Em fevereiro de 2022 fui surpreendido por uma solicitação de endereço postal, e no início de março do mesmo ano recebi pelo correio o livro de Laureano Almeida, intitulado “Ao Som do Búzio”.
Na mesma altura devorei-lhe a pele, e dei-lhe uma dentada no miolo, sem saboreá-lo, por achar à primeira vista que necessitava de tempo e de espaço relaxante para que, para além da carne lhe pudesse roer os ossos, ou limpar-lhe as espinhas. Eis que, por cerca de seis meses o banquete degustado foi dado por terminado.
Se calhar, para a maioria dos leitores, o poeta não necessita apresentação, porque traz uma Estrela ao peito, e a Terra no coração.
Além disso, segundo nos confirma Santos Narciso no prefácio do mesmo livro, ocasionalmente, desde algumas décadas àquela altura, laureano Almeida havia publicado os seus poemas na imprensa escrita da Região.
Aproveitando esta conversa, confesso que desconhecia, até há bem pouco tempo, o senhor Laureano. Duas décadas e nada mais. Por isso peço desculpas à cultura e perdão ao poeta. Mas, como toda a gente sabe, o Mundo de há vinte anos atrás era muito maior do que este dos nossos dias.
Laureano Manuel de Sousa Almeida nasceu na Ribeirinha da Ribeira Grande, aos 15 de Dezembro de 1937. Cedo começou a amar e respeitar o Santíssimo Salvador do Mundo, padroeiro do Curato; e a Senhora da Estrela, patrona da Matriz e de todo o município. Amor e respeito para uma vida inteira, pela terra, pela gente, e pelos seus padroeiros. Tanto no lugar do nascimento como fora dele. Nas suas palavras identifica-se desta forma:
Eu sou da Ilha,
Ilhéu é que eu sou,
Logo que nasci
O mar me embalou.
A primeira vez que me cruzei com o sr. Laureano foi a 1 de Setembro de 2012, nas Caldeiras da Ribeira Grande, no decorrer das cerimónias da reinauguração das termas, altura em que se assinalou o segundo centenário da sua fundação.
Antes das cerimónias houve tempo para uma ligeira confraternização, e até tivemos o prazer de comungar uma excelente refeição no restaurante daquele lugar.
Algumas palavras das entidades oficiais, nomeadamente da Sra. Lourdes Alfinete, ao tempo presidente da Junta de Freguesia da Matriz e do Dr. Ricardo Silva, também naquela altura presidente da Câmara Municipal da Ribeira Grande, entre outros convidados, deram seguimento à deslocação às termas, situadas mesmo em frente do restaurante, num atravessar de rua.
Na fachada do edifício foi descerrada uma gigante lápide, assinalando a efeméride, decorada com este poema do Sr. Laureano, inspirado e criado em 2001, e por ele próprio recitado naquele momento:
Oh, lindo vale das Caldeiras,
Das boas-noites e conteiras,
Água fervendo em cachão,
De frondosos arvoredos,
Lágrimas com seus segredos,
E fumos saindo do chão.
Linda moira encantada,
És como joia engastada,
Mesmo ao cimo dos montes,
Ouvem-se muitos rumores,
Hinos, cânticos de amores,
Por águas, bicas e fontes.
E fidalguia de brio
No disperso casario
Veraneia em quietude,
No alto linda capela
Ciosa tem dentro dela
A Senhora da Saúde.
Laureano Almeida é uma peça fundamental do historial da companhia açoriana de transportes aéreos SATA, por ter sido um dos seus primeiros técnicos de manutenção. Do site oficial da Sata – Azores Airlines retiramos o seguinte texto:
«Há pessoas que se tornam verdadeiras imagens de marca de uma empresa. É o caso de Laureano Almeida.
Contratado para a SATA a 1 de maio de 1957, realizou um impressionante e dedicado percurso como Técnico de Manutenção de Aeronaves, num contexto temporal em que o mundo da aviação despertava um fascínio ainda maior que o de hoje.
Passado um ano de estágio, no Aeródromo de Santana, foi convidado para ficar na SATA e aceitou, o que considera hoje uma das decisões mais inteligentes da sua vida.
A aviação nos anos 50 tinha já uma ampla projeção a nível mundial, mas o Aeródromo de Santana apresentava, segundo ele, uma singularidade muito especial. A mistura entre as pastagens bucólicas, onde se praticava a agricultura, e a tecnologia dos aviões resultava num aeródromo verdadeiramente peculiar.
Laureano esteve presente, em 1941, na inauguração do Aeródromo de Santana. Ainda criança, lembra-se que as pessoas interrompiam o que estavam a fazer para contemplar as descolagens e aterragens dos aviões e do pó que este movimento aéreo deixava nas imediações.
A vida reservou-lhe a surpresa de, mais tarde, passar horas sem conta naquele lugar, que jamais irá esquecer.
Na sua altura, funcionavam neste aeródromo, que abria e fechava com o nascer e com o pôr-do-sol, quatro entidades: a Direção Geral de Aeronáutica Civil, a SATA com os seus catorze funcionários, a Meteorologia e o Destacamento Militar.
As suas três pistas em terreno relvado, cuja manutenção era feita por um considerável rebanho de ovelhas, propriedade do próprio aeródromo, constituíam o palco principal do “aerovacas”, como o apelidou a população local.
Empenhado e excelente trabalhador, Laureano Almeida foi, a certa altura, convidado para as tripulações, ou seja, para se sentar ao lado direito do comandante como “extra crew”, participando ativamente em alguns procedimentos de voo.
“A SATA era um encanto”, refere Laureano, acrescentando que no seu tempo “a SATA era grande demais para ser um aeroclube, mas pequena demais para ser uma companhia”.
Laureano lembra, de facto, com muito carinho o seu percurso na empresa a que deu tanto de si. Recorda com saudosismo episódios vividos nessa época de grande encanto, como as vezes em que os comandantes, de cockpit aberto durante todo o voo, olhavam para trás e pediam licença para descolar.
Recorda ainda um dos episódios mais bonitos que vivenciou num voo com origem na Base Aérea das Lajes, na ilha Terceira, com destino ao Aeródromo de Santana, na ilha de São Miguel, no qual embarcou uma noiva de vestido e véu.
“Por ter de fazer registo no diário de navegação ainda ali fiquei, atado à cadeira de pele cinzenta de costas pontiagudas, naquele pequeno e apertado espaço que respeitosamente considerava um santuário por me levar mais perto do céu e de Deus. Olhando pela janela via aquela noiva feliz descer em direção ao terminal, tão firme e tão segura como uma pomba branca a experimentar as asas. Linda a minha terra onde, por amor, vão noivas de ilha em ilha para casar”.
São os testemunhos vivos, como o de Laureano Almeida, que nos fazem imaginar o glamoroso decorrer da operação aérea da SATA nos seus primórdios. Era uma época de grande deslumbramento, mas também de árduo trabalho e dedicação num ambiente familiar. Orgulhosos, todos nós, de prosseguir e usufruir deste legado e continuar a sua história.»
Há cerca de mês e meio recebi uma carta do Sr. Laureano, e confesso que demorei perto de uma hora para lê-la de fio a pavio. Por duas razões: primeira, por ter sido escrita à mão, confesso que tenho uma grande dificuldade com isso; segunda, por a sentir como conversa de banco de jardim, onde os mestres falavam a modos de vislumbrar os pupilos.
Agora tenho mais uma razão, mas esta é pessoal, a qual guardarei em segredo só para mim. Mas tenho de vos dar a saber a recompensa que ganhei com tudo isso:
A sétima página trouxe um Hino à nossa Ribeira Grande, fresquinho. Não, fresquinho não! Quentinho, isso sim, quentinho das mãos de Laureano Almeida, escrito em setembro de 2003. Aqui vai ele:
Ribeira Grande
Lembrada Ribeira Grande,
Toda cheia de saudade,
Haja sempre quem bem mande
No teu concelho e cidade.
No continuado progresso,
Gestão das tuas riquezas,
De festas com seu sucesso,
Cheias de cor e surpresas.
As tuas velhas tradições
Na ilha são das mais belas:
Cavalhadas, procissões,
Presépios e as estrelas.
E a tua alegre ribeira
Nunca manifesta canseira
do seu cantar repetir.
E quando pelas estrelas
Canta as cantigas mais belas
E as mais lindas de se ouvir.
Ó minha Ribeira Grande,
Do mar e do areal,
Por mais que no mundo se ande
Não se encontra outra igual.
São estas pequenas coisas, simples gestos, meras ações, que às vezes nos despertam para aceitar a felicidade nas diferentes maneiras como ela nos visita. E como esta crónica vai longa, hoje ficamos por aqui. Um abraço ao Sr. Laureano, para todos um feliz natal, e haja saúde!