de Cecília Meireles, de Agustina Bessa-Luís, de Manuel António Pina, entre muitos outros. Antes de tudo o mais, textos que me tocavam profundamente e que seriam depois encenados com vários níveis de leitura, que poderiam interessar também aos adultos que acompanhavam as crianças (elas não podem ir sozinhas ao teatro, nem escolher aquilo a que vão assistir!!!). Isto porque penso que qualquer boa literatura poderá ser teatro, se procurarmos ler nas entrelinhas o seu potencial dramático.

 

É o que acontece com um conto de C. Perrault que serviu de base a “O Medo Azul”, que apresentas este ano em Gaia, no Festival José Guimarães. Fala-nos dele.

Verdade. Em parte, é o que acontece com a teatralização do conto “O Barba Azul” de Perrault. Em francês “la peur bleue” (o medo azul). O medo azul é um medo enorme. Era o que eu sentia. E pedia sempre a minha avó para o contar novamente. Queria sentir medo outra vez. “Não tenhas medo! Nunca mostres que tens medo!, diziam-me em menino (…) Tornei-me um homem (…) Mas com medo, sempre e muito. Desengane-se quem pensar que é uma peça de teatro para crianças. É, isto sim, uma obra tecida na filigrana do pensamento pulsional desde a infância até ao instante em que é vista, seja qual for a idade contada de cada um” (João Lázaro, psicólogo, in “Milagres Profanos/50 anos de teatro”, Edição Quinta Parede/Sociedade Portuguesa de Autores). Por outro lado, perturbava-me, perturba-me, a violência contra as mulheres. Falar disto em teatro com uma linguagem teatral, poética e metafórica, levou-me ao conto de Perrault. História esta que as amas contavam junto à lareira para toda a família. Por isso criei um espetáculo a solo, o contador de histórias, que, como no teatro e no “faz de conta” das crianças, vive os vários personagens da história que se conta.  Barba Azul é um assassino em série, que nos remete, e talvez nos inquiete, para a série interminável que mulheres violentadas, espancadas e assassinadas em Portugal e no mundo. Enfim, trata-se de um espetáculo para todos os públicos, com vários níveis de leitura, numa viagem ao lado escuro do ser humano.

 

Na tua opinião, de que forma a educação e a cultura, áreas primordiais no processo de desenvolvimento e democratização das sociedades, deviam interagir?

“A arte educa enquanto arte e não como arte educativa” (Antonio Gramsci, filósofo italiano). Este pensamento de Gramsci é a pedra de toque na minha perspetiva quanto à interação entre educação e cultura. Nos anos 80 participei em vários debates e num grupo de estudo do Ministério da Educação e Secretaria de Cultura sobre o tema. A grande questão que se levantava era, pelo menos no que se referia ao teatro para crianças e jovens, fazer perceber à educação a especificidade e a profunda diferença entre escola e teatro. A escola via este público (com honradas discordâncias) como objetos a educar e o teatro como pessoas a libertar, isto é, torná-las mais emancipadas, cultivadas e críticas. Para os educadores as crianças não percebiam os meus espetáculos, por exemplo. Não tinham ainda uma base intelectual para os entender. Mas o teatro e a arte em geral não tocam apenas à intelectualidade, mas sobretudo aos sentidos e ao espírito. Cria uma relação com o mundo invisível do espírito humano. Claro que uma interação entre estas duas áreas poderia ser uma mais valia numa formação mais ampla e democrática dos públicos jovens. Necessitaria, entretanto, de uma formação dos educadores no domínio das artes. Lembro-me que quando criei o meu primeiro espetáculo para crianças e jovens os professores faziam entrar as crianças e iam fumar e conversar fora da sala da representação. Talvez a sua experiência com o teatro “infantilizado” justificasse este procedimento. Um teatro que não respeitava as crianças também não respeitava quem os acompanhava. Ao optarmos por uma dignificação deste teatro e criarmos trabalhos realmente artísticos, com vários níveis de leitura, conquistamos os educadores e paradoxalmente criamos também (com alguns) discordâncias, como: “mas as crianças não entendem”. Penso que há vários graus de entendimento e penso que as crianças têm aquela compreensão profunda da arte, pois a arte é o jogo por excelência. Nos vários seminários que fiz com professores apoiados pelo Ministério da Educação, ou outras entidades, na visita às exposições de artes plásticas, na ida ao teatro e a outras manifestações artísticas mostraram a pouca familiaridade dos educadores com a arte em geral. Penso que esta relação “arte e educação” tem que passar sobretudo por uma formação mais abrangente dos professores. Porque, como diz Gramsci, a arte educa enquanto arte e não como arte educativa.

 

Além de um poderoso instrumento de educação, inclusão e cidadania, o teatro pode constituir-se num importante meio de criação de valor económico. Concordas?

Sim, talvez seja um instrumento de educação num sentido lato, mas penso que o teatro não tem como “missão” educar, mas antes colocar questões, provocar o público artisticamente e contribuir para um alargamento da sua sensibilidade estética. Quanto a inclusão… palavra muito em moda neste momento, devo dizer que se se entende como inclusão abranger um público diversificado de crianças jovens, adultos etc, o teatro será inclusivo. Mas uma inclusão longe de uma visão estreita ou paternalista, uma inclusão natural de espectadores perante a uma arte que é metacomunicativa, abrangendo, como disse anteriormente, todo o ser humano. Sim, instrumento de cidadania, mesmo porque o teatro tem o seu lugar na cidade, onde o indivíduo goza dos direitos civis e políticos de um Estado. Quanto a criação de valor económico, penso na minha longa experiência de teatro no Brasil onde não há subsídios do Estado (não existe neste momento nem sequer um ministério da Cultura) tínhamos que gerir o nosso trabalho e a nossa sobrevivência com a presença forte do nosso público. Por isso pensávamos no público nas nossas criações como colaboradores económicos e nossos interlocutores privilegiados no ato teatral. Sistema que continuo a desenvolver aqui, pois a Quinta Parede produz e cria espetáculos sem subsídios do Estado. Se pensamos numa economia política que gere as relações sociais de produção para atender as necessidades humanas, talvez possamos pensar o teatro como criador de um valor económico.

 

Que papel devia ter o teatro no desenvolvimento da atividade cultural num concelho com o perfil de Gaia, extenso e de grande diversidade histórico-cultural?

O papel que o teatro devia ter já está a ser desenvolvido, por exemplo, no Festival de Teatro José Guimarães, no centro histórico de Gaia, que põe em encontro/confronto grupos amadores e profissionais, e, como tive a oportunidade de participar e ver, já tem um público formado que enche a sala. Entretanto, penso que para desenvolver ainda mais a atividade cultural seria [necessária] a formação de novos grupos, começando por uma prática continuada de espetáculos para a infância e juventude. Além disso, defenderia um trabalho com os professores das escolas de Gaia, sensibilizando-os/exercitando-os na prática teatral. Desenvolvi com outros atores e encenadores a criação de grupos de teatro no secundário durante dez anos, com o apoio da então socialista Câmara Municipal do Porto, onde juntávamos uma pessoa do teatro com um professor de uma escola na criação de espetáculos seriamente teatrais. A Quinta Parede publicou o livro “Teatro na Escola – A Nostalgia do Inefável”, que conta e analisa esta experiência. Este é um teatro na escola que se abre à comunidade circundante, fazendo nascer vínculos de outra ordem com pais, alunos e professores. Penso que um trabalho que exercite estas vertentes tornará o concelho de Vila Nova de Gaia mais crítico e fruidor da cultura, pelo menos da cultura teatral.

 

A terminar, que a conversa já vai longa, diz-nos que projetos tens neste momento em mãos e que ideias germinam na tua cabeça para um futuro próximo.

Neste momento, estou a traduzir o texto “Jérémy Fisher” de Mohamed Rouabhi, e a imaginá-lo em cena, para o encenar no CENDREV [Centro Dramático de Évora], com estreia prevista para novembro – É a história de um rapaz que se vai metamorfoseando em peixe; um texto poético e forte. Entretanto, está patente ao público no Chapitô [Lisboa] a minha exposição “Escapulários” – uma louvação às atrizes e aos atores que comigo trabalharam nestes 50 anos de teatro. E apresentarei no dia 27 de novembro, às 16h30, no auditório da Tuna Musical de Santa Marinha, em Gaia, no âmbito do IV Festival de Teatro José Guimarães, o espetáculo “O Medo Azul”, a partir do conto “O Barba Azul” de Perrault, a que atrás fiz referência.