Foi no dia 21 de maio de 1960 que acordei de madrugada abalado pelo maior terremoto do seculo passado. O país sobreviveu, como sempre, habituado aos fenômenos telúricos que o caracterizam…mas esse abalo foi para mim e para os meus irmãos, todos ainda crianças, o salto brusco da infância a uma juventude prematura.
A irrupção brutal deste fenómeno foi o quebre violento de uma vida quotidiana e tranquila; os edifícios ruíram, parte da nossa casa também, tivemos que buscar refúgio na casa de minha avó, durante algumas semanas dormíamos vestidos para uma rápida fuga ao exterior quando voltavam as réplicas, a escola fechou e como ela também os teatros e cinemas…o único divertimento, lugar de abrigo, foi durante esses longos meses, quase quatro meses de um retorno à “normalidade”, a rádio e os programas de teatro radiofónicos.
A rua foi o lugar mais seguro para as nossas brincadeiras, brincar sobre ruínas e destroços, era o cenário de novas aventuras e inspiração…levou um tempo voltar a seguridade dos espaços fechados, voltar ao interior de casa e edifícios. Entretanto, soubemos da morte de alguns conhecidos e amigos, alguns que tinham perdido tanto como nós…o terremoto também nos habituou às perdas, às coisas perdidas e irrecuperáveis, às coisas que ficaram para trás, às paisagens urbanas desaparecidas.
Lembro estes acontecimentos porque o segundo terremoto nas nossas vidas ocorreu no dia 11 de setembro de 1973. Num dia sangrento, perdemos tudo aquilo a que nos tínhamos habituado em democracia. As perdas foram enormes; a nossa casa, a família, os amigos, os estudos universitários, o teatro e sobretudo a minha cidade…voltamos a dormir vestidos, voltamos a procurar refúgio e, novamente, teatros , escolas e universidades se fecharam para voltar abrir só mais tarde e com novas regras intervencionistas da junta militar. Também houve mortos e muitos desaparecidos, ainda há uma longa lista de quase 2000, dos quais ninguém quer dar respostas de parte dos militares, sobre o seu destino.
Depois de estar preso em duas oportunidades, a única saída era partir para o exílio e procurar sobreviver, procurar uma nova vida numa nova terra…Sobreviver é aquilo que fazemos todos os que partimos, mais do que viver, sobrevivemos…mas para nós não há um manual de sobrevivência, o essencial parecia ser, esquecer, mas o esquecimento está cheio de memória (Benedetti), e assim colocados perante a fórmula, esta, parece um paradoxo…
Vivi a minha infância e, na minha cidade, rodeado de descendentes de alemães, amigos, companheiros de liceu, professores, médicos e artistas. A colônia alemã no Chile se estende principalmente no sul do país, imigração que data desde o século XIX, se estima que hoje aproximadamente os descendentes dessa primeira geração seja de aproximadamente 500.000. Assim sendo a minha primeira etapa do exílio na BRD / República Federal Alemã, parecia natural. No ano de 1974, ali vivi, trabalhei, estudei, e dentro das possibilidades, fiz teatro! Os meus pais, Rafael e Gabriela e os meus irmãos Rafael e Marcelo, assim como as minhas cunhadas, Sylvia e Teresa, fizeram da RFA uma segunda Vaterland, durante quase vinte anos. Três dos meus sobrinhos ai nasceram e cresceram. O nosso agradecimento ao estado e ao povo alemão pela sua solidariedade é enorme!
Portugal foi um feliz destino, para mim, em janeiro do ano de 1975. Transcorreram quase cinquenta anos desse momento, marcado pela Revolução de Abril, às cidade do Funchal e do Porto devo tudo aquilo que se pode traduzir na reconquista de uma vida e etapas perdidas. O meu profundo agradecimento a todos os amigos, colegas, companheiros, alunos, camaradas e a todas às instituições artísticas/teatrais e de educação superior e profissional, que fizeram possível que o meu esquecimento continuasse a ser memória.
Epílogo
Um grupo de parlamentários chilenos entre eles, Gonzalo Winter, entregaram há dias a embaixadora dos Estados Unidos/EU em Santiago, um exemplar do livro Pinochet Desclassificado, livro que reúne documentos, dos quais todos tínhamos conhecimento, sobre a ingerência dos Estados Unidos no golpe militar, que derrubou o governo legitimamente elegido de Salvador Allende.