UM CANALHA NO ESPELHO

Um dia hei-de descer a rua devagar e entrar na loja da Cecília. Farei isso talvez mesmo antes de comprar o jornal. Ou pode ser que nem o compre. A verdade é que o jornal não se refere às pessoas que vivem na minha casa, as que mais tenho obrigação de amar.

Tenho habitualmente a cabeça cheia de muitas coisas, e confesso que corro um pouco de actividade em actividade. Falo muito durante o dia, e o meu trabalho leva-me a lidar amavelmente com muitas pessoas. Quando chego a casa sinto que esgotei a minha reserva diária de amabilidade e de sorrisos.

Durante o dia, no meu trabalho, sou forçado a ser observador e a tomar decisões cheias, tanto quanto possível, de bom senso. Depois, em casa, não sou capaz de reparar em nada. Não tenho já bom senso para usar. É possível que grite ou me irrite por pequenezes.

E quem colocou em mim esta ânsia de saber novidades? Não passo sem o telejornal e a leitura frequente das notícias no telefone. Tenho, é certo, a justificação de que preciso de estar informado, mas muitas vezes dou por mim a pensar se não se tratará apenas de curiosidade. Da mais vulgar curiosidade, essa que nós, os homens, classificamos tradicionalmente como defeito feminino… A verdade é que anseio por saber novidades sobre assuntos nos quais não posso intervir pessoalmente. E que, por outro lado, não ligo grande atenção quando os filhos me tentam contar o que lhes aconteceu na escola durante o dia.

Pergunto a mim mesmo se não existirá um erro profundo nesta forma de eu me comportar. Qualquer coisa semelhante a uma inversão de valores: dedicar-me demasiado a coisas secundárias; dedicar-me menos àquilo que mais me devia interessar.

Não é que tenha realmente consciência de estar errado, mas desconfio de que só não a tenho porque – como antes disse – corro freneticamente de actividade para actividade e não paro um pouco para pensar em tudo isto. Sucede, até, que tenho um certo receio de estar a sós comigo mesmo, não vá acontecer que estes assuntos me ocorram com clareza irresistível.

Até já me veio à cabeça que o facto de passar tantas horas no trabalho – e chegar tão tarde a casa – é capaz de não ser verdadeiramente causado pela minha condição de homem trabalhador, consciente do seu dever de sustentar uma família. Se o que me interessa é realmente a família, por que passo então tão pouco tempo com eles? Por que tenho a cabeça metida nas coisas do meu trabalho quando, à noite – sempre à noite – me encontro na companhia deles?

Devia investigar se não haverá aqui um pouco de comodismo, de vaidade, de um exagerado desejo de riqueza… Mas estes pensamentos doem como facas e não insisto neles. Pode ser que um dia venha a descobrir que olho para um canalha quando de manhã me vejo ao espelho, mas até lá…

Até lá hei-de descer um dia a rua e entrar na loja da Cecília. Ali vendem-se flores, e eu comprarei a mais bela das rosas. Há muito que não ofereço uma flor à Ana. E, no entanto, foi com ela que me casei, e não com o meu trabalho.

Nessa rosa não vai ainda um pedido de perdão. Ainda não sou capaz. Ainda não consigo ver um canalha no espelho. O que peço é… socorro: se for verdade que se está a perder aquele por quem te apaixonaste, só tu o podes salvar!