“A CASA DE BETÂNIA É UMA OBRA DOS POBRES, PARA OS POBRES”

Frei Fernando Ventura, franciscano capuchinho, nasceu em 1959, na freguesia da Senhora da Hora, em Matosinhos, e é um teólogo e biblista, que colabora, como tradutor, com diversos organismos internacionais e tem percorrido o mundo. A criação de consciências e de uma sociedade mais coesa e solidária são alguns dos sonhos deste frade, que revelou, em entrevista ao AUDIÊNCIA, que depois de tantas promessas de vários quadrantes, nunca cumpridas, a edificação do lar de idosos, Casa de Betânia, na Ilha do Príncipe, que é gerida por duas irmãs açorianas, a irmã Eufrosina e a irmã Maria da Conceição, está a concretizar-se graças aos pobres e vai traduzir-se num verdadeiro milagre.

 

 

 

Para quem não o conhece, quem é o Frei Fernando Ventura?

Eu sou um frade capuchinho. A minha forma de estar na vida, dentro da espiritualidade franciscana, dentro de uma congregação, e também por isso, tem-me permitido fazer tantas outras coisas, que de outra maneira não tinha conseguido concretizar. Eu não defino ninguém, nem me defino a mim por aquilo que faço. Eu defino-me por aquilo que sou e procuro ser, acima de tudo, um fazedor de pontes, alguém atento ao mundo e à sociedade onde estou e tentar fazer o meu melhor, para responder às necessidades que vou vendo, mas dentro das minhas possibilidades e tentando, isso sim, sempre, transmitir, acima de tudo, mensagens de esperança, mas, também, mensagens de responsabilidade e de responsabilização pessoal. O risco, às vezes, é de passarmos pela vida, ou deixarmos que a vida passe por nós, sem nós passarmos por ela. Esta atenção ao que se passa à minha volta, o comunicar e o agitar as águas, tantas vezes, não é, por nenhum motivo, pela agitação, mas para a criação de consciências. Eu estou muito convencido da verdade de uma expressão do Teilhard de Chardin, em que ele dizia que o processo de humanização é “um processo em espiral ascensional de complexidade de consciência” e isto é muito aquilo que eu tenho dificuldade em ver em tantos ambientes e em tantas formas de eu, hoje, ser sociedade e de eu, hoje, pensar a sociedade. É uma sociedade complexa, mas há uma coisa que vai falhando, que é esta consciência e é a consciência que me leva, a mim, a sair de mim, que me leva, a mim, a perceber onde é que eu estou, para onde é que eu vou e o que é que eu ando aqui a fazer. E nós temos uma sociedade globalmente alienada. Alienada por questões marginais e essa alienação é alimentada, também, pela comunicação social, cuja qualidade, ou a falta dela em Portugal, tem a ver, também, com quem a consome. Nós queixamo-nos que as nossas televisões, sobretudo em sinal aberto, não fazem mais do que falar de futebol e novelas e é verdade, porque é isso o que o público consome e ninguém tem coragem de fazer outras propostas, porque a realidade, desde logo, é que os grupos económicos que estão por tás dos grupos comunicacionais, que têm as suas agendas políticas, ideológicas e sociológicas, também, não deixam muito espaço de manobra. Portanto, um tipo de informação diferente é um risco de fechar a porta, porque os clientes não veem. Nós temos esta tendência, por isso é que eu digo que este abaixamento da qualidade e do grau de consciência é o que nos impede de construirmos um tipo de sociedade diferente. Nós estamos alienados, porque estamos alienados e deixamo-nos alienar, porque não temos coragem de nos situarmos no nosso espaço e no nosso tempo e de percebermos aquilo que passa à nossa volta. Eu não me considero ninguém especial, absolutamente nada, e tive a sorte ou o azar, neste sentido, de, a dada altura, ter tido acesso aos meios de comunicação social e de ter recebido palmas, que eu não mereço. Eu tenho a alegria de ter encontrado, ao longo de mais de 30 anos, durante todas as atividades em que eu estou envolvido, imensa gente, com quem, em conjunto, interviemos, realmente, na sociedade onde estávamos e no espaço onde estávamos. Eu digo que tenho quatro licenciaturas e que duas delas não são de papel passado, mas são as duas que me fazem mais falta, as que eu não tenho nenhum diploma. Eu estou a falar da minha passagem de três anos, absolutamente fantástica, na Baixa da Banheira, com tanta gente que, felizmente, consegui agregar à minha volta e, ainda hoje, continuo no projeto de resposta, de atenção e de promoção das realidades de menos qualidade de vida, de menos qualidade económica da vida das pessoas. E a outra licenciatura é, sem dúvida, os oito anos que eu trabalhei, e tive o prazer de trabalhar, na Comunidade Vida e Paz, onde estão toxicodependentes, alcoólicos e sem-abrigo, em Fátima. Eu fui capelão nesta estrutura durante oito anos e foi lá que eu aprendi o outro lado da vida e toquei no outro lado da vida. Por isso, estas duas realidades, a Baixa da Banheira e Vale da Amoreira e a Comunidade Vida e Paz, marcaram, significativamente, a minha forma de estar, a minha forma de estar com a vida, a minha forma de estar com os outros e, se quiser, a minha forma de fazer pastoral. Eu aprendi muito sobre solidariedade, aprendi muito sobre a humildade de reconhecer que todos os dias precisamos de nos perdoar a nós próprios, para podermos perdoar os outros, sobre o facto de precisamos de procurar relações de equilíbrio connosco, para podermos ter relações equilibradas com os outros, sobre assumirmos as nossas dificuldades e sobre aceitarmos os outros naquilo que eles são, como são e caminharmos com eles, sem paternalismos e sem tolerâncias. Eu odeio a palavra tolerância e odeio este modismo da tolerância e de que tudo tem de ser tolerado e de que os outros devem ser tolerados. A tolerância pode ser uma grandessíssima falta de respeito pelo outro. Eu posso tolerar uma dor de cabeça, uma dor de dentes porque tenho de o fazer, mas se eu disser a alguém “eu tolero-te”, eu estou a diminuir o outro, dizendo-lhe que “eu sou superior a ti e tolero-te ao pé de mim”. Por isso, eu não quero tolerância. Eu quero respeito entre as pessoas, quero respeito pelas diferenças e o respeito é exatamente isso, é um caminho de dois sentidos, em que tanto eu, como o outro, nenhum de nós se considera o centro da história, ou o umbigo do mundo, mas todos nos vemos a partir da nossa humanidade, que é capaz das coisas mais fantásticas e capaz das maiores badalhoquices, como qualquer um de nós, sem exceção.

 

Falou em sociedade, em respeito, em humanidade e sobre uma vontade de criar consciências. Posto isto, qual é a sua missão e quais são os seus objetivos?

Se eu quisesse um slogan jornalístico eu diria que, não quero acabar com os ricos, quero acabar é com os pobres. Eu quero acabar com esta realidade. Eu sei que é utópico, mas é pela utopia que o mundo avança. Eu tenho vivido muitos momentos, muitos meses da minha vida, em situações de luxo e em situações de lixo e eu já disse isso, mesmo, em relação ao nosso país. Eu não estou a falar em país nenhum em concreto, as clivagens e as diferenças são mais gritantes, obviamente, noutras realidades, mas nenhum rei tem o direito de beber champanhe, quando o povo só pode beber água choca e este é o desconcerto. Já Camões falava no desconcerto do mundo e são estes desconcertos diante dos quais nós vivemos anestesiados e, com facilidade, atiramos a culpa e a responsabilidade, ou para a autoridade superior, pois nós, nisso, temos complexos de Édipo muito mal resolvidos, nós portugueses, somos marcionistas ainda por cima, uma vez que há de vir, sempre, alguém numa manhã de nevoeiro, que vai resolver as nossas dificuldades. Nós somos um povo capaz de gestos fantásticos e de solidariedade, no momento da emoção. Nós somos emotivos, ativos e primários e no momento da emoção e no momento da catástrofe nós respondemos de uma maneira absolutamente avassaladora, deduzo eu, mas, depois, não temos a capacidade da continuidade e isto passasse em tudo. Nós temos agitações, efervescências sociais, enfim, em tempos de campanhas eleitorais, mas, depois, deixamos o Governo à solta e deixamos pacificamente. Nós somos capazes de vociferar e ameaçar de morte o árbitro que, na nossa leitura, prejudicou a nossa equipa e ficamos a latir em matilha, mas, depois, somos gatos mansinhos, quando vamos vendo os nossos dinheiros serem mal gastos e desviados para situações que não servem tantas vezes mais, do que para garantir o status quo da situação, porque temos sempre muito medo de nos mexermos. Como exemplo temos a imagem da piscina de água choca, pois estava tudo lá dentro e cada vez que entrava alguém, todos gritavam “não faças ondas” e às vezes dá essa sensação no nosso país e em tantos outros. Há muito pouca gente que se atreve a fazer ondas, porque de alguma maneira, o “nós”, coletivo, tem vindo a ser desmontado e, também, organizadamente, na criação de uma consciência grupal, de um pequeno grupo, que, em última análise, só serve quando grita eu sozinho, por isso é o dividir para reinar e isto não constrói um tecido social, não mobiliza as pessoas, já de si desmotivadas para esta falta de consciência do “nós”, para esta falta de consciência do coletivo que nós temos, de facto. O mundo que é hoje, este chamado mundo ocidental ou mundo civilizado, que é uma coisa que eu nunca percebi muito bem, porque é que se chama mundo civilizado, como se o outro não fosse. A pulverização do “eu” e a massificação das depressões solitárias, que vão criando capas, que vão criando resistências, também, ao serem respostas a situações, que mereceriam e teriam necessidade de terem respostas coletivas, também, porque, infelizmente, muitas das entidades que deveriam ser bandeira de seriedade, dentro do campo da solidariedade e da resposta social são, outra vez, bandos de malfeitores organizados a viver à conta dos pobres, porque os pobres dão de comer a minha gente e enfeitam que se fartam, até campanhas eleitorais, desde as eleições presidenciais, até às eleições autárquicas, nas quais temos os pobrezinhos do regime, os pobrezinhos de serviço, que são levados e que são usados e que são apresentados como bandeiras e isto mete-me nojo, parece-me mal e porco.

 

No seguimento do que referiu anteriormente, o que é que poderia ser feito, para transformar a sociedade e o mundo, num lugar melhor?

A formação faz-se do berço. Nós educamos as nossas crianças, também, dentro de um mundo, contra o qual eu tenho lutado. Um mundo muito de dizer que a nossa liberdade termina, quando começa a do outro e no qual estamos a criar o outro como barreira, ou eu estou a ser barreira para a liberdade de alguém. Nós não os educamos para o ser social e ser societário, na consciência de que a liberdade do outro alarga o meu espaço de liberdade e a minha liberdade alarga o espaço da liberdade do outro, só se formos capazes de nos juntarmos. Eu tenho dito isto muitas vezes, desde às crianças pequenas, falamos da pré-primária, se quiser, porque a educação ou a deformação vem, desde logo, por causa do jogo, que é a atividade mais importante das crianças. O jogo diz-se como ir contra alguém, porque eu tenho de ganhar ao outro e o objetivo não é jogar por jogar, não é o divertimento, ou o gozo que eu provo pela atividade e por estar com o outro, não, eu tenho aquela atividade, que até me pode dar gozo, mas eu tenho de levar aquela atividade até ao fim, contra alguém, e isto começa a destruturar desde o início. O outro que está comigo é alguém que eu tenho de superar e temos exemplos, depois, das caricaturas disto mais tarde, nas filas de supermercado, nas filas do autocarro, no estar em grupo, porque eu tenho de estar sempre à frente do outro, eu crio uma cultura do vencedor sobre o outro. E a vida não é assim. A vida é feita de ganhos e perdas. Numa relação, em qualquer tipo de relação, em que não é uma relação ganhador-ganhador não funciona, há sempre um dos parceiros que está a ser abusado, há sempre um dos parceiros que está a ser esmagado e vilipendiado. Então, a construção social constrói-se por aqui, constrói-se, logo, desde o início, aprendendo a ser com e não aprendendo a ser mais do que e a responsabilidade, também, do que é coletivo. Eu estou-me a lembrar, por exemplo, do Japão. O Japão não é uma sociedade perfeita, não há sociedades perfeitas, a quantidade de suicídios no Japão é absolutamente avassaladora, mas as crianças na escola, no Japão, por exemplo, são elas que limpam as casas de banho, são elas que limpam a escola, são elas que limpam o seu espaço e é uma forma de criar responsabilidade pelo espaço que é de todos. Infelizmente, quando as imagens do último tsunami complicado e avassalador em Fukushima, o cataclismo que foi, em termos de número de mortos, em termos de tudo, correram o mundo, devem recordar-se da serenidade das pessoas, que faziam fila para aceder à água. Eu não estava a imaginar, de todo, as filas organizadas e cada um com o seu bidão, ou os seus bidões à espera, serenamente, da sua vez, porque outros chegaram antes, porque estavam numa situação em que todos precisavam de todos. A grande aposta, e isto é dito e vale para todos, na construção de uma sociedade, não é um partido político ou uma loja maçónica que está no poder em vez de argumento, o grande investimento que qualquer país pode fazer e tem de fazer é na educação. Nós temos uma educação abandalhada, temos o ambiente que temos nas nossas escolas, porque é preciso que o regime apareça como vitorioso, também, a custo da criação e vamos criar gerações de analfabetos, pelo menos de analfabetos funcionais, se não houver uma ingressão, desde logo, da forma como as nossas crianças são acompanhadas no seu crescimento escolar. Temos uma educação montada a partir de Lisboa, montada a partir dos gabinetes, montada a partir de papéis e que não passa pela realidade e não passa por ouvir as escolas no seu contexto real, social e as necessidades que têm, Uma escola que não responde, na maior parte dos casos, à necessidade dos alunos, responde a um programa, responde a programas políticos, responde a programas de formatação social, mas dentro de um ambiente que, cada vez mais, será de abandalho e no qual, cada vez mais, quem pode não cai na asneira de dar aulas, não cai na asneira de se inserir no ambiente de desgaste rápido e sem resultados, onde o seu trabalho não é reconhecido e onde o ambiente é mais de conflito, do que de harmonia. E o que se passa nas escolas é válido, também, para o que se passa em termos das nossas polícias, é válido para o que se passa em termos dos nossos hospitais e dos nossos centros de saúde e do sistema de saúde em Portugal, pois é um bocado esta bandalheira, que se vai instalando a partir de cima, a partir de cabeças que pensam, que pensam e que não ouvem a base, não ouvem o real, nem as pessoas e vive-se com números e com estatísticas.

 

Qual é a sua perspetiva sobre o futuro da sociedade?

Eu estou totalmente otimista, apesar de muitas vezes não parecer. Eu tenho sempre esperança e é uma coisa que eu não deixo morrer, não por estupidez, pois eu costumo dizer que eu gosto de ser um otimista, ou um pessimista informado. A conjuntura global aponta para novos focos de conflito e agitações que, oxalá, não levem a um conflito mundial. A economia começa a dar sinais de entrar em ciclo de recessão, a economia é uma espécie de linha ondulatória cíclica, onde há períodos de crescimento e períodos de depressão. O que tem estado a mudar, e rapidamente, tem sido a amplitude, ou o tempo de duração dos ciclos. O futuro próximo será um ciclo de recessão, será, outra vez, um ciclo ao qual se seguirá a necessidade de outro ciclo de crescimento. Com estes altos e baixos, oxalá, possamos aprender e que o futuro nos ensine a fazer contas à vida, neste sentido, percebendo que sempre que há um ciclo de crescimento, a seguir virá outro ciclo de recessão e não fazer aquilo que se vê em Portugal e noutros países, esta espécie de otimismo bacoco, que de novo está a levar as pessoas ao endividamento, ao crédito, de novo à economia montada no crédito fácil, porque em Portugal temos um Presidente da República que bate palmas, basicamente, a tudo, tirando retratos e espalha-se o riso, porque tem esta espécie de cumplicidade, enfim, não querendo fazer ondas, também eu, e ajuda a passar esta mensagem, do regime das maravilhas e da abundância e nós não estamos no país das maravilhas, até porque a Alice já foi embora há muito tempo.

 

O Frei está a desenvolver inúmeros projetos, nomeadamente em São Tomé e Príncipe e em Cabo Verde. O que o conduziu a estes locais?

Foi a vida. A minha ocupação principal, em termos de horas de trabalho útil, por ano, é fazer tradução simultânea, é isso o que eu faço. Eu trabalho para o Vaticano, trabalho para a Ordem dos Capuchinhos, trabalho para a Ordem Franciscana Secular e para outras entidades e isto fez-me percorrer o mundo, literalmente. Aliás, a TAP há sensivelmente três anos enviou-me as estatísticas dos voos meus registados, que já correspondiam a 17 voltas ao mundo, porém, até agora, já devo ter dado mais algumas. Eu posso dizer-lhe que este contacto que eu tenho com tantas realidades e com tantos lugares, foi-me, outra vez, questionando. O que é que, eu, cidadão, posso fazer nestes contextos? Eu, sozinho, não posso fazer absolutamente nada, mas posso convidar pessoas para, juntos, fazermos coisas. Eu tenho a felicidade de estar próximo dos decisores da minha Ordem, em Roma, e daquele que é o nosso grupo de trabalho de solidariedade internacional e São Tomé surgiu por acaso. Eu fui a São Tomé a convite do Bispo, aliás eu fiz-me convidado e foi há 10 anos. Em janeiro, de há 10 anos, eu percebi que duas coisas grandes que eu tinha de fazer em fevereiro tinham sido adiadas e eu estava sem trabalho. Eu ainda não estive na Guiné-Bissau, mas já estive nos outros Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) todos, e o primeiro contacto que me apareceu foi o do Bispo de São Tomé, então eu escrevi-lhe um e-mail e disse quem era, que tinha milhas da TAP para gastar e que estava à disposição se ele precisasse dos meus serviços de formação bíblica. Acontece que passada meia hora já tinha a resposta, “anda já amanhã” e, depois, só quando eu cheguei, passadas duas semanas, ou um pouco mais, é que eu percebi, que eu não sabia que o Dom Manuel era Bispo. Nós tínhamos trabalhado juntos na Diocese de Setúbal e ele sabia quem eu era, mas eu não sabia, sequer, que ele tinha sido feito Bispo e estava em São Tomé. Foi simpático o nosso reencontro no aeroporto e, na noite em que eu cheguei, estávamos no final do jantar e ele diz-me que estava em pânico, porque tinha leite para três semanas no orfanato. Na altura, ele estava lá há muito pouco tempo, ainda, como Bispo e estava a organizar as coisas, etc. e foi a partir deste desabafo dele, que o projeto nasceu e em conversa saiu a ideia de criarmos um Banco de Leite. Nós costumamos dizer, a brincar, que fundamos um Banco de Leite numa noite de copos, porque estávamos os dois com um copo de água na mão, cada um, porque estava um calor daqueles de fazer derreter pedras, em fevereiro, em São Tomé, e aí nasceu o Banco de Leite. Eu terminei o trabalho e nos primeiros dias a seguir ao meu regresso, eu tive várias aparições na televisão, nas quais falei disto. Na altura, o Jornal Expresso fez um trabalho comigo na Revista Única sobre isto e eu cheguei ao final de fevereiro e já tinha leite até dezembro. A partir daqui foram-se gerando outras sinergias e foram chegando outras pessoas. Eu digo sempre que o Banco de Leite de São Tomé é filho de São Miguel, porque três fábricas de leite dos Açores, desde o primeiro momento, alimentam praticamente a 100 por cento o orfanato. Entretanto, também conseguimos construir um orfanato novo, graças à intervenção do anterior Governo e da cooperação internacional e agora temos uma estrutura que dignifica Portugal, em São Tomé e que foi evoluindo, porque nós fomos juntando outras boas vontades. O Banco de Leite de São Tomé é uma aventura, mas é aventura complicada, porque em termos de necessidades, são grandes. O Banco de Leite está associado e geminado, absolutamente, com uma associação que nasceu a partir de uma oferta de ajuda ao Banco de Leite, que é a Associação Amparo da Criança, que tem sede na Vila da Feira e temos estatuto de IPSS, temos atuação em Portugal e atuação no estrangeiro, neste caso, em São Tomé e aquilo que nós fazemos é fornecer leite em pó, para o Projeto para o Desenvolvimento Integrado de Lembá (PDIL), que é um outro projeto de economia social, que tem mais de 20 anos, funciona e nós apoiamos esta estrutura. Nós avançamos para o Príncipe há 5 anos e queríamos avançar para a Guiné-Bissau, porque há um número enorme de entidades que colaboram aqui, mas, entretanto, não se pode tapar um sítio, destapando o outro e São Tomé estava por cumprir, porque uma ONG que estava no Príncipe fugiu e abandonou as crianças e os idosos, ficando, apenas, toda a estrutura que havia, que estava criada e que era uma casa bem-feita para as crianças e para os órfãos e os mais isolados da família, os mais abandonados. A Casa está feita, tem boas condições, mas foi abandonada, está em fase de reestruturação e o lar dos idosos nunca foi terminado, ou melhor, nunca foi feito de novo, pois o que lá está é uma estrutura em madeira, que está muito pintadinha, que está muito bonita, mas está podre. O clima é o que é, é um clima muito húmido, muito forte e temos de construir outra casa, a Casa de Betânia e é uma luta que já vem de há 3 anos. O senhor Presidente da República, o nosso, quando lá esteve, prometeu ajudar na construção da casa, mas, apesar das duas vezes nas quais estive com ele, nunca consegui que houvesse uma abertura da parte dele, apenas houve a promessa e ficou lá. Todos os idosos com quem ele falou já faleceram nestes 3 anos e temos outros a precisarem, obviamente, da Casa de Betânia. A Casa de Betânia é uma obra dos pobres, para os pobres. Nós começamos as obras em março de 2020, mas estiveram interrompidas durante quase um ano, por causa da pandemia e ainda não reunimos todo o dinheiro necessário, mas temos fé, temos duas empresas locais, de São Tomé que estão, também, a ajudar, mas as grandes entidades portuguesas, que foram chegando e que foram oferecendo ajuda etc., não sei porquê, mas foram-se arrependendo e depois de acolhimentos de quase de passadeira vermelha, o que se seguia era o silêncio. E isto é a prova daquilo que eu digo, as revoluções fazem-se por baixo, são os pobres que ajudam os pobres. O Banco de Leite também está associado em Cabo Verde, aliás são várias as entidades que estão associadas, por exemplo, nós estamos com o Mundo a Sorrir, que é uma ONG nascida no Porto, de jovens dentistas, que já estava em Cabo Verde quando nós lá chegamos e fui eu que levei a Mundo a Sorrir para São Tomé, também eram eles que já estavam na Guiné-Bissau e também estão, cá, em Portugal. Também, em Cabo Verde estamos em união com a Associação Sinergia, que tem sede em Braga, através da qual enviamos material escolar, desportivo, porque o tipo de atividade é outro e estamos a fazer um trabalho muito bonito de formação, para explicar em palavras pobrezinhas, isto é muito redutor, mas o que nós criamos na Ilha de Santo Antão, na cidade de Porto Novo, foi um ATL, que junta crianças e idosos, porque é um tipo de sociedade na qual a população numericamente ou percentualmente maior são as franjas, a Ilha tem as dificuldades que tem, as pessoas que podem trabalhar, têm Mindelo do outro lado do mar, portanto há muitos idosos e muitas crianças que ficam na Ilha e é com estes que nós temos feito muita coisa, já há 4 anos. Nos três últimos anos, a atividade daquele ano tem terminado no mês de agosto, com um festival de rua, com música, teatro, pintura, dança, tudo isso, e é esta a alegria de fazer acontecer numa comunidade.

 

Em que consiste o Projeto para o Desenvolvimento Integrado de Lembá (PDIL)? Qual é a relevância desta resposta a inúmeros problemas sociais?

O Projeto para o Desenvolvimento Integrado de Lembá tem 20 anos de história e tem uma heroína, à frente, que se chama Lúcia Cândido, uma irmã franciscana, que conseguiu, felizmente, durante estes 20 anos, agregar à sua volta, um conjunto de entidades, sendo que uma das mais importantes e com quem temos uma relação muito próxima, nós, Banco de Leite, é a Paróquia da Carregosa, aqui na Diocese do Porto, entre outras entidades que, sobretudo, têm percebido a seriedade do projeto. O PDIL é uma referência da economia social bem-feita, porque as mais-valias criadas no projeto, que visa, principalmente, dar trabalho às pessoas locais, são reinvestidas no mesmo. Neste momento, se não me falha a memória, são mais de 180 pessoas que têm o seu ganha-pão ali e as mais-valias são reinvestidas, não há entidades terceiras a ganhar, ou a usufruir dos lucros. No Príncipe, nós estamos há menos tempo e temos esta necessidade da construção da Casa de Betânia, para podermos libertar verbas, para fazermos outro tipo de intervenção e de apoios. Nós estamos a falar, obviamente, de apoio a nível escolar, a nível desportivo, aquilo que faz, também, especialmente, crescer as crianças, sendo que, obviamente, existem entidades a trabalhar no Príncipe, nós não somos os salvadores da pátria e não vamos resolver os problemas todos do Príncipe, não, nós queremos estar, ali, como estamos em todos os outros sítios, em colaboração e em sinergia, lá está, a palavra técnica da Associação Sinergia, com quem trabalhamos em conjunto e que, também, já está no Príncipe há 4 anos. O descobrir de que sozinhos fazemos muito pouco e de que todos juntos podemos fazer muito, é a mensagem que nós temos passado em todos os sítios, nos quais nós estamos a trabalhar. Nós não nos consideramos os reis do bairro, nem pouco, nem mais ou menos, mas desafiamos, convidamos sempre e temos tido resposta positiva das entidades que já estão no terreno, para, com elas, procurarmos soluções.

 

O Banco de Leite nasceu em São Tomé e, posteriormente, expandiu-se para o Príncipe. De que forma é que esta IPSS dá resposta ao problema da carência alimentar e escassez de recursos no âmbito infantil?

O Banco de Leite nasceu em São Tomé e é o Banco de Leite é de São Tomé e Príncipe. A atividade do Banco de Leite, em São Tomé, está centrada, essencialmente, em duas entidades, desde logo a Cáritas Diocesana, que é da responsabilidade do Bispo que se ocupa da logística e da distribuição, pois estamos a falar de um território pequeno. Nós temos, se quiser explicar desta forma, um armazém na Cáritas Diocesana, na capital, e um armazém no Projeto de Lembá, nas Neves, mas todas as entidades e as pessoas sabem qual é porta onde devem bater, porque nós não estamos em exclusivo, ou seja, nós respondemos às necessidades que nos reportam. No Príncipe, por exemplo, o grande braço direito da atividade do Banco de Leite são, desde logo, duas irmãs, de quase 80 anos, que são duas heroínas açorianas, da Ilha de São Miguel, mas são duas meninas de 20 anos, com a genica que têm, que só de as vermos trabalhar já ficamos cansados, não só pela quantidade de trabalho que fazem e pelas respostas que dão, mas, sobretudo, pela alegria, pois eu nunca vi aquelas senhoras zangadas. As duas heroínas da Ilha do Príncipe, a irmã Eufrosina e irmã Maria da Conceição, uma é do Nordeste e a outra é da Ribeira Grande, estão lá há muitos anos, são a autoridade moral, não só da Ilha, e têm feito um trabalho genial, juntamente com os escuteiros que lá estão, os grupos de jovens que existem na paróquia e outros grupos de jovens de outras comunidades, também, religiosas que lá estão. Depois é isto, é criar espírito de corpo e cada um ao seu jeito, dentro do seu espaço e dentro da sua liberdade de ser responde àquilo que pode e, todos juntos, fazemos milagres. O milagre grande agora é a Casa de Betânia, que eu anseio ver no ar. No Príncipe, nós temos uma estrutura ligeiramente diferente, até por causa da logística. Nós temos uma conta corrente em Portugal, numa empresa de distribuição de mercearia e de produtos de consumo, que tem uma loja no Príncipe e nós depositamos o dinheiro, aqui, em Portugal e as irmãs levantam lá as coisas de que precisam. Nós temos, também, o envio regular de dinheiro, porque as pessoas não comem só produtos de mercearia. Nós, sobretudo, estamos a falar de pessoas que são atendidas pelas irmãs, que são atendidas a partir da cozinha comum e do refeitório comum e, a partir daí, nós, também, enviamos dinheiro para lá, o que não impede isso, com alguma regularidade, que façamos chegar, também, o mesmo tipo de produtos que fazemos chegar a São Tomé. A logística não é tão fácil e as necessidades também são completamente diferentes, porque enquanto no Príncipe nós estamos a falar de uma realidade que terá à volta de 8 mil habitantes, São Tomé é gigantesco. Portanto, no Príncipe são as irmãs que gerem, e gerem muito bem, as necessidades das respostas que têm para dar e sempre que há uma necessidade, avisam-nos e nós temos facilidade, felizmente, no envio de mercadorias, que é das coisas que eu tenho mais a agradecer, porque, principalmente, são três as entidades que nos garantem um transporte de mercadorias para São Tomé, gratuitamente, pois seria impossível mantermos isto sem o apoio no transporte, porque o transporte para África, sobretudo para São Tomé, porque, também, como não existe um porto de águas profundas, os cargueiros têm de ficar ao largo e a mercadoria é descarregada para barcaças, chega a São Tomé e tem de passar pela Alfândega, obviamente, e depois, ainda, tem de ir para o Príncipe, portanto são várias passagens que encarecem sempre movimentação de cargas e dificuldades logísticas. Relativamente ao Banco do Leite, nós estamos a falar de leite em pó e nós precisamos muito e temos muita aflição com os leites de substituição do leite materno, porque culturalmente, em África, temos mães muito jovens, e estou a falar de meninas de 13 e 14 anos, em algumas situações, que, por motivos vários, não conseguem amamentar os filhos. Portanto, é preciso leite de substituição, até que a criança possa tomar o leite normal. Estes leites de substituição estão, sempre, em falta e nós estamos sempre a correr atrás do prejuízo. Não tem havido ruturas, de alguém ou alguma criança ficar sem leite, daquelas que nós podemos ter conhecimento, porque nós não temos a pretensão de conhecer todos os casos que existem no país, mas as pessoas sabem que nós estamos nas Neves, as pessoas sabem que, ali, podem recorrer e a Ilha não é assim tão grande. Portanto, não tenho tido notícia, pelo menos nos últimos anos, de uma criança que tenha sentido necessidade de leite de substituição e que não tenha tido disponível e dizemos isto com naturalidade, não é com nenhuma vaidade, como se nós é que somos os santos, não, nós estamos, só, a fazer o que nos toca fazer e não acusamos ninguém, não estamos contra ninguém, estamos simplesmente a fazer o que tem de ser feito, seja ali, seja onde for, porque onde há pobres e onde há pessoas com necessidades não há fronteiras. A comunidade nasceu sem fronteiras, nós é que inventamos as fronteiras e as barreiras e vamo-nos fechando por trás dos nossos portões. Neste momento, a urgência maior é, obviamente, a Casa de Betânia, que está nas condições em que está e nesta realidade do Príncipe, o Banco de Leite está sozinho, mas acompanhado de milhares de boas vontades.

 

O Frei Fernando Ventura falou sobre duas irmãs açorianas, que gerem a Casa de Betânia, infraestrutura que tem um papel muito importante, principalmente no que respeita à terceira idade, que está degradada e que você anseia ver construída. Qual é a relevância do papel destas heroínas da Ilha do Príncipe?

É absolutamente central. Eu não saberia dizer melhor. Estas duas senhoras, com toda a generosidade com que têm servido a população do Príncipe, ganharam, para si, mais um estatuto de referência moral, de referência relacional, de referência de carinho e de referência de consciência e de todo o espectro que a sociedade do Príncipe tem, em que havendo necessidade de alguma coisa, pelo menos, vai bater à porta das irmãs e elas quando não têm solução, vão procurá-la. E é esta centralidade, esta autoridade e é isto o que eu aprecio nestas irmãs e em tantas outras realidades que eu conheço, é uma autoridade, que não se conquista pela força, que não se conquista pelo poder económico, mas que se conquista pelo serviço. Quantas vezes as pessoas que lá vão, não vão pedir nada, vão simplesmente falar e vão estar ali. As irmãs funcionam, também como um ponto de referência, porque elas não são só aquelas que distribuem, são aquelas que, também, recebem dos pobres da ilha e de pessoas que têm as suas pequenas roças, os seus quintais e que, sempre e quando podem, levam produtos às irmãs, porque sabem que, ali, outras pessoas que, naquele momento, estarão a ter mais dificuldades vão beneficiar. Portanto, funciona como um centro de recolha e distribuição de bens essenciais, mas que se faz com uma naturalidade natural, de quem partilha a vida. Não existe nem soberba da parte de quem dá, nem vergonha da parte de quem recebe, pelo que é um relacionamento saudável e normal de uma comunidade de gente, que sabe que depende, essencialmente, de si própria, das suas relações e que aprendeu a partilhar o que tem. As irmãs, porque são uma referência moral de seriedade e de atenção ao outro, funcionam como um centro da autoridade moral da Ilha, uma autoridade conquistada pelo serviço e não pelo poder. A Casa de Betânia é gerida por elas e muito bem, mas voltamos à situação da Casa, que é muito antiga, em madeira e o clima é muito forte a nível de temperatura e de humidade. À parte da casa, que está quase a ameaçar ruína, nós temos, sobretudo, espaços muito exímios. Também, temos pessoas nas suas casas, que são atendidas pelas irmãs, que são acompanhadas pelos escuteiros, que são acompanhados por outras pessoas de boa vontade, numa rede de relações que funciona, mas que teria muito mais condições, até de mobilidade, numa estrutura pensada, por exemplo, os chuveiros que temos nas casas de banho, enfim, são espaçosos para uma pessoa normal, mas não para alguém que já precisa de ser ajudada ou de uma cadeira de rodas e não é possível continuar muito mais tempo com a Casa de Betânia como está. A gerência é da responsabilidade das irmãs e os idosos são acompanhados 24 horas por dia, por duas senhoras, mãe e filha, que são outras duas pernas que ali temos. Qualquer pessoa pode lá ir a qualquer hora dia, porque a Casa está, sempre, imaculadamente limpa e arrumada, não há maus cheiros, as pessoas estão bem atendidas e estão numa situação de conforto, que precisa de ser aumentado, neste momento, porque a estrutura já não responde às necessidades. Nós já lançamos a primeira pedra da Casa de Betânia, cuja construção foi orçada em 317 mil euros, 100 mil euros mais caro, do que seria se fosse construída em São Tomé, mas isso tem a ver com a logística, tem a ver com o facto de tudo o que chega ao Príncipe tem de ser transportado de barco e é uma logística brutal. Nós, neste momento, líquidos, garantidamente, na nossa mão, temos cerca de 181 mil euros e que vai sendo acrescentando aos pouquinhos, todos os dias. Todas as ofertas são registadas e publicadas, porque quem dá um euro ou quem dá um milhão de euros, tem exatamente o mesmo direito de saber para onde foi o seu dinheiro. O que chega para a Casa de Betânia é canalizado para a Casa de Betânia, o que vem para o Banco de Leite é canalizado para o Banco de Leite e, até agora, nunca tivemos falhas.

 

Quais são os seus maiores sonhos?

Eu vou sonhando um de cada vez, mas o sonho maior, e eu acho que é o de todos os que estamos e damos a cara por este tipo de projetos, é que o nosso trabalho seja útil e chegarmos ao momento em que não seja preciso fazer nada disto. Enquanto formos necessários, vamos fazendo e vamos estando e, aqui, volto a repetir esta ideia. Há duas coisas que eu não suporto, uma é ver os pobres a dar de comer a tanto sacana, a outra é ver tanto sacana a aproveitar-se dos pobres para se enfeitar. O sonho que eu tenho é este sonho de sentir, ou de perceber este tipo de atividade, não por alguma coisa que vem de outro mundo, mas por alguma coisa que é tão natural, como a nossa existência, como pessoas, como seres humanos, porque a atenção ao outro, é só isso. O meu sonho é que o mundo fosse como o meu bairro era, porque todos nós eramos filhos do bairro, todos nós tínhamos a liberdade, livre, de podermos entrar na casa uns dos outros e aquilo era o que eu chamo de coscuvilhice pró-ativa, ou seja, toda a gente sabia da vida de toda a gente, porque era uma comunidade pequenina, mas claro que se fazia algum serrote, como se costuma dizer aqui, e o facto de eu saber a vida do outro e saber as necessidades do outro fazia com que, sem ser preciso o hipocritamente correto “se for preciso alguma coisa diga”, nós fossemos lá mesmo, porque não havia uma regra escrita. Por exemplo, as casas eram geminadas duas a duas, com quintal e jardim e não havia nenhuma regra escrita, mas se a dona de uma das casas ficasse doente a vizinha da casa geminada ia imediatamente para lá, sem perguntar se fazia falta, porque é claro que fazia falta, então, toda a gente ia. Era um bairro sem peneiras, eramos todos pobres e todos tínhamos consciência disso e todos tínhamos consciência de que o vizinho do lado, o vizinho da frente, ou o que fosse, precisava de nós, como nós podíamos precisar dele e é este o meu sonho, não há mais do que isto. É este sonho da construção de um mundo, desde logo, sem senhores e sem escravos, é complicado, e, sobretudo, sem gente que tem a mania que tem Deus na barriga, ou que tem o rei na barriga. Nós temos muita gente inchada de Deus, mas aquilo é só gazes e temos muita gente que tem a mania que tem o rei na barriga, mas não sabe que um dia a coroa há de sair por algum lado e ela há de sair. O importante é que os danos colaterais não sejam muitos e, sobretudo, que não sejam sempre os mesmos a pagar a fatura das elucubrações, ou dos arrotos de abundância de quem vive, como se tivesse Deus na barriga.