Antes de existir cartão de cidadão ainda se podia, mediante uma taxa, pedir para averbar uma naturalidade diferente no registo civil, desde que cumprindo certas regras, claro, mas o suficiente para escapar a certa fama ou a ser gozado na universidade, por exemplo. Agora já não se pode. Depois de registada a naturalidade essa será uma alegria ou um fardo carregado para a vida. Mas onde morar, aí cada um escolhe o local que mais lhe convém.
O acaso (ocasião imprevista que produz um facto, assim o define o dicionário Priberam) de nascer num local em Portugal ou de nascer no Azerbaijão em tudo se assemelha ao acaso geral de nascer sem qualquer doença ou com uma doença desconhecida, mesmo que ela só se manifeste uns anos mais tarde.
No fundo, ter uma doença que afeta poucos é como ganhar um jogo de tômbola, mas sem o prémio desejado. Ser único (ou quase), mas sem o glamour da excentricidade. Uma doença rara afeta no máximo 1 em cada 2000 pessoas. Em muitas destas doenças, com prevalência muito inferior, poderão existir menos de 50 casos em Portugal, ou mesmo 10.
É o facto de serem mais de 6000 doenças que tornam estas pessoas, a quem por acaso calhou o “prémio”, numerosas. Não havendo números concretos, porque não há um registo de doentes raros, é previsível que existam mais de 600 mil pessoas com doença rara em Portugal. E nada tiveram a dizer sobre isso. Não foi uma escolha sua.
E se se pudesse escolher, se houvesse o equivalente à morada para as doenças raras? Isso seria sem dúvida fantástico! Não há nada que se equipare, mas os tratamentos são, apesar de forma limitada, o que mais se aproxima de escolha. Só que as doenças para as quais há tratamento são uma ínfima parte daquelas 6000. O caminho é longo.
Falando nas doenças genéticas, que são o caso da grande maioria das doenças raras, para que haja tratamento é necessário perceber o mecanismo dessa doença, replicá-la, descobrir como repor o funcionamento que estiver incorreto. E de preferência antes que algo se degrade, antes de ser apenas manter um estado frágil ou já de grande dependência.
Tudo isto está dependente da investigação. Então, provavelmente, se lhe fosse perguntado, daria logo a resposta óbvia “vamos investigar até já não existirem mais dúvidas nem desconhecido”. Com tratamento, os chamados medicamentos órfãos, não se está a curar a pessoa, mas está a prolongar-se a sua qualidade de vida, a sua independência, a sua capacidade de contribuir ativamente para a sociedade.
No fundo, numa perspetiva economicista, pode ver-se o custo de um tratamento como um investimento. E a investigação possibilita também melhores e mais céleres diagnósticos e mais informação dada aos doentes e às famílias.
Queremos caminhar para um cenário equivalente àquele em que não é por se ter nascido em Cabbage Patch, nos EUA, Baguio, nas Filipinas, ou Porrais, em Portugal (sem desprimor para as mesmas), que não se tem direito a escolher onde se vai morar.
O trabalho feito nos últimos anos pelas associações de doentes na Europa e pelas estruturas que as agregam vem no sentido de aumentar a consciencialização da importância da investigação na área das doenças raras e no caminho de uma mudança radical para assegurar o acesso rápido e total dos doentes às terapêuticas das doenças raras na Europa. Os doentes devem ainda estar sempre no centro da decisão, sendo sempre incluídos a todos os níveis, no desenvolvimento de políticas, programas de investigação e protocolos para doenças raras específicas.
Em 2018, no âmbito do Dia Internacional das Doenças Raras, que se assinala no último dia de fevereiro, repete-se o repto de dar voz aos mais de 300 milhões de doentes, únicos. A Aliança, cujos órgãos sociais são 100% voluntários, há 10 anos que se junta a este movimento. Não escolhemos onde nascemos, mas que nos seja dada sempre a possibilidade de escolher onde moramos.
“Apoie as doenças raras. Mostre-o.”
Marta Jacinto
Presidente da Aliança Portuguesa de Associações de Doenças Raras