“FREI LUÍS DE SOUSA” NA TUNA DE SANTA MARINHA

Licenciada em Teatro pela ESAP, com participação, a nível académico, em diversos workshops e programas direcionados para a formação do ator, nomeadamente num Programa de 12 Semanas no The Lee Strasberg Theatre & Film Institute, em Nova Iorque, Vânia Mendes é hoje a nossa convidada nesta ronda pelos criadores teatrais residentes ou com sede de trabalho em Gaia.

Atriz com participação em inúmeras estruturas profissionais da cidade do Porto, como a Ensemble, a Cabeçasno Ar e Pés na Terra ou a Seiva Trupe, Vânia Mendes tem lecionado expressão dramática em diversas escolas e associações, participou em várias curtas-metragens de realizadores do norte país e desenvolveu alguns trabalhos de dobragem para filmes e séries televisivas. Na produtora gaiense ETCetera Teatro tem integrado o elenco dos espetáculos “Felícia…uma folha original”, “O Tio Fontaine”, “Os Maias”, “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, “Pouca Terra” e “Frei Luís de Sousa”… E é com esta obra-prima do teatro romântico português, de Almeida Garrett, que regressa em novembro aos palcos de Gaia, no âmbito do Festival de Teatro José Guimarães.

Como é voltar a “Frei Luís de Sousa” e a Madalena de Vilhena, uma mulher em constante sofrimento, que de alguma forma personifica a liberdade de amar, mesmo contra as convenções sociais?

“Frei Luís de Sousa” tem-me acompanhado desde 2008. Estava a terminar a faculdade e surgiu a oportunidade de encenar este texto num grupo de teatro escolar. Na altura, muito receosa, estreei-me neste mundo incrível da encenação e foi muito desafiante criar um espetáculo com alunos do ensino secundário. Lembro-me que a personagem Madalena foi a que mais me preocupou. A mim assustava-me a densidade desta personagem. Mais tarde, fiz assistência de encenação ao espetáculo “Madalena”, encenado pelo Jorge Pinto, no Ensemble. Foi uma viagem maravilhosa ao mundo desta mulher, ao seu sofrimento mas também à sua coragem, à sua coragem de amar, ainda que sempre assombrada. Eu vi esta Madalena na Emília Silvestre e emocionava-me em todos os espetáculos. Não imaginava um dia dizer o texto que me emocionava sempre que o ouvia. Entranha-se aquela dor, agora em mim. A Madalena de Vilhena é uma mulher sofrida mas amada pelo marido e pela filha e uma mulher que vive um amor, que ela considera crime por se ter apaixonado por Manuel de Sousa Coutinho assim que o viu, ainda antes de D. João de Portugal ter desaparecido. Socialmente, isto seria grandemente censurado, mesmo tendo esse amor só ganhado forma passado muitos anos e depois de D. Madalena ter feito tudo o que podia para saber de D. João de Portugal, pensando-o morto. Voltar a “Frei Luís de Sousa” é ter a possibilidade de perceber a grandeza da coragem e a força do amor. 

Madalena é também atormentada pelo domínio filipino, que se instalou no país após Alcácer-Quibir, e pela fragilidade física de sua filha Maria. Como é que se consegue viver em cena tantas emoções?

Não sei explicar muito bem como lido com a gestão das emoções em cena. Esta mulher vive rodeada por muitas fragilidades e medos. O domínio filipino pode trazer mudanças na aparente tranquilidade familiar, o que acaba por acontecer, levando-a para uma situação de completo desconforto, angústia e temor por ter que viver com Maria e Manuel de Sousa na casa do seu primeiro marido. Esta mudança agrava os medos nesta mulher, fazendo-a sentir-se perdida. Sente que, de alguma forma, D. João de Portugal, por estarem em família em sua casa, a vai privar deste amor e família que construiu depois do seu desaparecimento. Os agouros, as visões e sonhos começam a apoderar-se do pensamento da Madalena. A tudo isto, acresce a constante preocupação com a frágil saúde de Maria e o espírito tão perspicaz desta criança, que aguçada pelas conversas com Telmo, está numa permanente procura de algo que sente que lhe escapa. Portanto, muitas emoções para gerir. A minha procura passa por encontrar um equilíbrio entre a fragilidade e a força que coabitam nesta mulher.  Confesso que toda a relação com a filha é o que me ajuda a descobrir melhor esta Madalena. 

Para além da “sua” Madalena, quem é quem (personagem e intérprete) em “Frei Luís de Sousa”, nesta produção da ETCetera, que terá apresentação no Festival de Teatro José Guimarães?

O Telmo é o Tiago Garrinhas, o Manuel de Sousa é o Pedro Miguel Dias, a Maria é a Melanie Marques,  o Romeiro é o Vítor Sousa e o Frei Jorge é o Antony Sousa.

O que diria a um espectador indeciso, que fosse capaz de o convencer a assistir ao espetáculo no próximo dia 16 de novembro, na Tuna Musical de Santa Marinha?

Ora bem, este texto é considerado uma obra-prima do drama romântico. Só por isso, merece, certamente, ser lido e visto. Almeida Garrett escreveu uma belíssima obra inspirada na vida de Frei Luís de Sousa, em que o amor e a luta são inspiradores. No dia 16 podem contar com um espetáculo onde o amor é o denominador comum. São personagens com uma força impressionante mas que não se anulam nem combatem entre si na sua grandeza. Isto é admirável e merece ser visto. 

Além desta Madalena de “Frei Luís de Sousa”, que outras mulheres deixaram marcas indeléveis na sua carreira de atriz e que personagem (ou personagens) ambiciona viver em palco num futuro próximo?

A Elisa de “O Avarento” [de Molière] foi muito especial para mim.  A primeira vez que a fiz foi em 2009 e a última vez foi em 2016. A personagem foi crescendo como eu fui crescendo. Quando faço o exercício de me afastar para ver a evolução desta personagem, consigo perceber, perfeitamente, uma grande diferença nesta mulher Elisa que foi contaminada por esta mulher Vânia. E não tenho dúvidas que o facto de ter sido mãe me enriqueceu e fortaleceu enquanto atriz. Logo, a maturidade que ganhei neste espaço de tempo acrescentou uma carga mais forte à minha Elisa. Quando me apercebi desta mudança que aconteceu, assustei-me. Pensei que não estaria a fazer o meu trabalho como deveria mas, na verdade, enquanto atriz eu transfiro para as personagens muito de meu, aliás, nem poderia ser de outra forma. Emprestamo-nos tanto, damos tanto de nós, alteramo-nos, sofremos e alegramo-nos com todo o processo de criação de uma personagem. Somos nós e o outro, a personagem, que caminhamos lado a lado. Às vezes mais íntimos, outras vezes mais sofridos e assustados. E aqui a Regan do “Rei Lear” [de William Shakespeare] foi a personagem que mais me alterou durante todo o processo de ensaios e espetáculos. Descobrir aquela mulher exigiu muito de mim, deixava-me exausta, por vezes. Mas o que tinha de difícil, tinha também de prazeroso. Foi um trabalho muito solitário de busca da capacidade de ser cruel. E marca tanto quando assim é. Acabamos por nos conhecermos melhor. Isso é bom. Como bom é ter novas personagens. Em breve vou integrar o elenco do “Memorial do Convento” [de José Saramago] da ETCetera Teatro mas ainda não sei qual a minha personagem. Será a minha nova personagem num futuro breve. Mas falando de personagens que eu gostaria de viver em palco, há uma que me visita frequentemente. Desde bem miúda que tenho uma paixão pela “Dama das Camélias” (de Alexandre Dumas Filho). Já li o livro em fases diferentes da minha vida e o fascínio continua. Quando soube que ia estrear no [Teatro] São Luiz [em Lisboa] fiquei muito entusiasmada e curiosa.  Marguerite Gautier seria o meu sonho em palco. 

A terminar, na sua opinião, o que falta para que o teatro profissional em Gaia se constitua como alternativa à crescente oferta cultural da cidade do Porto?

O apoio político local é fundamental. A possibilidade de utilização dos equipamentos culturais existentes por parte das companhias de teatro profissionais seria uma ajuda enorme. Não sei em que condições isso poderia ser negociado e gerido mas penso mesmo que esse apoio seria elementar para que a cultura teatral em Gaia ganhasse destaque e se apresentasse como uma alternativa ao que o Porto exibe de forma exímia. 

Não refere o financiamento da autarquia como uma das formas de apoio. Acha que os projetos artísticos podem sobreviver sem apoios financeiros?

Não referi mas considero-o uma necessidade. Um dos apoios autárquicos deveria também ser esse.  O apoio à cultura não é apenas uma obrigação e preocupação do Orçamento do Estado, é também uma obrigação e preocupação do orçamento das autarquias. Poucas são as companhias de teatro que conseguem sobreviver dignamente sem apoios. Acontece talvez com companhias cujo público é maioritariamente o escolar. Nestes casos, pode ser mais fácil viver da receita da bilheteira. Quando falamos de espetáculos para público geral, o panorama muda drasticamente e constatamos a grande dificuldade que a maioria das companhias de teatro tem em sobreviver sem apoios financeiros. Estes deveriam ser entendidos como um investimento feito em cada um dos cidadãos e não como um dinheiro atribuído a X ou Y. As autarquias deveriam assumir este encargo e apoiar financeiramente os projetos artísticos. Não se podem desresponsabilizar.