O segundo original do nosso concurso de contos “Um Caso Policial no Natal”, de que se publica hoje a sua primeira parte, tem por protagonista João Marcelino, rei do futebol amador portuense, conhecido como Jean Pierre Papin da Corujeira, que nos leva até ao coração da baixa da cidade Invicta, ao mítico Coliseu do Porto e ao emblemático Hotel Infante de Sagres, onde trabalha o seu amigo Xico Bala e “habita” um estranho fantasma. E, como estamos na época natalícia, vamos encontrá-lo no Mercado do Bolhão, vestido de Pai Natal, para ganhar uns trocos…
“Um Caso Policial no Natal” – SEGUNDO CONTO
O FANTASMA DO HOTEL INFANTE SAGRES, de Bernie Leceiro
I – PARTE
Começo por me apresentar, João Marcelino, filho de pai angolano e mãe portuguesa, um mestiço nascido e criado na cidade do Porto, conhecido no mundo do futebol amador como o Jean Pierre Papin da Corujeira. Joguei em clubes da cidade como o São Vítor, Marechal Gomes da Costa, Ramaldense e mais recentemente no Pasteleira. Cheguei a estar à experiência no FC Porto … como roupeiro. Fui despedido ao fim de 3 semanas devido à minha dislexia e a ter impresso mal o nome do meu ídolo Varela precisamente no dia de clássico com o Benfica, uma vergonha a entrada em campo e nome Barela estampado nas costas. O meu hobby sempre foi a literatura policial e trabalho em part-time na FNAC de Santa Catarina. Este Natal, para ganhar algum dinheiro adicional, aproveitando os novos movimentos contra a Homofobia, Transfobia, Bifobia e segregação racial, socorrendo-me de uma écharpe cor-de-rosa da minha mãe e uns jeans justos da minha meia-irmã Vanessa, concorri ao lugar de Pai Natal no mercado do Bolhão. Nada melhor para a Associação de Comerciantes que contratar um negro-gay. Não me posso queixar, o salário não é mau, mesmo considerando que tenho de ouvir os maiores impropérios por parte das simpáticas peixeiras e de quando em vez levar nos costados com um ou outro carapau. Tudo pelo espírito natalício: “– Aí faneca, comia-te pelo rabo!”
Mas a estória que vos conto é mais interessante. Há algumas semanas, andava enrabichado por uma artista circense Russa que atuava no Circo de Natal do Coliseu como acrobata aérea e domadora de animais. A noite estava fria e aguardava pacientemente no conforto do café Guarany, observando os painéis de Graça Morais, mesmo por baixo do Hotel Aliados onde a minha princesinha estava alojada e eu ansiava daí a algumas horas dar umas tantas cambalhotas e quiçá ser domado por essa fantástica artista do país dos Czares. Tocou o telemóvel. Era o Xico Bala, meu amigo de escola primária e companheiro de equipa ao longo dos anos nesses campos pelados da cidade do Porto, atualmente trabalha como concierge no Hotel Infante Sagres. Estava nervosíssimo, sussurrando que uma hóspede tinha sido atacada pelo “famoso” fantasma do fundador do Hotel Infante de Sagres que há anos habita a mansarda do edifício e se tornou uma lenda na cidade do Porto à custa da necessidade de a cidade criar mitos e lendas que atraiam turistas. Xico precisava urgentemente da minha ajuda para resolver o assunto e do modo mais discreto possível.
Combinamos encontro no Maus-Hábitos, mesmo em frente ao Coliseu, para não me afastar demasiado do meu alvo principal e não perder a oportunidade de intercambio cultural com o meu cubinho de gelo moscovita.
– Jean Pierre, não imaginas o que me aconteceu… conheci uma hóspede lá do hotel, uma cinquentona enxuta cheia de guito, casada com um empresário de Valpaços. Com a desculpa das estreias da temporada de ballet no Rivoli, vem ao Porto e aproveita para se divertir depois das peças … até já aconteceu antes. Pois bem, desta vez veio com a filha ver a companhia de bailado da Olga Roriz, enquanto a miúda foi para o quarto, levei-a para o sótão do hotel onde fazemos depósito das roupas abandonadas pelos hóspedes, moveis velhos e colchões. Tudo corria como o previsto. Estávamos no único arrumo com janela do lado da praça Filipa de Lencastre, a que tem vista até ao cimo da rua da Picaria quando ouvimos uma pancada seca no compartimento ao lado e passos pesados a afastarem-se no corredor.
Continuou, num tom mais baixo com medo de que alguém o ouvisse, mesmo abafado pelo som da música alternativa que ecoava na sala: – Assustados viemos à porta e de imediato a gaja deu pela falta da sua carteira Tods – acho que custa uma pipa de massa – oferta do morcão do marido, no meio da roupa que fôramos descartando entre a porta de acesso ao sótão e os arrumos onde nos encontrávamos.
– E o telemóvel, não ligaste para saber onde estava a mala? – perguntei.
– O telemóvel estava com ela porque a tarada gosta de se filmar enquanto enfeita a cabeça do marido, para depois mostrar às amigas de Trás-os-Montes. Estou assustadíssimo pois mais ninguém tinha a chave do sótão e só me vem à lembrança a estória do fantasma do comendador. Que cagaço apanhei! Por outro lado, ela acha que é uma tramoia minha e insiste que se a carteira não aparecer até à hora do pequeno-almoço, vai apresentar queixa à gerência do hotel e como é óbvio vou ser despedido pois é expressamente proibido pela administração qualquer envolvimento entre o pessoal e os hóspedes. E logo agora nesta altura do ano. E o que vai ser da minha relação com a minha namorada Nelinha se a estória se souber. Nunca mais arranjo emprego em lado nenhum. Por favor, amigo não abras essa matraca – lamentou-se Xico Bala.
Olhei para o relógio, bolas 23:50, a minha bonequinha já deve ter saído. Liguei. No meu melhor inglês aprendido com os turistas na Ribeira a quem pedíamos moedas para saltar da ponte D. Luís, fiquei ainda mais transtornado. Natasha chorava copiosamente. O chimpanzé Francis que cresceu com ela nos circos por esse mundo fora, desaparecera misteriosamente do Coliseu no final da sua atuação ainda na 1ª parte do espetáculo. Só deram por falta dele no final e quando estavam a proceder às arrumações e alimentação dos animais. Estava desolada e inconsolável. Entre soluços pedia desculpa por não poder estar comigo, mas iriam passar a noite em buscas na cidade. Francis, extremamente afável e simpático poderia ficar agressivo fora do seu ambiente. Caramba, primeiro o Xico, agora Natasha, que noite!
(continua na próxima edição)