ADIEU, MONSIEUR L’HOMME

Na sexta-feira, 10 de março, levantei-me decidido a ir fazer contas com o Tio Samuel. Um balde de café para despertar, cigarro para matar, e às nove da matina pus-me a caminho da Bedford Street, ao escritório de Monsieur L’Homme. Estacionei o carro e dirigi-me à porta, onde notei qualquer coisa fora do vulgar: um letreiro que dizia “fechado”, e um pedaço de papel a informar que o escritório estará encerrado por tempo indeterminado. Muito estranho, principalmente agora, na altura das taxas. Regressei a casa, e não me conformando com a situação fiz uma chamada telefónica ao escritório. Fui atendido, e ao mesmo tempo informado que Monsieur L’Homme morreu!

Leo Robert L’Homme, como o seu nome assegura, é de ascendência francesa, cujos antepassados foram de França para Quebéc, e na viragem do século 19 para 20 se mudaram para a Nova Inglaterra, como tantos outros, em busca de melhores condições de vida.

A memória popular não regista grandes incidentes entre italianos e franceses. Mas os ajuntamentos dos franco-canadianos com os portugueses nunca acabavam bem. Nos anos cinquenta do século vinte Fall River foi palco de uma guerra entre franceses e portugueses, por causa de duas estátuas. Ainda há na cidade quem recorda as famosas batalhas entre os soldados do general Lafayette e o exército do Infante Dom Henrique. Adiante-se que nunca foi elaborado um acordo de paz, e por isso lá estão as duas estátuas de costas viradas uma para a outra, na Eastern Avenue. Acrescente-se ainda que, há cerca de trinta anos era muito difícil encontrar um português casado com uma francesa na cidade de Fall River.

Mister Leo nunca fugiu a esta regra de separação de raça criada pelos francófonos, mas sempre acreditou que precisamos uns dos outros, e sempre reconheceu o valor dos “Green-Beans”, como eles carinhosamente nos tratam. Por isso sempre teve grande clientela portuguesa no tempo dos impostos. Além disso, o reforço pela localização do seu escritório, numa zona em que a etnia portuguesa domina a população em cerca de noventa por cento.

Leo Robert L’Homme nasceu em Fall River em 1941. Era filho de Leo e de Anna l’Homme. Foi professor primário por muitos anos e depois passou a diretor do sistema escolar de New Bedford, onde permaneceu até à sua reforma. Aí conheceu Joan Monsour (f.2020), jovem professora naquele sistema escolar, também natural de Fall River e dotada de mestria para artes visuais, com quem viveu 53 anos de matrimónio.

Joan foi reconhecida por uma excelente educadora por 35 anos nas escolas públicas de New Bedford, e chegou também a ser, por cerca de dez anos, professora adjunta na Universidade de Massachusetts, em Dartmouth. Vista por muita gente como “classy lady”, foi membro de várias organizações cívicas, e algumas das suas obras foram expostas no estrangeiro, como por exemplo: Londres, Paris, Japão e Indonésia.

Leo também era um grande apreciador da arte diversificada, ávido golfista e membro do Fall River Contry Club. Ao longo dos anos chegou a dizer-me, umas quatro ou cinco vezes, que jogou golfe no campo Terra Nostra, em São Miguel. Para além de sócio veterano da Fall River Art Association, adorava a leitura e apreciava uma boa pescaria, nas horas vagas entre o trabalho e o viajar pelo mundo.

Ainda ligado ao sistema escolar de New Bedford, Leo fazia, em “part-time”, serviço de contabilidade, em Fall River. Quando passou à reforma este serviço mudou para tempo inteiro, adicionado a compras e vendas de imóveis.

Serviu-se de um pequeno escritório na Bedford Street por quase cinquenta anos, mas há pouco tempo, nos finais de 2019, mudou-se para um espaço maior, quase em frente daquele que usava, e que abrigou por mais de duas décadas a Agência de Viagens Lima. Já me preparava os impostos há 39 anos, e eu nunca encontrei razões para que ele os deixasse de preparar.

Neste novo espaço Monsieur L’Homme tinha a tecnologia em dia. Oferecia café aos clientes e tinha alguns brinquedos para as crianças impertinentes. Aqui não se fumava, como se fazia no escritório velho, mesmo sendo contra-a-lei. Era outra coisa e, além do mais, tinha um ajudante a tempo inteiro. Por tudo isso o preço dos seus serviços subiu, e as novas tabelas estavam afixadas na parede. Mas quando eu lhe perguntava pela minha conta, segredava-me, em voz baixa, que era o mesmo do ano passado. Ou seja: metade do valor afixado.

Depois da época alta o Monsieur Leo ia sempre de férias. Até esteve na China uma semana e tal, e admirou-se de lá não se chamar “Chinese-Food” àquilo que lá se come. Sabemos perfeitamente que aqui, na Nova Inglaterra, ele era um grande consumidor de comida chinesa, mas disse-me, no ano passado, que se havia fartado dela, dando preferência aos tacos, acompanhados de cerveja Corona.

Sempre que me via cumprimenta-me sorridente. “Señor da Ponte” para cá, “Monsieur L’Homme” para lá. Perguntava-me pela esposa, porque ela já era sua freguesa antes de eu ter posto os pés neste país; e pelo meu filho, porque é professor, como ele também foi.

Monsieur L’Homme estava bem de vida. Teve dois enfartes, mas continuou fumando, bebendo e gozando de várias formas, tendo em conta que a morte é certa. Mas no ano passado já o encontrei diferente. Mais quebrado e mais cuidado. Nem parecia a mesma pessoa. A nosso entender, Mister Leo era único no seu género. Pensava, talvez, que tinha pouco a ganhar e menos a perder, sem importar-se com aquilo que os outros pensavam dele. Recordo uma cena, no velho escritório, que nunca me esquecerá e que confirma aquilo que já foi dito:

O pequeno espaço estava cheio de gente. Dez pessoas adultas, mais o senhor Leão. Eu encontrava-me na cadeira do réu, sendo servido, sentado em frente do contabilista, e a separar-nos estava a secretária de cento e cinquenta centímetros de largura. A certo momento o homem tira os olhos do computador, e por cima dos óculos deitou uma visão geral à clientela. Apoiou-se ao braço direito da cadeira, e inclinando-se lateralmente na mesma direção soltou uma bomba de gás do traseiro, pelo lado esquerdo, que não passou despercebida a ninguém, pelo barulho que provocou. Voltou a pôr os olhos no computador, e a trabalhar com a maior naturalidade.

Para além do espanto ninguém se queixou de mau cheiro. Por sorte naquele momento o ventilador do aquecimento não estava a funcionar.

Quinze minutos mais tarde, pronto com o meu trabalho o contabilista foi pago. Nem foi preciso perguntar-lhe o preço, porque ele apressou-se a segredar-me, dizendo que era o mesmo do ano passado. Pus-me de pé, paguei, e como de costume apertei-lhe a mão. Neste momento veio-me às narinas um dos mais terríveis cheiros, e reparei que a maioria dos clientes franzia o nariz. Um escape gasoso silencioso havia saído de alguém. Desta vez não foi mister Leão, tenho a certeza, porque ele nem se mexeu da cadeira. Também não fui eu. Mais certeza tenho. Porque conheço o cheiro dos meus, e ainda sinto quando alguma coisa sai de mim. Mas como eu estava de saída pude ler os pensamentos daquela gente toda, incluindo o cantar silencioso da galinha que pôs o ovo.

Dizem, então, que Leo Robert L’Homme, viúvo de Joan Monsour, faleceu pacificamente na quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023, no Hospital de Santa Ana, após uma breve doença, e o seu funeral realizou-se a 2 de março. Paz à sua alma.

Adieu, Monsieur L’Homme!

 

Contas com Ti Samuel,

Para não dever tostão

É o espírito fiel

De todo o bom cidadão.