Pedro Saraiva, diretor artístico da empresa criativa Imaginar do Gigante, é hoje o nosso convidado para mais uma reflexão sobre o estado do teatro profissional em Vila Nova de Gaia. Diplomado em Teatro (Interpretação e Encenação) pela ESAP – Escola Superior Artística do Porto e Pós-Graduado em Arte Contemporânea, trabalhou em vários projetos formativos e artísticos em Portugal e no estrangeiro, nomeadamente no ACTO Instituto de Arte Dramática, no Living Theatre em Nápoles e no El Cortijo Teatro de Córdoba.
Escreveu os livros para a infância “O Pássaro da Primavera” (edição Campo das Letras-2008) e “Plouf, Areias e Duas Casas” (edição Imaginar do Gigante 2016, 2018 e 2019), prestou colaboração em diversos órgãos de comunicação social, integrou e organizou vários certames internacionais de artes performativas, como o Beijamins – festival de teatro para a infância e juventude (Vila Nova de Gaia e São Tomé e Príncipe).
Exerceu funções de formador de ensino especial dirigindo vários grupos em terapias expressivas, trabalhou com a UNICEF em teatro de sensibilização com crianças em risco, em inúmeros países de África, e recentemente foi encenador e coreógrafo de vários projetos de teatro e dança no Centro Cultural Português de São Tomé e Príncipe. Temo-lo hoje connosco. Oiçamo-lo então.
Como encontras hoje as artes de palco em Gaia, designadamente o teatro para a infância e juventude, uma década depois das quatro edições do Beijamins?
Julgo que ao longo deste tempo têm existido grupos que se esforçam por chegar ao público mais jovem. No entanto, também é sabido que existe um grande desinvestimento no setor cultural. Apesar de uma ou outra ação cultural por vezes desenraizada do seu conteúdo, a cultura em Vila Nova de Gaia (VNG) para crianças é muito irregular. Com a saída do Teatro de Ferro e do TEP, entre outros grupos, VNG perdeu o impulso que ao longo dos anos tinha conquistado com os conteúdos artísticos e profissionais para crianças. Não quero aqui mencionar todas as atividades e ações isoladas que levaram a que VNG tivesse sido no passado um foco de atenção único no país, em relação às artes de palco para o público infantil. Mas gostava de referenciar essa situação de enorme interesse que alavancou todo um processo cultural e educativo desenvolvido ao longo dos tempos em VNG, que foi dos primeiros concelhos em Portugal na década de 1970 a implementar o teatro na escola, reflexo das iniciativas do “Projeto Operação Escola Aberta” [RTP 1975], que tinha como finalidade incentivar e fomentar a formação dos jovens, professores, auxiliares de educação e pais, utilizando técnicas, métodos e momentos de experimentação prática e reflexão conjunta, numa perspetiva de aprendizagem ao longo da vida.
Que outras iniciativas destacarias nesse processo de aproximação das artes performativas à Escola em Gaia?
Provavelmente desconhecido da maior parte da comunidade de VNG, o professor Rui Costa foi pioneiro a integrar o Teatro na Escola. Numa das edições do [festival] Beijamins, realizada no Parque da Lavandeira, na atividade “Conversa à sombra”, numa conversa sobre o Teatro na Escola pós 25 de abril, estiveram presentes Horácio Manuel (ator já falecido do grupo de teatro O Bando), Manuel Couto (professor de dramaturgia), Roberto Merino (teatrólogo e professor) e Rui Costa (primeiro professor de teatro em VNG). E ao longo da conversa foram discutidas várias ações que, lentamente, foram progredindo, assim como as metodologias e espaços para a prática da expressão e teatro com e para crianças. [Como consequência desse trabalho] Já nos anos 90, o concelho de VNG também foi pioneiro ao implementar nos Jardins de Infância a Animação Sociocultural, uma das ferramentas que ajudaram em muito a integrar a criança nas artes plásticas, movimento e drama. É claro que, com a chegada de grupos profissionais, todos estes e outros mecanismos despoletaram em atividades com crianças.
Voltando ao Beijamins, festival com uma forte componente pedagógica, lúdica e formativa. Podemos afirmar que ele constituiu uma ‘pedrada no charco’ em Gaia?
O Beijamins Festival Para a Infância e Juventude (VNG e São Tomé e Príncipe), bem como o Teatro nos Empreendimentos Sociais de VNG ou o Serviço Educativo da Biblioteca Municipal de VNG, entre outras atividades, foi apenas o reflexo de projetos anteriores. Os nossos antecessores abriram-nos caminho para podermos chegar mais longe, legado esse que cabe a nós, sucessores, preservar. Ao longo dos tempos, foram construídas em todo o país várias infraestruturas para acolher conteúdos artísticos, pedagógicos e culturais para crianças. Em vários desses lugares pelo país fora, têm-se realizado Serviços Educativos, Oficinas de Teatro, Festivais, Programação, Mediação, Leituras, Oficinas, entre muitas outras atividades infantojuvenis.
Entretanto, chegamos aos anos 2010 e o desinvestimento na cultura deitou por terra muito desse património. Como explicas isto?
É lamentável o desinvestimento que nesta última década se tem sentido em todas as áreas, nomeadamente na cultura. VNG não é exceção. Existem vários equipamentos culturais em todo o concelho que poderiam ser lugar para muitas estruturas que apenas necessitam por vezes de um espaço de trabalho, onde se poderia contribuir quer para a fixação da população quer para o desenvolver do meio. No entanto, é salutar a atividade educacional orientada pela autarquia, onde tem sido dada bastante atenção, mesmo com todas as dificuldades, ao desenvolvimento e proteção da criança. Apesar deste esforço é necessário ir mais longe, criar uma estratégia em rede entre teatro, arte, escola e comunidade. Um mecanismo mediativo e profissional que possa ter uma perspetiva de colaboração, e articular entre todas as forças ativas que trabalhem os conteúdos infantojuvenis. É certo que os tempos são de incerteza, mas também é certo que esta é uma grande oportunidade de nos juntarmos. Temos a tarefa facilitada pelos nossos antepassados, é só dar continuidade e fazer crescer. VNG tem bastante potencial e não deve por isso ficar para trás.
Na tua opinião, que passos devem ser dados no sentido de inverter rapidamente este ciclo de apagamento das artes performativas em Gaia?
Com a dinâmica da atividade cultural do Porto, tornou-se ainda mais visível a diferença entre o antes e o depois. Mas podemos ser criativos e diferenciadores. Podemos criar sinergias ou mesmo projetos de raiz com interesse. Temos no concelho bons profissionais, quer sejam programadores, técnicos ou agentes culturais. Cabe a todos nós sermos agentes culturais em prol da cidadania. Não podemos ficar à espera apenas de um estado social, nem seria honesto da nossa parte, como artistas e criativos, ficar inertes. Não estou com isto a desresponsabilizar o Estado no dever de educar e culturalizar os seus cidadãos. Juntos podemos fazer a diferença. Seremos um alvo fácil de decadência cognitiva se não mudarmos as nossas atitudes. Sem dúvida seremos responsabilizados pelo futuro, já incerto, das nossas crianças e jovens (por consequência, os futuros adultos), se não tomarmos uma atitude construtiva. Podemos projetar pequenas grandes mudanças. Promover e criar projetos educativos com programação regular e descentralizada. [a saber:] A realização de um programa que signifique campo de experimentação. A ocupação de um espaço que possa promover a diversidade cultural e uma abordagem plural. Um espaço para a participação das pessoas, nomeadamente as crianças. Um espaço de mediação e construção partilhada de saberes e experiências, mediação que vai para além da transmissão e que promove a construção de conhecimentos. Um espaço de relevância infantil. Um espaço dinamizador, que possa dar lugar a experiências significativas. Um espaço para incluir projetos de proximidade, programar com as crianças, jovens e adultos, e estabelecer pontes com os públicos dos 0 aos 99 anos. Um espaço para brincar… o espaço onde começa todo o jogo dramático: A Imaginação.
Podemos concluir que o aumento da oferta artística em Gaia passa por uma partilha solidária de responsabilidades entre a autarquia, a escola e os agentes culturais?
Sem dúvida! Só de uma forma partilhada conseguiremos ultrapassar obstáculos. As artes em geral já demonstraram em muitas outras situações que em tempos de crise seremos sempre o olhar de esperança, o sonho, uma das melhores maneiras de perspetivar o futuro. E o futuro é hoje!
Ultimamente tens andado por Ovar, Esmoriz, Sever do Vouga, Cortegaça, Santa Maria da Feira, Matosinhos, Maia, Bissau… Quando voltas novamente a Gaia?
Sim, tenho andado pelo país e pelo mundo… mas com o fecho da Cerâmica de Valadares, onde tínhamos um espaço de trabalho, tudo se tornou mais difícil, tivemos de rumar para outras paragens. Mas estou mesmo aqui ao lado, e caso haja interesse, terei todo o gosto em voltar a partilhar e apresentar um projeto em parceria com outras entidades e estruturas de Vila Nova de Gaia. Um projeto profissional que possa ser de continuidade, caso contrário andamos com avanços e recuos, e o trabalho com crianças não pode, nem deve, ter essa irregularidade. Terá de ser uma aposta forte com uma programação regular e um serviço educativo de continuidade, para um processo de mediação e aproximação e fidelização de públicos, infantil, escolar, e familiar. Um projeto que possa ser de interesse e crescimento cultural, social e económico, cujo desafio estará em constante atualização.