“O TEATRO COMUNITÁRIO TEM UMA HISTÓRIA PROFÍCUA EM GAIA”

O nosso convidado de hoje para mais uma reflexão sobre o teatro profissional em Gaia é o arquiteto e encenador Emanuel Sousa, que vem priorizando o desenvolvimento de pesquisa em torno de práticas espaciais críticas, cruzando os campos disciplinares da arte, da arquitetura e das artes performativas.

É fundador e diretor artístico da Ponto Teatro, estrutura que aposta na difusão e produção das artes performativas contemporâneas e para a qual assinou a encenação e cenografia de alguns dos mais interessantes e singulares projetos teatrais desta década a norte do país, designadamente “Déjá Vu”, “Capital Fuck”, “Dystopia” e “GH”, entre outros projetos teatrais, nomeadamente de cenografia, performances e leituras, bem como instalações cruzando os campos da arquitetura e da arte.

Presença regular da Noite da Literatura Europeia (Lisboa) e Artist Laureate do Institut Français em Paris, Emanuel Sousa desenvolve atualmente pesquisa e pré-produção do projeto “Trilogia dos Rebeldes” a partir de Maria Gabriela Llansol, nomeadamente das três publicações seminais – I. O Livro das Comunidades (1977), II. A Restante Vida (1982), III. Na Casa de Julho e Agosto (1984) – e demais interações e ramificações na restante obra de Llansol; bem como para o solo “Fauno”, a partir de L’Aprés-Midi d’un Faune (1912) de Claude Debussy / Stéphane Mallarmé / Edouard Manet / Vaslav Nijinski e dos Cahiers (1918-19) de Vaslav Nijinski.

Paralelamente, tem vindo a colaborar com Os Plebeus Avintenses, sobretudo nos domínios da formação, fazendo equipa com a atriz gaiense Daniela Gonçalves. Oiçamo-lo:

 

 

Que papel deve ter o teatro profissional no processo de desenvolvimento e democratização da atividade cultural e artística no concelho de Gaia?

Como em qualquer comunidade passada, presente ou futura, o teatro é uma prática artística essencial ao desenvolvimento e progresso da mesma porque, ainda que de um ponto de vista alegórico, permite auscultar e questionar as fundações mais primárias dessa mesma comunidade e o seu status quo. Este processo de auscultação, questionamento e critica contínua é um processo de base no desenvolvimento do indivíduo em si mesmo e do seu “papel” na comunidade. A prática artística comunitária, nomeadamente de foro teatral, tem uma história profícua em Gaia, estando profundamente enraizada nas comunidades gaienses, como são bons exemplos Os Plebeus Avintenses, Associação Cultural e Recreativa centenária em Avintes, entre outros, a qual tem um profundo impacto na(s) comunidade(s) local e regional. Num concelho pautado por bons exemplos de teatro comunitário ativo, o teatro profissional para além do impacto direto que tem em qualquer comunidade pode funcionar aqui como agregador e impulsionador destas mesma práticas comunitárias, tanto em termos de formação contínua como em termos de programação concertada. O teatro profissional pode assim ser um fator determinante no processo de democratização e reconhecimento da atividade cultural e artística como prática essencial para a promoção da cidadania gaiense, nomeadamente na construção de pontes construtivas entre profissional e amador, formal e informal, local e regional, tradição e progresso, status quo e revolução.

 

Essas parcerias do teatro amador com o teatro profissional serão possíveis sem um reforço das relações institucionais num quadro de apoio estratégico e sustentado?

As parcerias de foro cultural, como em qualquer outra área basilar da comunidade e da sociedade histórica e contemporânea, não pode ser desassociada dos instrumentos de apoio centrais de um Estado de Direito (e de dever), em que todos têm o direito à cultura e o dever de contribuir e promover o desenvolvimento dessa mesma cultura local, regional, nacional e, em última instância, da humanidade. Este escalar da equação é propositado, para que a parte se veja no todo e que o todo se veja nas partes; assim se percebe melhor como o Estado de Direito se desdobra num estado de dever e vice-versa. Quadros de apoio estratégicos e sustentados permitem dar o fôlego e sentido necessário às iniciativas culturais para que estas consigam no tempo e no espaço se sedimentar, fortalecer, expandir e complexificar, paulatinamente e progressivamente.

 

E a escola, a comunidade educativa, que papel deve ser chamada a ter no processo de desenvolvimento e democratização da atividade cultural no concelho?

A comunidade educativa, nomeadamente as escolas e o sistema educativo em geral, sempre foi e será o mecanismo que permite ativar as potencialidades do futuro “espectador” e do prospetivo “criador” na génese da formação do indivíduo futuro.  Assim sendo, este “motor de ignição” por um lado e “motor de busca” por outro – utilizando analogias modernas e contemporâneas –, permitirá “semear” e, simultaneamente, “colher” paulatinamente os resultados de um investimento direto no potencial educativo pela arte e seus dividendos óbvios, mas nunca imediatos, no processo de desenvolvimento e democratização da atividade cultural local e regional. São sobejamente conhecidos modelos de sistemas educativos em outros países europeus, modelos atuais ou passados, que comprovam que a integração da arte e da cultura em geral no processo educativo, seja qual for a faixa etária ou nível académico, é um investimento indireto com resultados garantidos, embora nunca sejam resultados quantificáveis no imediato, mas sempre saltos qualitativos a longo prazo que beneficiarão sempre a comunidade local e a cultural local e regional de forma efetiva e direta em última instância.

 

Se te visses investido como diretor artístico num teatro municipal em Gaia, que tipo de programação privilegiarias? Um teatro mais alternativo, mais convencional?…

Penso que qualquer programação em qualquer teatro ou espaço cultural deve antes de mais ser na sua génese um reflexo ativo do “seu” público, seja a que escala for local, regional ou nacional. Ditar, de antemão, tipos de programação, seja esta mais convencional ou mais alternativa, apenas criará (a meu ver) anticorpos na relação entre comunidade e instituição, entre indivíduo e objeto artístico (ou teatral) os quais, a curto, médio e longo prazo, inviabilizarão um desenvolvimento sustentado de todas as partes envolvidas.  Assim sendo, numa primeira fase, qualquer projeto de programação cultural pensado de raiz (ou em continuidade) deve ter como objetivo criar uma “arena” onde de facto tenha lugar um diálogo aberto entre essas mesmas partes, viabilizando a construção conjunta de um projeto de programação – esta espécie de “reflexo ativo” – para esse público, essa comunidade. Um projeto de programação é um percurso que instituição e comunidade têm que percorrer juntas, tendo em conta as limitações, os horizontes e os sonhos de ambas. Um percurso pontuado por muitas convenções mas também por pequenas revoluções, “mais-do-mesmo” e inovação, tradição e contemporaneidade, num diálogo constante entre o que já conhecemos e o que é diferente, entre o velho e o novo, entre o que já sabemos interpretar e o que não percebemos nem conseguimos sequer verbalizar. Qualquer programação deve assentar nestas dicotomias que pontuam o dia a dia do indivíduo e da instituição, do criador e do espectador, um percurso que obrigatoriamente se pontua de “lugares” de conforto e “não-lugares” de desconforto até se tornarem novamente “lugares” de conforto e assim sucessivamente. Esta constante transformação entre estes ”lugares” e “não-lugares” é potenciada pelos objetos artísticos eles mesmos mas também pelo trabalho pedagógico com a comunidade na formação contínua de públicos, paulatinamente preparando de forma sustentada e progressiva o indivíduo (e comunidade como um todo) para novos horizontes.

 

Fala-nos agora um pouco da ti e dos projetos que tens neste momento em mãos, nomeadamente da “Trilogia dos Rebeldes” que se encontra em fase de pré-produção.

Um arquiteto de formação tem sempre muitos projetos em gestação, desde a arquitetura propriamente dita (que continuo a praticar diariamente enquanto profissão) à prática artística mais abrangente que toma conta cada vez mais da minha agenda profissional e que passa muitas vezes por projetos que tocam ainda o campo abrangente da arquitetura como, por exemplo, a cenografia que tenho vindo a desenvolver para os meus próprios projetos teatrais bem como para outros artistas e entidades. Esta prática artística que desenvolvo tem na sua génese sempre um conceito estético, revolucionário à época do romantismo alemão mas deveras omnipresente na atualidade, de Gesamtkunstwerk, ou em português, Obra de arte total cruzando diversas formas de arte e medias na construção de um qualquer projeto, provavelmente resultado dessa educação de foro arquitetónico que também une num único edifício uma série infinita de artes e especialidades interdependentes. Entre os vários projetos em mãos atualmente, no campo performativo, realço dois projetos em germinação: “Fauno” e “Trilogia dos Rebeldes”ambos ainda sem data marcada de estreia, fruto das circunstâncias mais ou menos atuais. O solo “Fauno”, cuja pesquisa foi iniciada ainda como bolseiro português/Laureat do Institut Français, em Paris, em 2016, é a derradeira instância de uma trilogia informal de longa data que teve já duas iterações femininas com duas atrizes que pontuaram a certa altura o meu percurso artístico: “Frank” (2009), a partir do Diário de Anne Frank com Sara Fernandes; e “GH, Género Humano” (2016), a partir das estações da Paixão de Cristo e dos imaginários literários de Clarice Lispector, Virginia Woolf, Simone de Beauvoir, Giorgio Agamben e Paul B. Preciado, entre outros, com a atriz Daniela Gonçalves. “Fauno” será desta feita um solo sem género, mas que poderá vir a ser interpretado em última instância por mim próprio, partindo do “Prélude à l’après-midi d’un Faun”, dos nos Ballets Russes e dos Cahiers de Vaslav Nijinsky. Por sua vez, o projeto da “Trilogia dos Rebeldes” de Maria Gabriela Llansol, em estreita colaboração com o Espaço Llansol, materializar-se-á em três (ou quatro) espetáculos autónomos numa pesquisa sobre a “arquitetura” da trilogia em si mesma e sobre esta “casa de um só quarto e uma só janela”, a a-temporal e a-típica, que nos revela a essência da “cena fulgor”, tal como denominado por Llansol. Uma simultaneidade de espaços, próximo e distante, local e global, íntimo e público, familiar e desconhecido, uma experiência formativa intermedia que interlaçará ficção e realidade, intérprete e espectador num único “espaço expandido”, um espaço cinemático e a-temporal.