RECORDANDO UM BOM AMIGO

O recinto parecia um clube nocturno, sem ares de discoteca, mas com toda a espécie de gente. Tudo normal, tanto as pessoas como o tempo, deixando notório a separação das elites sociais: em um canto se falava das batatas do pequeno “farm” de Westport, que o bicho das ervilhas não as deixou desenvolver; no outro, ouvia-se que a porca da tia Suína, em Rabo de Peixe, pariu doze leitões, todos machos, malhados de branco e preto; em zona priveligiada, perto do balcão, dois advogados soltavam as proezas de seus feitos a um milionário, numa atmosfera saturada de “Johnny Walker Black”, porque o “blue” ainda não era acessível como nos nossos dias; a três ou quatro metros de distância, numa conversa em que a saudade falava, palavras de felicidade e nostalgia ligavam Fernando Raposo ao narrador desta história, que foram interrompidas pelo ti Armando, com a lição das castanhas assadas: a castanha quando começa a estalar, fecha-se o lume, e dentro de cinco minutos elas devem ser envoltas numa toalha ensopada de água fria.

Com este tratamento será muito mais fácil tirar-lhes as cascas, e elas ganharão mais sabor. Grande lição, ti Armando! Só gostaria de saber qual é o interesse que eu tenho em conhecer os segredos do castanheiro. Ti Armando falou, ouviu e foi-se embora. A três passos da porta de saída da sala olhou para a parede e fixou os seus olhos num velho calendário que ali estava, praticamente à altura do seu rosto. Dependurou-o, folheou-lhe as páginas dos meses, abanou a cabeça, e voltou a pendurá-lo. Era de 1974 e estava conservado como novo. Saiu da sala. Ti Armando deve ter muitas histórias para contar, mas haja ouvidos e santa paciência. Só faltava agora saber quem lhe ensinou o truque das castanhas assadas. Fazia já uns anitos em que a gente aprendera a não dar elogios ao ti Armando. Uma vez foi-lhe dito que as suas sopas serviam de bom manjar, e dali para cá nunca mais acabou o costume de levar sopas para casa todas as vezes que nos encontramos. Se nossas sogras não moram connosco, quem vai comer as sopas? Pois, é! Também não temos porcos para engordar. Mas nada disso se diz para não ofender o ti Armando.

Ao vê-lo sair do recinto os dois amigos continuaram a conversa, e a recente viagem à Ribeira Grande foi relatada. Fazia mais de uma década que Fernando não visitava o seu berço. Adorou ver as marchas de São Pedro, que antes nunca vira. No dia seguinte desceu ao Jardim, bem cedo, para esperar as Cavalhadas, que desde que foi para a América nunca mais voltou a vê-las. À maneira que o dia avançava a praça se enchia de povo e Fernando cada momento vivia como se a vida lhe brindasse felicidade. Viu muita gente e cumprimentou dezenas de pessoas. Mas, como quase sempre acontece, reconheceu menos do que aquilo que foi reconhecido. A normalidade do passar dos tempos, de que o emigrante não se apercebe. O Manuel, que era magro, agora estava gordo quem nem um touro; o Elias estava viúvo, coitado! A mulher, no seu tempo, era a melhor fémea da Ribeira Grande. Sempre teve os seus olhos no atoleimado do Elias e nunca viu nada melhor, com tantos e tantos pretendentes que tinha!; o António Esganiçado perdeu-se na bebida… é outro que nunca teve tarelo!…

Com boas vozes e melhores ouvidos a conversa foi andando, e a certo ponto o Fernando sai-se com esta:

-Alfredo, eu estáva-me consolando!… De repente, faltando um quarto de hora para chegar as Cavalhadas, aparece-me aquela ameixa… -Sim, tens que vir comigo… -Mas, agora mesmo? -Sim, isso tem muito povo aqui. Vamos para um lugar socegado, a gente tem muita escrita para actualizar… Cá vem, outra vez, a regra de boa-educação, de não fazer desfeita. Lá fomos. Para bem longe, a um restaurante além-Capelas. Que eu tinha de experimentar o bife que ali se fazia em três tamanhos, e que o pequeno dava para mim. Ah, e o aperitivo! -Tens que ter um aperitivo. – disse o senhor cujo nome aqui não se divulga – é camarão alhinho, pequenino mas muito bom! Agora diz-me uma coisa: quantos camarões tu achas que vais comer? um, dois, três? Não é por nada, é só para evitar desperdícios. -Eh, senhor, eu não tenho fome, nem sequer queria vir para aqui, e agora estás me perguntando quantos camarões eu vou comer?!… -Ó, homem, não leves a mal! É só para não se perder nada… Meu rico Alfredo, eu tive de aturar esta coisa toda, que contando a gente com juízo, ninguém acredita, e eu sei que estás a duvidar disto que te digo…

Neguei, claro, porque conhecia muito bem o meu amigo e sempre me equivoquei de pessoas de nariz levantado: -Não estou, não. Simplesmente tenho a dizer-te que nem uma décima parte desta história eu deixaria que me acontecesse. -Alfredo, por favor, esta história não se conta a ninguém, pelo menos enquanto eu vida tiver. Eu, que tenho medo das tuas “fuseiradas”, peço-te esse favor. Foi então prometido não divulgar a história enquanto a vida nos florisse. Mas ao lembrar-me do Fernando não posso ocultar esta cena que com ele vivi. A promessa foi cumprida e o nome do senhor não foi revelado, nem nunca será.

O Fernando falava com sentimento, tanto nas alegrias como nas tristezas. Lamentava a sua adolescência por ter sido órfão de mãe em tenra idade, na companhia de dois irmãos. Talvez por isso formou-se um homem maduro, com responsabilidades para a vida, e respeitado por toda a gente. Na Ribeira Grande nunca cruzei conversa com ele, por causa da diferença de idades. Tornei-me amigo dele aqui, em Fall River, com o nascimento do convívio ribeiragrandense, e a partir de então ganhámos uma grande confiança e uma eterna amizade, ao ponto de se fazer desabafos um ao outro que a mais ninguém se faria. Cem por cento amigo do camarada, nas ocasiões precisas e fora delas. Filho de mestre Jaime Raposo, sapateiro de profissão, e de sua esposa Luísa, Fernando nasceu na Ribeira Grande em 22 de Dezembro de 1949. Contraiu matrimónio com Mariazinha em 26 de Fevereiro de 1972 na Matriz de Nossa Senhora da Estrela. Poucos anos depois veio para os Estados Unidos. Como em Portugal já era um relojoeiro, dos bons, aprendeu a trabalhar de ourives. Nos anos oitenta abriu uma ourivesaria na cidade de Fall River, de onde passou a ser muito conhecido no seio da comunidade portuguesa. O seu estabelecimento era um ponto de referência na cidade dos teares. Mais fama ganhou no tempo da corrida ao ouro de dezanove quilates. Sim, por cá passou o tempo da moda do ouro português. Em Portugal sempre ouvi dizer que o ouro tinha dezoito quilates, na América aumentaram-lhe mais um! E quando se começava uma discussão sobre o assunto, eles, os ourives, tinham sempre os seus argumentos na ponta da língua. Coisas que o tempo traz e o tempo leva. Fernando e Mariazinha tinham a pátria no coração, e grandes amizades na terra de origem não faltavam, sendo notório o amor fraterno dos compadres Eduardo e Idália Ferreira, que a muitos dava sinais de inveja. Ambos Casais respeitados e respeitadores.

Há cerca de uma dezena de anos, passando à fase da reforma, Fernando decidiu mudar a sua residência para o “Mid-West”, para junto de seus filhos e netos. Porém, a saúde abandonou-o nestes últimos tempos, e cerca de meia dúzia de meses, ou pouco mais, durou a viagem entre este mundo e o outro, chegando ao destino a 11 de Junho do ano corrente. A demora da viagem foi tempo de muito sofrimento para ele, para a família e para os amigos que tanto o amavam e estimavam. Entre nós nunca será esquecido. Até um dia, amigo Fernando!

A conversa que tivemos naquela sala, em 1988, acabou quando nos foi entregue duas marmitas, com sopas do ti Armando. Ao recebermos de mão-a-mão, troquei olhares com Fernando e ambos sorrímos sem dar nas vistas. Claro está que o ti Armando tinha que nos dar mais uma lição, que depois nem eu nem o Fernando pudemos recordar. Porque se um estava nas tintas, o outro andava nas Poças.

 

 

As sopas do ti Armando

Não fazem inchar os pés,

Só metem gente bufando,

Mudam cus em chaminés.

 

Lembrei-me de ti, Fernando,

Porque a vida festejamos.

Passo os dias recordando

Os momentos que passámos.

 

Espero que estejas bem,

Com Anjos por companhia,

Santos, e Jesus também

Com a Mãe, Virgem Maria.