A ESCOLA DEVERIA SER UM ESPAÇO TAMBÉM DE CULTURA

O músico, ator, professor e contador de histórias Paulo Alexandre Jorge, com um percurso exemplar como saxofonista no universo do free jazz ou da free improv, fundador do coletivo “The Free Jazz Company”, que se dedica à exploração e à experimentação musical, é o nosso convidado de hoje. Frustrado com a educação musical pública no nosso país, criou em 2002 o “Carl Orff Projeto – Educação Musical”, que dirige e onde leciona. Paralelamente, exerce a função de professor de música e teatro em diversas instituições do Porto e Grande Porto. Fundou recentemente a “Real Companhia de Teatro do Chulé”, que dirige com Clara Gonçalves e que se dedica ao teatro, à “contação” de histórias e à música para a infância e juventude. Com diversos discos gravados e inúmeros concertos realizados no país e no estrangeiro, o músico, de perfil performativo e cénico, tem sentido a necessidade de explorar outros caminhos, dando assim lugar ao ator em vários trabalhos no teatro e no cinema. O seu caminho tem passado ultimamente por Gaia, na sua dupla função de artista e formador, pelo que o desafiamos a uma reflexão sobre o teatro profissional nesta cidade.

 

 

Na tua opinião, o que falta para que o teatro profissional em Gaia se constitua como alternativa à crescente oferta cultural da cidade do Porto?

Os projetos, sejam eles de que cariz forem (artísticos, científicos, lúdico-recreativos), são as pessoas. Se as pessoas que os concretizam forem grandes os projetos serão enormes, se as pessoas que os realizam forem boas os projetos serão o céu. Para um projeto se constituir como referência tem que se oferecer regularmente, insistentemente, resistentemente, com qualidade: no caso de um projeto profissional teatral, pela excelência do seu repertório, dos seus espetáculos, da sua intervenção social e pública, pelas suas opções estéticas e políticas. São precisas pessoas boas com boas ideias, excelentes artistas, ótimos diretores. Pessoas com tempo, porque a referência só vem com o tempo. Resistentes. Insistentes. O Teatro é como o vinho do Porto, precisa de idade para ser apreciado e com a idade fica melhor. Depois vem tudo o resto: a necessária sala de ensaio, os meios técnicos de luz e som, figurinos, onde guardar os cenários, os patrocínios e os apoios. E espaços para se apresentarem os espetáculos: a rua, o salão paroquial, o bar, o palco da associação, a black-box, o auditório. Tudo importante. O teatro profissional em Gaia tem que se valer da qualidade dos seus projetos. Não conheço profundamente os diferentes grupos que moram em Gaia. Conheço o resultado do que vão fazendo nos seus espetáculos e reconheço em alguns grande qualidade. Também a partir da experiência que vou tendo com a apresentação dos meus diversos projetos musicais e teatrais em Gaia, penso que a maior dificuldade que vão enfrentando, para além da eterna falta de apoios, é precisamente a falta de espaços para ensaiar e para se apresentarem com regularidade. [Na cidade] Há o Auditório Municipal, infelizmente com muito pouca atividade, e o Armazém 22 [que] vem fazendo, desde há uns tempos, um bom trabalho, e não se pode esquecer a Tuna Musical de Santa Marinha, onde aconteceram as duas primeiras edições do Festival de Teatro José Guimarães. Mas é pouco, é curto. E deve vir, dessa falta de espaços teatrais e da reduzida regularidade e frequência com que os projetos se vão mostrando, a pequenina dinâmica cultural teatral que se vive, dando a sensação que não existe nada. E, neste aspeto, realço novamente o Festival de Teatro José Guimarães, que, durante vários fins-de-semana, chama grupos, organiza vários espetáculos, para todas as faixas etárias, apoia a formação, promove encontros entre criadores e públicos, forma públicos. “Construam os lagos e os peixes aparecerão”, dizia Ribeiro Telles. E penso que é verdade.

 

No que respeita à formação de públicos, como se deviam articular a escola, o município e os agentes culturais?

Preocupa-me a formação de público infantil e juvenil, é por essas faixas etárias que tudo deve começar. As atividades de expressão, educação e animação artística teatral deveriam ter lugar cativo no curriculum educativo de um jardim-de-infância, de uma escola de formação básica. Não têm. Os educadores e professores não possuem formação teatral consistente, nem dispõem de grandes possibilidades de fuga do espartilho ler-escrever-contar, matemática-português-bilogia-fisica, os profissionais especializados e os artistas raramente atravessam os espaços escolares. A escola deveria ser um espaço também de cultura, onde fosse possível a apresentação regular de propostas artísticas teatrais. Nesta lógica, todos os agentes artísticos e políticos deveriam ter a escola como centro – apontando para lá as baterias das suas intervenções e ações.

 

Os espetáculos de iniciação, os primeiros a que as crianças assistem, devem fazer o cruzamento do teatro com outras artes, ou essa multidisciplinaridade é irrelevante?

Penso que é irrelevante. Um espetáculo de teatro que se crie com a obrigatoriedade de ser multidisciplinar será um espetáculo frágil. Importante é ter uma boa ideia, uma boa história, com significado. O modo como será montada não carece de ser multidisciplinar. A música chama a atenção? A dança seduz? Os cenários fascinam? Mas vejamos a arte dos Contadores de Histórias: há o contador, o seu corpo e a sua voz, poucas vezes pouco mais, e é ver as crianças, os jovens e os adultos fascinados com o que está a acontecer. Importante é ser um espetáculo bom, de qualidade. E recordava as palavras do querido Manuel António Pina, quando afirmava que um teatro para a infância não teria que que ser para a infância, teria que ser teatro. Do bom.

 

E na tua opinião, na iniciação às artes de palco, o teatro deve ir à escola ou a escola ao teatro?

Penso que ambos os “circuitos” são desejáveis, são importantes, fazem todo o sentido, devem existir. Reforço a ideia de que, na escola, a presença do teatro será tão mais forte quanto maior a envolvência efetiva dos diversos agentes educativos e artísticos, assumindo-o em sede de projeto educativo.

 

Que papel deve ter o Município no desenvolvimento deste projeto educativo que tem o teatro como matéria catalizadora?

O Município, como entidade política gestora de uma cidade (pessoas, espaços, relações), é parceiro “natural” da escola, não pode ser de outra forma. Mas os Municípios, em Portugal, assentam as suas ações em relações de poder – não em ações de cooperação, de colaboração, de apoio desinteressado, de incentivo, de compromisso apartidário; e assim se passa, de uma forma geral, com a escola: o Município quer tutelar, quer coordenar, quer mandar, quer controlar; o Município ordena, legisla, regra; o Município não quer que a escola seja principal e mais importante. Dificilmente se encontra um Município que aborde as escolas procurando escutar, detetar interesses, de modo a oferecer um apoio com significado. Porque é esse o papel do Município: apoiar, potenciar, dar as condições humanas/materias e técnicas, oferecer projetos artísticos significativos para a escola e não um menú àpriori, “à la carte”, sem sentido vital para aquela determinada comunidade.

 

E até que ponto a comunidade educativa está verdadeiramente recetiva a um maior “investimento nas artes” como matéria de formação no contexto escolar?

Penso que a comunidade educativa é sensível à importância das artes e ao teatro em particular. Há, no entanto, alguns aspetos que dificultam a operacionalização desse interesse e desse reconhecimento: o facto de a escola não ser dotada de grandes recursos materiais (económicos e espaços), o facto de os professores e os educadores estarem em permanente pressão de um currículo estilo “ler-contar-escrever”, o facto de os professores terem uma deficitária formação base no que diz respeito ao teatro e à expressão artistica – as atividades artísticas na escola precisam de ser atravessadas por especialistas e artistas, disso não tenho dúvidas.

 

Podemos concluir, portanto, que a implementação das artes como instrumento de formação holística das nossas crianças só é concretizável através de uma partilha solidária de responsabilidades entre a autarquia, a escola e os agentes culturais?

Sim, claro. Esse trabalho conjunto é fundamental.

 

A terminar, para quando o teu regresso, como criador e intérprete, e em que espetáculo, aos palcos de teatro em Gaia?

Neste momento preparo a reposição de uma peça que estreei pela Real Companhia de Teatro do Chulé no passado mês de novembro, “Mortes, medos e paixões”, talvez no Armazém 22. Gostaria ainda de levar esse espetáculo de contos e sombras a algumas escolas de Gaia. Para muito breve, queria estrear também algo que venho montando, em torno do universo das Princesas, Cavaleiros e Dragões, um espetáculo de contador de histórias com a técnica da commedia dell’arte, mas ainda não tenho espaço previsto em Gaia.