“A PERCEÇÃO É QUE CHEGAMOS AO FIM DA LINHA E TEMOS DE ESCOLHER FICAR OU SEGUIR EM FRENTE, COM MAIS OU MENOS LIBERDADE. E SEGUI…”

Desde os 11 anos que conheço a Ana Catarina Gomes, natural da Ilha do Pico. Uma menina que nasceu com Glaucoma Congénito, que sempre gostou muito de ler, escrever e adquirir conhecimentos. Já no continente, vinte anos após deixar os Açores, recebo a notícia que a menina Ana Catarina era a presidente da assembleia geral da ACAPO, na Ilha de São Miguel – Açores, fiquei muito feliz e partilho com os leitores esta entrevista.

 

Em que momento da tua vida foste perdendo a tua visão? Foi algo progressivo?

Logo após o nascimento, assim que foram realizados os primeiros exames, os profissionais de saúde perceberam que havia algo muito diferente que se manifestava nos meus olhos. Pelo que me contam, seria uma espécie de película cinzento-azulada que, ainda assim, me permitia ter perceção luminosa. Fui um dos últimos bebés a nascer na ilha do Pico e, naquela altura, como ainda hoje, não havia meios de diagnóstico capazes de trazer um maior entendimento sobre o meu estado de saúde visual. Por isso, fui encaminhada para o hospital da ilha Terceira com apenas três dias de vida e depois para Lisboa. Fui operada pela primeira vez aos dezanove dias e depois seguiram-se diversas outras cirurgias, numa das quais, por negligência médica perdi a visão do olho direito. Tinha mais ou menos dois anos e um glaucoma congénito que precisava de ser controlado, com vista à estabilização. As minhas primeiras memórias correspondem a esta idade, pelo que entendo que, provavelmente, não terá sido um processo muito fácil. A minha primeira infância foi sempre passada entre o Pico e Lisboa, com viagens, muitas vezes de três em três semanas. A estabilização chegou por volta dos nove anos, quando, fui submetida a uma cirurgia inovadora que permitiu a estabilidade da pressão ocular até à vida adulta em valores que possibilitaram travar a perda da acuidade visual, que era já abaixo de 1/10.

 

Mas foi difícil, não?

Fiz todo o meu percurso escolar com baixa visão e com pouquíssimas medidas educativas específicas. Tinha na escola uma lupa de ampliação eletrónica que chegou por volta do meu 7º ano de escolaridade e, posteriormente, com a ajuda do Álvaro Bastos, na altura, representante de uma revista que eu gostava muito, “O Nosso Amiguinho”, consegui uma também para casa. Se hoje os produtos de apoio são extremamente caros, naquela altura eram ainda mais. Uma lupa de secretária, rondava os 800 contos, um valor inacessível para muitos agregados familiares, como era o caso do meu. Entretanto, os materiais ampliados foram sempre o maior de todos os aliados, já que as lupas não eram portáteis. De resto, o tempo foi passando e, com mérito, sou admitida no Ensino Superior e licenciei-me em Serviço Social.     Inicio novo processo de perda visual aos 28 anos, após o nascimento da minha filha Clara. Entre muitas cirurgias, os descolamentos de retina não foram possíveis de conter. A situação fica fechada aos meus 30 anos e a visão reduzida à perceção luminosa. Foi uma fase muito difícil, comparada ao processo de luto e vivida em quase todas as suas fases. A perceção é que chegamos ao fim da linha e temos de escolher ficar ou seguir em frente, com mais ou menos liberdade. E segui, com o apoio da minha família que mesmo longe, sempre esteve presente e sempre me apoiou nos momentos de maior necessidade. O meu marido sempre foi fundamental e adaptámo-nos, no fundo, ao que é agora a nossa realidade. Vivo em São Miguel há muitos anos e somos uma família nuclear de três. Somos muito uns para os outros, cada um contribui da melhor forma que pode e consegue. Vivemos muito bem e somos muito felizes.

 

Como presidente da Mesa da Assembleia Geral da ACAPO, nos Açores, conta-nos como surgiu este momento tão decisivo na tua vida?

A ACAPO tem um dos movimentos associativos de pessoas com deficiência mais antigos do nosso país. São muitas décadas de desafios gigantes, de conquistas muito meritórias alcançadas pelas pessoas com deficiência visual que, orgulhosamente, se autorrepresentam. O lema “Nada sobre nós, sem nós” expressa muito bem o caminho que pretendemos ajudar a construir em prol da inclusão de todas as pessoas cegas ou com baixa visão. Este deve ser um percurso em que a autonomia, independência e autodeterminação das pessoas com deficiência visual, se destaca e aniquila as adversidades do meio em que vivemos. A oportunidade surge sempre que identificamos necessidade de contribuir e agregar valor ao percurso das instituições, de modo a que isso possa gerar benefícios para as pessoas. Em 2017, considerei que poderia contribuir para cumprir a missão e visão da ACAPO nos Açores e, por isso avançámos com a candidatura. Estamos a terminar o segundo mandato. A Mesa da Assembleia Geral de Delegação é um órgão administrativo que viabiliza a execução e a sua postura deve ser colaborante, a fim de que as melhores opções sejam adotadas pelas pessoas com deficiência visual nos Açores.

 

Já com vários projetos de sucesso o que queres ainda realizar?

Se nos fosse dada a possibilidade de concretizar desejos e se estes não estivessem dependentes de tantos fatores, em nada me importaria de ser agente ativa da expansão da ACAPO e da sua prestação de serviços especializados a mais ilhas dos Açores, para que nenhuma pessoa cega ou com baixa visão, que não seja por vontade própria, não tenha acesso a serviços para se reabilitar e fazer escolhas.

 

Estiveste na assinatura de protocolo com a Câmara Municipal de Ponta Delgada. As Câmaras Municipais da Ilha de São Miguel, são inclusivas? A cidade está adaptada ou as pessoas adaptam-se à falta de acessibilidades?

As autarquias têm um papel fundamental para a promoção da acessibilidade e têm a grande responsabilidade de tornar as cidades locais aprazíveis e acessíveis para todos os seus munícipes, independentemente da sua condição sensorial, física, intelectual ou mental. Obviamente que são estruturas que obedecem a normativos legais e sinto que empenham esforço e recursos em prol da inclusão de todos quantos vivem e visitam as cidades e os concelhos. Também passam e ultrapassam muitas vicissitudes e também precisam que as pessoas se envolvam na mudança que é necessária concretizar. É uma responsabilidade parte a parte e implica que as instituições representativas dos direitos e interesses das pessoas com deficiência se envolvam e dirijam propostas concretas a quem tem o poder e mais recursos para alterar o estado das coisas, contribuindo com o seu know how nos diversos temas que produzem efeitos na vida das pessoas com deficiência. De outro modo, continuaremos a adaptar-nos ao que não está pensado para nós e a denunciar situações consolidadas.

 

Quando te sentas nesta cadeira, que desafios enfrentas, o que querias ou gostarias de mudar, para uma cidadania mais inclusiva ou consciente para pessoas com deficiência, em que a mobilidade é um desafio?

Em primeiro lugar, gostaria que a boa legislação que se produz no nosso país pudesse ser implementada, de facto, no sentido de ser evidente a garantia do exercício pleno de direitos e deveres por parte das pessoas com deficiência. Este é o caminho para a desconstrução de estereótipos e de diversos mitos associados à deficiência. Existem excelentes exemplos a nível nacional e internacional que devem inspirar o contexto regional e que, invariavelmente passam pela reabilitação funcional adequada, pelo ensino adequado às necessidades específicas dos alunos com deficiência e pela criação de oportunidades de emprego nos diversos setores de atividade públicos e privados. A par disto e ultrapassando a questão dos apoios sociais, garantir que as pessoas com deficiência têm acesso à habitação, alma rede de transportes que inclui soluções de acessibilidade e a espaços e iniciativas nas áreas da cultura e lazer pensado para todos. Em suma, a opção pelo desenho universal será sempre o caminho a seguir. A coroar tudo isto, devemos ter a vontade e o poder de escolha das pessoas com deficiência, por meio das instituições e movimentos associativos que as representam, a agitar todo o processo de mudança.

 

Sei que ficaste feliz pela notícia de um jovem cego concluir o doutoramento em direito. A que sabe estas vitórias de pessoas cegas?

Sou uma pessoa que, naturalmente, se sente feliz com as conquistas das outras pessoas, mas confesso, dão-me um gosto especial as conquistas das pessoas com deficiência visual porque sei o que lhes custaram e o preço alto que pagaram para as alcançar. Sei-o porque também eu sou uma pessoa cega e a vida inteira me senti em esforço para ter os mesmos direitos que as outras pessoas têm. Não acedemos à informação com a mesma facilidade, não nos deslocamos no mesmo ritmo, sentimos (muitas vezes) as nossas possibilidades mais reduzidas. Não temos ainda equidade na educação e no emprego. Somos muitas vezes discriminados e tratados como se a deficiência nos definisse… E apesar de todas estas condicionantes, que todos os dias contrário e me questiono porque são tão difíceis de destronar, chegamos onde todas as pessoas com objetivos, trabalho e valor, chegam. As pessoas com deficiência não querem nem precisam de ser super-heróis. Não querem, nem precisam dar nas vistas devido à sua condição de deficiência. Não querem, nem precisam de ter mais direitos do que ninguém e devem estar conscientes de todos os seus deveres, como os demais cidadãos. As pessoas com deficiência apenas precisam que a sua condição não seja agravada pelo meio, em todas as vertentes e dimensões das suas vidas, porque só assim conseguirão alcançar a vida independente a que têm direito e que está consagrada no primeiro tratado de Direitos Humanos do século XXI, a Convenção Internacional das Pessoas com Deficiência.

 

O que são na tua vida os teus pais?

São a base e o aconchego, tenham a idade que tiverem e, perto deles sinto-me sempre a mesma miúda despreocupada e de bem com a vida. Sempre foram exemplares no desempenho de todos os seus papeis sociais e, de certa forma, procuro sempre seguir o seu exemplo, para que, no final, tudo tenha valido a pena, à conta do nosso esforço, trabalho e perseverança.

 

Ana Catarina, desculpa fazer esta pergunta, pois é delicada, tens uma filha incrível, como defines o sorriso da tua filha?

Crio imagens mentais para quase todas as coisas. No caso dos rostos das pessoas, acaba por ser um pouco à imagem do que acontece com a maioria de nós em relação aos rostos dos locutores de rádio. Ou seja, imaginamos uma figura, construída com base no que a voz nos faz crer que seja o aspeto da pessoa. Obviamente que tenho o trabalho aqui mais facilitado no que se refere ao rosto da minha filha. Conheço-o ao pormenor porque posso tocar-lhe. O sorriso dela é expressivo, cheio de alegria, bem rasgado e pouco contido, como o meu.

 

Ela toca harpa, como soa no teu coração o som da harpa tocada pela tua filha?

Para os pais, todas as conquistas dos seus filhos são envoltas de um grande fascínio e de admiração porque eles são o resultado de nós mesmos, de preferência numa versão melhorada. Quando são bem-sucedidos, ainda mais orgulhosos ficamos e incentivamo-los a crescer cada vez mais, de acordo com os seus talentos e preferências. A Clara sempre gostou muito de música e entrou no Conservatório para um instrumento invulgar, no primeiro ano em que abriu o curso de harpa. Já avançou muito e já tem a sua própria harpa. Sempre que toca em casa, eu sou a sua primeira espetadora. Gosto muito de a ouvir e gosto, não só porque toca bem e o som é incrivelmente inspirador, mas porque ela é corajosa, sensível e generosa na partilha da sua música.

Ana Catarina, menina de sonhos e de poemas, ainda tens sonhos…e os poemas?

Vivo, alimentando-me dos meus sonhos. Na verdade, tenho muitos realizados e muitos mais por realizar. Enquanto sentir inquietação, então ainda falta fazer muita coisa. O mundo é dinâmico e nós, agentes de transformação e de mudança social. Os poemas são uma forma de expressar e de extravasar a minha inquietação. Sempre gostei muito de ler e de escrever também e esse gosto era incentivado pela minha família. A minha avó paterna e o meu pai, para além do que escreviam para eles, presenteavam-nos nas datas mais importantes com poemas que nos dedicavam. Eu, como bom aprendiz que sou, também me entusiasmei pela música que o nosso pensamento é capaz de trazer às palavras. Tenho muito pouco tempo livre, mas muitas vezes, quando estou só comigo mesma e sem esforço, vão caindo ideias musicadas difíceis de acompanhar pela escrita. Ando a registar poucas coisas, mas quem sabe, me possa voltar a focar nesta tarefa, se me conseguir encontrar melhor, apesar das demandas do nosso dia-a-dia.

 

Podemos esperar um livro com os teus sonhos escritos em poesia?

Nunca se sabe. Talvez um dia, quando tiver a certeza que esse trabalho contribuirá para a vida de alguém, para além da minha.

 

Enquanto esperamos pelas poesias da Ana Catarina, partilho com os leitores do jornal audiência uma das poesias que escreveu quando frequentava a escola básica de Santo Amaro, são Roque do Pico e foi publicada na revista Nosso Amiguinho.

 

A ILHA do PICO

Na Ilha do Pico nasci,

Ilha dos meus amores.

Mais linda nunca vi

Ela é o cenário dos AÇORES.

 

Ilha que eu adoro

Ilha sem igual.

Pico por ti choro,

Minha terra Natal.

 

O Pico é terra abençoada

Por Deus nosso Senhor.

O Pico é terra amada

Por todos nós como muito Amor.

 

O Pico é um ponto turístico

De uma dimensão tamanha.

O pico tem espírito artístico

À volta de uma montanha.

 

Agora vou ficar por aqui

Mas não me levem a mal.

Terra Iguaí nunca vi

Como este cantinho de Portugal.

                                                                                          Ana Catarina Gomes