António Pedro Afonso, o nosso convidado de hoje, nasceu, vive e trabalha na cidade de Gaia. É ator, autor e entertainer. Com 50 anos de idade, já fez todos os géneros de teatro (café-concerto, drama, comédia, revista, tragédia…).
Começou como profissional aos 20 anos na Seiva Trupe, onde fez um curso de atores, em 1989, prosseguindo depois a sua formação num curso superior de Teatro e Artes performativas da UTAD-Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, em Vila Real. Nos anos 2000 e 2001, protagonizou dois dos seus maiores êxitos, com produção da Seiva Trupe (“Péricles, Príncipe de Tiro” e “Amadeus”). Passou ainda pelo TEP-Teatro Experimental do Porto, Teatro Art’Imagem, Grupo X e por diversas estruturas com “sede” no Teatro Sá da Bandeira, onde fez inúmeras revistas como autor e ator, nomeadamente “ReBista à Moda do Porto” e “Ai Povo… Que os Pariu”.
Nos últimos anos, produziu e interpretou “O Mandamento do Amor”, performance que percorreu diversos palcos gaienses, e vem colaborando com o espaço Herança Magna. Conhece como poucos a realidade teatral em Gaia. Oiçamo-lo então.
Peça fundamental no crescimento e democratização da atividade cultural, o teatro profissional tem ainda pouca expressão em Gaia. A que se deve esse facto?
A uma arcaica tradição de arraial e festas de cariz popular, que parecem ter ditado os alicerces culturais no concelho e na cidade de Gaia, acabando por se desenvolver uma cultura de “centro recreativo e associativo ou grupo amador de teatro” desde que me conheço. Lembro-me, em pequeno, de ouvir deslumbrado o ator Leandro do Vale falar sobre teatro no Ginásio de Mafamude, onde o meu pai chegou a ser “marcador de sala”…
Leandro Vale era um homem apaixonado pelo teatro e um lutador pela liberdade e pela democracia. Foi ele que marcou o seu destino como ator?
O Leandro é uma figura da minha infância, de sempre e para sempre. O meu destino como ator tem vindo a ser traçado por mim. Os mestres somos nós se soubermos beber dos mais antigos. Lamento ainda hoje ter descartado um seu convite para fazer uma digressão nas nove ilhas dos Açores e Cuba, mas o teatro é uma arte efémera por excelência e naquele momento eu tinha de fazer aquilo que ainda hoje sinto que devo fazer, que é o trabalho de “lugar”; ou seja, o teatro interveniente ativo nessa luta pela liberdade e pela democracia no nosso bairro, na nossa freguesia ou cidade. O Leandro Vale é da geração de meu saudoso pai, que um dia haveria de o pôr em cena numa personagem em travesti, para sonora gargalhada de todos nós, eu, meus irmãos, primos, tios e minha mãe, saudosa gaiense, amante (pasme-se!) de teatro desde aí, assistindo mais tarde a todos os meus espetáculos na Invicta, para onde fui há trinta anos para frequentar a escola de atores da Seiva Trupe, à época a única com uma vertente artística, educativa e profissionalizante. Regressaria a Gaia mais tarde em grupos de escolas e academias seniores onde tenho desenvolvido algum trabalho, como é o caso do Orfeão da Madalena. E confesso que nunca me pareceu solução séria a vinda para Gaia do Teatro Experimental do Porto, até pelo que o seu próprio nome indica. Bom, mas agora, retomando a sua primeira questão, talvez seja a hora de se encarar um projeto profissional e com profissionais de teatro em Gaia… e de se abordar de forma muito séria a forte tradição do teatro amador em Gaia.
De que modo se deve consubstanciar as relações do teatro profissional com o movimento associativo de teatro amador?
De que modo, não sei muito bem. Mas, aproveitando o Auditório Municipal e com recurso a profissionais com percurso e provas dadas, talvez se possa criar um projeto sólido e sério que programe e potencie o teatro num espaço de encontro entre o “educativo” e o lúdico, perscrutando públicos e artistas das várias faixas etárias e da generalidade do concelho. Um projeto que dinamize e desenvolva parcerias, que promova a rotatividade de propostas pelos vários auditórios, de todas as freguesias, atendendo às características dos diversos públicos de um concelho tão vasto como é o de Gaia. E torná-lo em “Teatro Municipal de Gaia”!… De resto, essa “rede de auditórios” podia articular-se em colaborações várias, criando um tremendo edifício teatral. Quando Stanislavski [um dos maiores e mais influentes pensadores teatrais do século XX] afirmou que as grandes revoluções artísticas na arte teatral surgiram sempre no contexto amador, sabia muito bem do que falava. E Gaia tem uma tradição historicamente riquíssima de teatro amador. De resto, sou dos que acham que a principal diferença entre um amador e um profissional de teatro reside apenas no facto de que este último depende do teatro profissionalmente.
Julgo ter percebido o seu raciocínio, mas quer esclarecer melhor?
O que defendo é um trabalho de complementaridade entre estruturas profissionais e amadoras, sediadas num “Teatro Municipal de Gaia”, tendo até em vista a criação de uma Escola ou Academia de Teatro de Gaia, porque não? Como o meu caro sabe, é apenas uma linha de luz o que divide o teatro amador do profissional, pois o teatro é uma obra de arte de exercício e prática diária, quiçá a mais bela de todas as artes, pois nela se podem encontrar todas as outras, embelezadas por se sentirem reunidas… Espero ter sido mais claro no meu raciocínio fragmentado, porém bem sustentado, sobre essa nobre arte de Talma, efémera e fugaz, estonteante e sagrada, quase a tentar ser similar à própria vida…
Nessa sua paixão avassaladora pelo teatro, há algum sonho que gostasse de concretizar em Gaia, enquanto ator?
Enquanto ator, o meu sonho é representar a personagem Joseph K. da assombrosa adaptação teatral de André Gide e Jean-Louis Barrault [de “O Processo” de Franz Kafka]. No entanto e, enquanto artista de teatro, permita-me que evoque o enorme e saudoso Raul Solnado, que costumava dizer: “Nós, os do teatro, somos vendedores de sonhos. O público compra um bilhete e em troca não leva nada para casa. Se entra numa loja e compra uma gravata, leva a gravata. Aqui [no teatro] leva sonhos…” Somos na realidade milionários de sonhos, os atores e as gentes de teatro, e eu não escapo à regra.
Neste momento, enquanto Joseph K. não se torna uma realidade no seu currículo de ator, quais são os “sonhos que vende” e onde?
De momento contínuo a minha colaboração no espaço Herança Magna, desenvolvendo a figura do Mestre-de-Cerimónias, personagem cuja função remonta à antiguidade, mas que evolui ao longo dos tempos e se adapta aos desafios impostos pelos nossos dias. Veja o caso flagrante de Joel Grey, na Broadway ou em Hollywood, até à figura de “compère” de Eugénio Salvador no teatro nacional. Por outro lado, aceitei um amável convite para criar um Grupo de Teatro no Orfeão da Madalena, onde estrearei em breve “As Pupilas do Senhor Reitor” de Júlio Dinis. Entretanto, mantenho a minha colaboração como monitor da classe de teatro da Academia Sénior do Orfeão da Madalena, onde dirigirei “Cabaret Manhoso”, um exercício de comédia “cabarética” em piano-bar, a partir de textos de Fernando Peixoto, José Guimarães, Fernando Gomes, de minha autoria e dos próprios alunos, como é o caso de Maria do Céu, autora da letra da Marcha da Madalena deste ano. E no final do ano estrearei um novo monólogo, que revelarei assim que esteja mais e melhor trabalhado pela minha parte. Ah! E a boa nova, que recebi agora mesmo: fui selecionado para interpretar a personagem Vendedor na longa-metragem “Porto 1618”, a ser rodada ainda este ano pela Lightbox, produtora de cinema do Porto.
O seu novo monólogo estará disponível para percorrer todos os auditórios de Gaia que manifestem interesse em acolhê-lo?
O monólogo vai chamar-se “Ai Senhor… Que Pariu!” (elogio cómico à pronúncia do norte). E, sim, estou disponível para apresentá-lo por todo o concelho de Vila Nova de Gaia. Não apenas nos auditórios das juntas e uniões de freguesia e das associações culturais, mas também no Cine Teatro Eduardo Brazão, um espaço magnífico para produções de pequena-média escala. Assim me queiram por lá, é claro.
O Cineteatro Eduardo Brazão é de facto um espaço muito bonito e com ótimas condições para espetáculos mais intimistas…
Essa sala de espetáculos, para mim, pertence à história do teatro português. O espaço foi inaugurado em 1928, ano em que nasceu a minha saudosa mãe, com um espetáculo da célebre companhia Amélia Rey-Colaço/Robles Monteiro. Em 2012, pisei o seu palco com o espetáculo de revista à portuguesa “Mostra a perna que a crise não é eterna” e adorei o Cineteatro e, se me permite, as obras do Mestre Zé [José] Rodrigues!