“FALTA UM DIRETOR ARTÍSTICO NO AUDITÓRIO MUNICIPAL”

Para “tomarmos o pulso” ao estado da arte teatral profissional em Gaia, depois de auscultarmos os principais responsáveis de cinco companhias de teatro gaienses, iniciamos hoje uma ronda por alguns dos “fazedores” de teatro residentes ou com sede de trabalho no concelho.

Para o efeito, convidámos o dramaturgo, encenador e pedagogo teatral Roberto Merino. Chileno, nascido em Concepción, cidade que dista 500 quilómetros de Santiago do Chile, escolheu o exílio quando Pinochet chegou ao poder, em 1973. Depois de algum tempo na Alemanha, acabou por se fixar em Portugal nos finais da década de 1970, onde assinou até hoje mais de uma centena de encenações. No nosso país, tem trabalhado com o TEP-Teatro Experimental do Porto, Seiva Trupe e Teatro Art´Imagem, e também com grupos amadores e universitários. Atualmente dirige o Curso Superior de Teatro da ESAP-Escola Superior Artística do Porto e mantém colaboração com outras escolas de teatro.

Na sua opinião, o que falta para que o teatro profissional tenha uma maior expressão em Gaia?

Falta mudar de rumo, apostando no crescimento e democratização da atividade cultural e artística. E no caso do teatro, falta criar sinergias e cumplicidades com artistas e criadores, renovando um caminho interrompido. Foi sem dúvida relevante a atitude do antigo presidente da Câmara Municipal, Luís Filipe Menezes, quando ofereceu “guarida” (desculpem a expressão) ao Teatro Experimental do Porto [TEP] nos idos anos do seu mandato, com a disponibilização de um espaço para sede de trabalho e armazém para guardar o valioso espólio do TEP. A ocupação do Auditório Municipal de Gaia foi uma das outras conquistas para o TEP e para o teatro profissional em Gaia, o que permitiria a existência de temporadas teatrais, como existiam antigamente, com peças em cena durante 15/20 dias. E isto significa um exercício de enorme valor formativo para os atores e para o público, possibilitando ainda alimentar a ambição de constituir mais tarde um programa de teatro de repertório, uma programação na qual se poderia revisitar peças ou montagens de uma temporada completa… Mas tudo isso já passou e ao largo, desafortunadamente…

Mas a existência de uma companhia residente implica que se feche o Auditório Municipal a outras estruturas, a outros projetos artísticos, outras propostas cénicas?

Existindo um Auditório Municipal em Gaia com uma grande centralidade e dotado de pessoal e equipamentos técnicos, acho que é necessário possibilitar a passagem por lá, em regime de acolhimento, das diferentes companhias profissionais existentes no País, nomeadamente no Norte, para a apresentação dos seus trabalhos. Era assim também uma forma de se rentabilizar os subsídios que as companhias recebem, merecem e conquistam com o seu meritoso trabalho… A descentralização de que tanto falam os nossos políticos também passa pela itinerância de espetáculos de teatro, dança e música… Temos excelentes teatros e auditórios em quase todas as capitais de Distrito, mas não existe qualquer possibilidade de levar as produções das companhias a muitos desses palcos…

O exemplo do recente acolhimento do festival Dias da Dança e do FITEI devia ser replicado com a organização de ciclos e apresentações pontuais de espetáculos de teatro no Auditório Municipal de Gaia, é isso?

A participação da Câmara Municipal de Gaia, em parceria com outros municípios da área metropolitana do Porto, na realização dos festivais DDD e FITEI, foi de facto uma feliz aproximação a estes dois festivais de relevância internacional. Mas em Gaia, existem pelo menos sete companhias que realizam uma atividade profissional durante todo o ano, e outras que se dedicam ao teatro escolar e infantil, levando os textos clássicos e dos programas curriculares da disciplina de Português e do Plano Nacional de Leitura às escolas. Um bom trabalho realizado por profissionais e com responsabilidade…

Sugere, portanto, que essas companhias possam ter oportunidade de apresentar os seus espetáculos no Auditório Municipal de Gaia?

Sim, não consigo ser mais claro. Mas seria legítimo perguntar-vos, assim como perguntamos aos responsáveis públicos: para quando a existência de uma companhia de teatro profissional em Gaia que conte com um decidido apoio da Câmara Municipal? Um apoio que a prestigie e que pelo mesmo, devido à importância que o Ministério da Cultura atribui aos contratos-programa celebrados entre as companhias e as autarquias, permita a valoração de candidaturas aos concursos da Direção Geral das Artes para as temporadas teatrais (programas de apoio sustentado / Bienal e Quadrienal), e deste modo fidelize uma pequena companhia, um grupo emergente, e se inicie de vez a história do teatro profissional em Gaia… História essa que ficou para mim truncada e se mantém suspensa.

Encontra uma explicação para o facto de o Auditório Municipal de Gaia não ter uma programação regular há pelo menos meia dúzia de anos?

Não. Penso que se impõe uma mudança, o que implica a nomeação de um diretor artístico que apresente uma programação coerente com as políticas culturais da cidade. Isto determina uma clara definição da autarquia, sobre que papel, que peso, deverá ter a cultura teatral, musical, balética e performativa na política geral do município para a cidade. E penso que Gaia pode e deve ser uma cidade com uma programação de espetáculos significativos e marcantes, de acolhimento ou de criação (que podem ser obras encomendadas, solicitadas às companhias), adotando o Auditório Municipal também como palco de itinerância, em coordenação e cumplicidade com os outros palcos do Norte do País… E julgo que isto só será possível com a nomeação, por designação ou por concurso público, de um diretor artístico que desenhe uma programação cultural por temporada, com um perfil próprio, mas também em cooperação com a rede de teatros que existe no País.

E de que maneira se poderia inscrever o Teatro Eduardo Brazão nesse conceito programático?

À semelhança daquilo que acontece na cidade do Porto com o Teatro Nacional São João, que administra três espaços para a sua programação, julgamos que se existisse um diretor artístico responsável pela programação cultural do Auditório Municipal, ele poderia programar cumulativamente o Teatro Eduardo Brazão, espaço que tem ótimas condições técnicas para espetáculos de pequeno formato, contidos em termos cenográficos e de cariz mais experimental… Uma programação regular estimularia um espaço extraordinariamente bem remodelado, que se poderia inscrever no panorama cultural da cidade de Gaia.

Enquanto estes dois espaços municipais não se revitalizam, a programação de teatro profissional em Gaia passa fundamentalmente pelo Armazém 22…

Sim, para já é a única alternativa, apesar de não ser a mais desejável pelo facto de ser um espaço de pequena lotação e com alguns condicionalismos. Por um lado, trata-se de um palco polivalente, sem teia, o que pode limitar os espetáculos que aí se apresentam. Por outro lado, existe a limitação da mobilidade naquela zona da cidade de Gaia, interdita a transportes públicos e privados, o que afasta de alguma forma os espectadores.

Curiosamente é também na zona ribeirinha que se realiza brevemente um festival com um “segmento profissional” constituído por companhias de Gaia…

E essa será sem dúvida a grande virtude que tem esse festival dedicado à memória de José Guimarães. Por outro lado, demonstra a grande dádiva e compromisso que as companhias profissionais assumem com o público. Isto porque este deve ser o único festival, no País e na Europa, onde as companhias oferecem gratuitamente o seu trabalho.

Conhecendo o trabalho dessas companhias e dos artistas e criadores que as compõem, quais são as suas expectativas sobre os espetáculos programados?

A programação parece-me ótima, com um leque de autores fabulosos, onde destaco entre eles o estrangeiro Nicolai Gogol e o nosso José Régio, importantíssimos para compreender o modernismo. Por outro lado, as companhias são compostas por gente muito nova, todos eles licenciados em teatro, alguns com mestrados e outros doutorandos… É uma nova geração que aposta no teatro e na continuidade da formação!

Além de teatro profissional, o festival integra um espetáculo produzido por futuros profissionais e dirigido por si. O que se pode adiantar sobre essa produção?

Trata-se de uma produção dos alunos finalistas do curso de Licenciatura em Teatro da ESAP [Escola Superior Artística do Porto], todos eles querendo fazer do teatro a sua profissão. O espetáculo é composto por três peças curtas de Anton Tchékhov, um dramaturgo essencial para compreender o teatro moderno, uma figura ímpar da literatura, de uma humanidade enorme, médico de profissão, que disse um dia: “a medicina é a minha legítima esposa; o teatro é apenas a minha amante”…

Face ao panorama teatral atual, que futuro se pode augurar a estes jovens atores em formação? O teatro como “esposa” ou apenas como “amante”?…

Tratando-se de amor, julgo que ambas as condições, que são ultra-humanas, são possíveis e válidas. Gente formada nas escolas que deverá desmultiplicar-se numa série de funções na vida, para ter uma sustentabilidade e estabilidade económica, como dar aulas, fazer seminários, etc… Mas ser ator e estar no palco será sem dúvida o grande destino… Não esqueço o grande ator que foi Humphrey Bogart, esposo de Lauren Bacall, também ela célebre atriz, ambos estrelas de cinema, mas que quando podiam voltavam sempre ao teatro! Parafraseando, o cinema como amante e o teatro como esposa…quem sabe?…