“À ESPERA DE BECKETT” NO PALCO DA TUNA DE SANTA MARINHA

Jorge Louraço Figueira, dramaturgo, encenador e professor na ESMAE – Escola Superior de Teatro e Artes do Espetáculo, onde coordena a Pós-Graduação em Dramaturgia, é o nosso convidado de hoje. Formado em relações internacionais e em antropologia social, fez a Oficina de Escrita Teatral de António Mercado no Teatro Nacional São João, o Seminário Traverse Theatre nos Artistas Unidos, a Residência Internacional do Royal Court Theatre, o Seminário de Escrita Teatral de José Sanchis Sinisterra no Teatro Nacional D. Maria II e doutorou-se depois em Estudos Artísticos na Universidade de Coimbra.

Foi crítico de teatro no jornal Público entre 2005 e 2017 e desenvolve intensa e continuada atividade como investigador em teatro. Iniciou-se na escrita dramatúrgica com “O Espantalho Teso”, escrevendo depois, entre outras peças, “Xmas qd Kiseres”, “Êxodos”, “Teleganza” e “Cassandra de Balaclava”, que cedo subiram a cena. E juntou a encenação à escrita de algumas das suas peças, como aconteceu em “À Espera de Beckett ou Quaquaquaqua”, que será apresentada no próximo dia 13 de novembro na terceira edição do Festival de Teatro José Guimarães, na Tuna Musical de Santa Marinha, em Gaia, depois de ter passado pelas cidades de Lisboa, Viana de Castelo, Matosinhos, Porto, Almada, Vila Real, Seixal, Aveiro, Coimbra e Sever do Vouga.

 

 

Como é que o espetáculo “À Espera de Beckett ou Quaquaquaqua” tem sido recebido nos vários teatros onde se apresentou e quais as expectativas para Gaia?

Tem sido recebido sempre bem, mas de maneira diferente em cada lugar. Estreámos no fim de 2017, na sala estúdio do Teatro da Trindade, em Lisboa, e fomos em janeiro de 2018 ao Sá de Miranda, em Viana do Castelo; e em março ao Constantino Nery, em Matosinhos. Estas três casas foram coprodutoras do espetáculo e são teatros muito diferentes: em Lisboa o público estava muito perto dos atores, era quase como se estivesse dentro na sala de ensaio da ficção; em Viana, num teatro à italiana, o cenário ficava muito bonito, como se pairasse no palco; e em Matosinhos a relação da plateia com o palco era mais direta que em Viana, mas mais distante que em Lisboa, então tínhamos o melhor dos dois mundos. E eu sou um bocadinho difícil de contentar, estou sempre a mudar coisas, e às vezes conforme a reação da plateia. O início do espetáculo, por exemplo, teve duas ou três versões! O final foi bastante modificado da primeira para a segunda temporada, e da segunda para a terceira… Depois disso ainda fomos ao Carlos Alberto, no Porto; ao Joaquim Benite, em Almada; e a Vila Real, no dia mundial do teatro. No Porto foi onde a reação foi mais efusiva, mas em Vila Real o espetáculo também correu muito bem… Ainda como à Festa do Avante!, a Aveiro, a Coimbra, a Sever de Vouga… Fizemos já 30 apresentações, mas a peça foi mudando, não sei se é exatamente a mesma!… Enfim, para o festival [José Guimarães] teremos de fazer algumas adaptações por causa do espaço e imagino que voltemos à relação mais próxima do público da temporada de estreia, mas com as mudanças e amadurecimento da rodagem… Espero que seja feita de modo mais livre, que é como deve ser, com os atores [Estêvão Antunes, Mário Moutinho, Óscar Silva e Pedro Diogo] a poderem inventar mais e relacionar-se diretamente com o público.

 

Lemos algures que o espetáculo é uma grande homenagem ao ator Ribeirinho e à marca que deixou no teatro (e no cinema) português. Mas será que se esgota aí?!…

É um espetáculo sobre as três montagens que Ribeirinho fez da peça “À Espera de Godot”, de Samuel Beckett. Essa peça de Beckett é sobre impasses, e dá-se o caso de as três montagens que Ribeirinho fez coincidirem com três momentos de impasse coletivo em Portugal: em 1959, a ressaca da campanha eleitoral de Humberto Delgado; em 1969, a queda de Salazar; em 1973, quando Ribeirinho leva a peça do Beckett em digressão a Angola, o fim do regime… Cada cena ilumina um destes episódios históricos: a primeira e a segunda cena passam-se em 1959 e em 1969, na sala de ensaios; e a última cena é já durante a desmontagem da peça, em 1973. O espetáculo é sobre a escolha entre pensar pela própria cabeça, de um lado, ou seguir as sentenças alheias… Essa escolha está materializada na trajetória do Ponto Pinto, personagem que tirámos do filme “O Pai Tirano”, e que acompanha as três montagens, evoluindo na sua posição face a essa escolha. Ao mesmo tempo, dá-se o caso de Beckett ter passado por Portugal em 1969. A ideia da peça veio da possibilidade de um improvável encontro imaginário entre Beckett e Ribeirinho. Ou mais propriamente entre a figura mítica de Beckett e as personagens famosas dos filmes de Ribeirinho, como Rufino Fino, Mestre Santana, etc. Como seria?

 

O espetáculo atravessa três décadas da história do teatro em Portugal. O que mudou desde então? O que é urgente no teatro, tanto a nível nacional como regional?

Uma das coisas que a mim me parece importante, embora talvez não seja propriamente urgente, é conhecer melhor a história do teatro em Portugal desde os anos 1950, para entender a formação dos artistas e do público, e também conhecer melhor o teatro feito fora dos grandes centros e fora do meio profissional. As pessoas que fazem e veem teatro conheceriam mais e melhor o que é feito, o que não é feito e porquê. Talvez então se montassem outras peças além do “Aqui há Fantasmas” (peça de que gosto muito, de resto). É urgente que o ensino artístico e das humanidades, público, do básico ao superior, tenha meios suficientes para estudar o teatro que se fez, que se faz e que se fará, tendo tempo para investigar a história, fazer crítica e experimentar novas formas. E é urgente que a rede de teatros públicos seja equipada não só com meios, mas com pessoas capazes de cumprir a missão desses teatros, parte da qual é criar espetáculos, além de acolher espetáculos, o que também é urgente, claro. Mas o mais urgente, quanto a mim, é que os dramaturgos tenham ocasião de experimentar as suas ideias em cena, e não apenas no papel. É urgente que no teatro haja debates vivos, se vejam ideias a ganharem corpo, para podermos sair renovados dos espetáculos.

 

A uma escala municipal, tendo como referência a realidade em Gaia, que medidas preconizarias visando um maior desenvolvimento e democratização de teatro?

Eu faria uma escola livre de artes cénicas, com turmas de interpretação de vários escalões, dos 7 aos 10, dos 11 aos 14, dos 15 aos 18 e por aí fora. Um concelho como Gaia facilmente teria gente para duas ou três turmas por faixa etária. A escola precisaria de pessoas com competências artísticas e pedagógicas. Esses grupos fariam todos os anos uma ou duas apresentações, produzidas com padrão profissional, isto é, com equipas artísticas e técnicas capazes e bom equipamento de luz, som, vídeo, etc. Uma escola assim teria de ser descentralizada, espalhada pelas várias salas de teatro do concelho, que as há, mas com ocasiões e sítios onde se pudessem cruzar uma vez por ano. Quem quisesse seguir depois o ensino profissional ou superior e profissionalizar-se, podia. Mas haveria dezenas de amadores a fazer trabalho de qualidade, tal como há dezenas de músicos nas bandas filarmónicas. Este é mais ou menos o modelo implementado em Coimbra, pelo Teatrão, concentrado na Oficina Municipal de Teatro, mas que em Gaia poderia estar distribuído pelas freguesias e/ou bairros. Ou seja: formação, equipamento, espaço, para constituir uma rede de criação teatral. Em quatro anos mudaria o panorama do teatro, não só no concelho, mas também na área metropolitana do Porto. Em vez de investir num grande espaço cultural, que concentra meios e nunca consegue integrar toda a gente, espalharia o investimento por vários polos de atividade.

 

Para além do eventual acolhimento dos trabalhos anuais dessa Escola de Artes Cénicas, que outro papel destinarias ao Auditório Municipal de Gaia ao longo do ano?

Com a localização que tem, o Auditório Municipal de Gaia (AMG) seria perfeito para centralizar essas apresentações e ter uma programação regular de música, dança e teatro. Bem sei que a sala é grande para certo tipo de propostas. Mas não se poderia improvisar uma sala estúdio? Ou fazer projetos de escala média e grande. A ideia de que o Porto já cumpre essa função é errada. Almada, por exemplo, não se deixa acanhar pelo gigantismo da oferta proporcionada pelas várias salas municipais, nacionais e independentes de Lisboa. Além de que a programação do AMG poderia ser distinta, de maneira a destacar o AMG no contexto regional. A demografia da região permite ter ambição. Mas, como em tudo, a dificuldade é ter um pensamento que sustente as ações e permita a prazo cumprir os desígnios constitucionais de dar a oportunidade de criação e fruição artística a todos.

 

A terminar, fala-me de ti. Em termos profissionais, que projetos tens neste momento em mãos e que ideias andam a germinar pela tua cabeça para o futuro?

Continuo a coordenar a pós-graduação em dramaturgia na ESMAE, este ano sairão do forno mais 11 textos. Os textos selecionados o ano passado começaram a ser emitidos na RTP 2 no fim de outubro, e há outros que passarão, na forma de teatro radiofónico, na Antena 2. Entretanto, ainda em 2021, espero, estrearei uma série de peças sobre as transformações dos modos de vida em Portugal desde o fim dos anos 1970, em especial a mudança dos modos de ganhar a vida e a maneira como isso afeta a imagem que as pessoas têm de si mesmas e do seu destino… Será uma espécie de painel sobre a indústria, o comércio, a agricultura, as pescas… Dito assim parece nome de ministério. É quase isso. Interessa-me misturar neorrealismo e surrealismo, para ver se dá uma coisa como a nitroglicerina. E espero que sejam coisas a partir de elementos e práticas da arte popular. Vamos ver no que dá.