“NÓS PODEMOS CONSIDERAR-NOS A CASA MÃE”

No decorrer de mais uma Feira Quinhentista, na Ribeira Grande, Açores, o AUDIÊNCIA falou com Mário Costa, um dos responsáveis pela organização deste evento, através da companhia Viv’Arte que ajuda na recriação histórica.

Mário Costa falou sobre os desafios, a Feira Quinhentista,o surgimento da companhia de teatro, Vila Nova de Gaia, Ribeira Grande e sobre o futuro da recriação histórica.

 

Como veio dar à costa da Ilha de São Miguel nos Açores?

Foi extremamente simples. Há uma dúzia de anos, integrando eu o centro de formação de professores de Ponta Delgada, vim ter à Escola Secundária da Ribeira Grande onde estive a dar formação alguns dias aos professores, e ,por afinidade disciplinar, o diretor da escola daquela altura, que era professor de História, tinha feito uma Feira Quinhentista há uma década atrás e conversamos sobre isso. Passado um mês, ele tornou-se Presidente da Câmara e convidou-me para apresentar o projeto. Em 2007, apresentamos o projeto que coincidiu com a celebração do foral manuelino. Todos os anos fizemos a Feira Quinhentista, só houve uma paragem com este executivo porque com toda a pertinência quiseram experimentar outras forças e regressaram à nossa experiência no ano seguinte. Nesse aspeto é de louvar o Presidente da Câmara, Alexandre Gaudêncio, que soube reconhecer o pequeno deslize e soube-o reconhecer publicamente

 

O Presidente disse na conferência de imprensa que quando assumiu o cargo era de 2 em 2 anos e com ele passou a ser todos os anos…

Sim, também é um facto. Nesse ano, o Presidente optou por outra instituição para organizar. O evento ao ser de 2 em 2 anos foi uma opção do anterior executivo. Começou por fazer-se anualmente durante 4 ou 5 edições e depois passou para 2 em 2 anos e entretanto mudou o executivo.

Como surgiu o interesse pelo teatro?

Quando nasci, saltei logo para coimbra. Fiz toda a minha aculturação judaico cristã e foi lá que eu cresci. Em termos universitários, andei sempre nas pequenas elites acadêmicas do teatro em Coimbra e não deixo de refletir isso. Mal comecei a dar aulas de História, comecei a tentar aliar o chamada inútil ao desagradável, ou seja, junta o teatro e a história. Aos poucos e poucos, fomos enveredando pela a abordagem teatral, pela recriação histórica mas muito às apalpadelas pois não tínhamos noção de como é que se deveriam vestir. Tudo era complicado. Mas fomos conseguido ultrapassar esses desafios e, agora vestimo-nos como deve ser e temos trajes para cada época que representamos com um máximo de rigor. Há 30 anos, surgiu a Vivarte faz este ano 30 anos. Nasceu numa Escola Secundária nas caves em Oliveira do Bairro. A partir dali, durante 10 anos, mantivemo-nos mais ou menos agregados ao chamado teatro escolar.

 

Já com 30 anos, qual a evolução do número de elementos da companhia?

No início, éramos 10 e mais tarde juntou-se um professor ou outro. Durante 10 anos, o percurso foi de rotina escolar, participamos em encontros de teatros de escola e alimentamos a criação de uma Associação Nacional de Encontros de Teatro de Escola, na qual cheguei a ser presidente. Aos poucos, esse universo também já não nos bastava pois os miúdos queriam mais profissionalização e foram-me empurrando para que seguíssemos esse via. Hoje, a tempo inteiro somos 32, mais os grupos satélite, voluntários, estagiários e outros militantes, acho que atingimos uma centena.

 

Especialmente o núcleo duro da Viv’arte, vivendo como vive e atingindo o nível que atingiu, nunca chegaram a confundir o dia a dia da realidade com uma época quinhentista?

Vou dar o exemplo do nosso amigo Basílio que faleceu o ano passado. Ele demorava cerca de 2 horas a caracterizar-se a colocar as chagas. Era um rapaz de nome internacional teve cá também na Ribeira Grande, foi a França, Alemanha e Madeira. Era extremamente conhecido por todo o lado e tinha a virtude que todo o dinheiro que fazia devolvia à terra sob forma de doação a uma instituição de carácter social. Eu costumava dizer que ele dava à terra a exata proporção de generosidade dos seus habitantes. Se ele levada 2 horas a caracterizar-se, levava 5h a descaracterizar-se não em termos físicos mas em termos mentais. Ele assumia de tal forma o mendigo medieval que depois levava um tempo excessivo a desmontar esse boneco. Nós viajamos entre a pré-história e o 25 de abril. É um leque vasto para nos perdermos. Às vezes damos por nós a reagir a tempos contemporâneos com comportamentos medievais ou renascentistas.

 

De 30 anos até hoje muita coisa mudou. Hoje em dia, nota-se a realização de eventos de recriação histórica com alguma abundância mas nem todos eles retratam exatamente a mesma época…

Isto é chão que ainda está a dar muitas uvas. De certa forma, podemos afirmar que o plagiadores nos homenageiam e isso respeitamos mas temos algum sofrimento com a caricatura porque quando tentam imitar, mas só ao nível da caricatura, é medíocre. O que tem estado a acontecer em Portugal, é que neste momento somos o país da moda mas estamos a consumir tudo o que está relacionado com a vaca gorda e não nos estamos a lembrar de que isto é pontual. Quando isto tudo acabar, perdemos tudo e voltamos à estaca zero. Portugal não está a saber ser anfitrião. Lamento que isso não esteja a acontecer.

 

O levantamento da informação é um trabalho bastante demorado….

Sim, implica bastante pesquisa, investigação e apuro porque há muitas fontes. É preciso ver onde está a simplicidade da verdade que muitas vezes não é fácil pois as fontes não são isentas são intencionais.

 

Vamos focar-nos no Grande Porto, principalmente, Vila Nova de Gaia. Não é muito usual lá andarem…

Em Vila Nova de Gaia, tivemos o privilégio de outorgar o foral manuelino a mando do próprio El-rei D. Manuel I. Ainda tivemos tempo de ir a Arcos de Valdevez recriar o primeiro torneio que opôs o nosso D. Afonso I ao seu primo D. Afonso VII de Leão durante 2 dias de imenso sucesso e, simultaneamente. tivemos a recriar a Batalha da Salgadela em Castelo Rodrigo. Vila Nova de gaia recomenda-se. Gostámos de lá estar. Sentimos bastante fome, apetite e muita expectativa da parte da população, ou seja, a população gostaria de ter mais coisas dessas. Foi o nosso sentir.

 

E Vila Nova de Gaia tem potencialidades para isso?

Tem muitas potencialidades por toda a história. O Porto não ata nem desata em termos de recriação histórica. É uma megapolis e não se perturba ou preocupa com essas coisas que os arredores. Gaia é aquela cidade que está de peito feito ao porto. Costuma-se dizer que é uma cidade que tem tantas pontes como o Porto. Gaia tem muita história para contar passando nos tempos mais recentes pela guerra civil, pelas invasões napoleônicas, a Ponte das Barcas e recuando cada vez mais chega-se à pré-fundação de Portugal que inclusive Portus Cale tem metade Gaia metade Porto em termos de nomenclatura. Já Matosinhos tem sabido aproveitar todo o manancial do fluxo de público que pode ocorrer do Porto. Matosinhos está com 3 excelentes intervenções em termos de recriação histórica. Leça do Balio com o casamento entre o mal afortunado do D. Fernando e aquela senhora de triste memória D. Leonor Teles. É um acontecimento que junta milhares de pessoas. Leça da Palmeira com o Festival Pirata, em que nos baseamos sobretudo sobre os escritos coevos da época do século XVIII que relatam uma série de de pilhagem. E, depois no Cayo Carpo, em Matosinhos, na praia da Boa Memória, no qual recriamos a lenda do Cayo Carpo supostamente envolvendo as relíquias de Santiago da Compostela. 3 épocas completamente diferentes.

 

Se fosse desafiado hoje a projetar a próxima iniciativa em Vila Nova de Gaia, o que é que proponha?

Proponha talvez a abordagem à biografia de Fernão de Magalhães. É um alguém que pode vir a ocupar um lugar de destaque na história de Gaia, uma vez que se tem vindo a descobrir que ele tinha referência biográficas que apontam para Gaia. Contudo, há origens genealógicas em Gaia e isso devia de ser usado. Creio que a cidade deu homens ao mar, deu homens à história. Há tanta coisa para fazer. Por exemplo, com as histórias de contrabando dos barcos que desciam e subiam o Douro, o que será que traziam e o que levavam porque não eram só pipas de vinho. Há mil e uma histórias. Há pano para mangas, em Gaia, e é preciso saber aproveitar de uma forma lúdica, com apetite e saber devolver a população nos nacos da sua própria memória histórica.

 

Apesar da época que está disposto a retratar ainda não ter telefones, está à espera que o seu telefone toque para avançar com as suas ideias para Gaia?

Estamos sempre disponíveis. Basta uma pomba, um papagaio. Qualquer modelo comunicacional é bem vindo.

 

 

Falando agora da Ribeira Grande onde nós estamos. Para além da Feira Quinhentista, que desafios é que a cidade lhe traz?

Nós nunca deixamos de querer cá vir. Este ano estamos a debruçar-nos concretamente sobre os estados sociais, as ordens, a forma como a sociedade se organizava. Vamos tentar recriar alguns aspetos interessantes como um desfile de trajes de diferentes estratos sociais para comparamos as roupas, as cores. Conseguimos juntar uma série de diferentes segmentos como, por exemplo, a cavalaria. Temos vindo a fazer torneio de cavalos com cavalos locais. As cavalhadas emergem do facto da pequena burguesia querer imitar os grande senhores.

 

Esta vivência que a Viv’Arte consegue transportar para o dia de hoje, ao longo destes 30 anos, foi sempre encarado a sério por quem vos observava ou, no início, foi mais um grupinho que fazia umas festas?

Nós podemos considerar-nos a casa mãe. Tudo o que existe de recriação histórica em Portugal nasceu de nós. Podemos dizer que a Guarda Nacional Republicana de Évora começou antes de nós a fazer os torneios a cavalo e ainda o fazem. Temos ajudado até em termos de equipamento. São excelentes homens que tentam recriar aquilo que seria o torneio clássico medieval. Eles já existam antes de nós e nós temos todo o respeito por isso. Contudo não são apoiados pela tutela hierárquica. Têm uma série de carências e uma série de deficiências que nós estamos a ajudá-los. Nós trabalhamos com eles duas a três vezes por ano. Agora como somos a casa mãe, nós produzimos muita concorrência. Cada rapaz/rapariga pensa que em 2 ou 3 anos já aprendeu tudo e sai querendo começar por contra própria. Isso é legítimo. Isso faz parte de toda a família pois o filho quando cresce, quer sair. Nós identificamos pelo patamar em que saíram porque nem todos são criativos, são executantes. O patamar no qual eles saíram, eles conseguem repetir, mas não conseguem ser criativos. Infelizmente, a nossa concorrência é fraquita, em termos qualitativos, e não nos dá pica para seguir, nem para melhorar. Mas nós vamos melhorando. Tentamos sempre introduzir novos conceitos. Trabalhamos bastante na Europa, o que nos permita lidar mais intimamente com as diferentes abordagens que vão seguindo. Nós estamos associados à Federação Portuguesa da Festa da História que por sua vez faz parte da Confederação Europeia da Festa da História, da qual eu sou Vice Presidente desde há 1 ano, que está sediada em Bruxelas. Isso dá-nos também algum estímulo porque vamos estando atentos e a par das novas conceptualizações que há sobre a recriação histórica. O país está enxameado de tudo. Parecem cogumelos. A recriação histórica nasce e morre porque muitas delas não têm consistência para se aguentar. Nós temos o privilégio e o orgulho, de certa forma, estarmos em 90% daquilo que se faz de recriação histórica em Portugal. Temos também o prazer de, por exemplo, termos sido premiados em Itália pelo Presidente da República da altura com o prêmio de “Melhor Feira Medieval de Itália”. Temos parcerias com os mais variados grupos desde a Alemanha até à Itália. Gostamos do que fazemos.

Na Ribeira Grande, o facto de ser um concelho pequeno com 30 mil habitantes mas que consegue nesta altura duplicar o número de pessoas para virem ao evento, isso enche-vos de algum orgulho?

Nós gostamos. Nós somos um pequeno factor desse sucesso. Logicamente, o primeiro sucesso deve-se atribuir a autarquia que tem a ideia de estender uma rede espetacular que permita que este projeto ganhe vida e se materialize. As associações locais estão cada vez mais dentro. A primeira vez que cá viemos éramos nós e os que trazíamos connosco. Chegavamos a ser 80. Neste momento, somos nós mas também todas as associações locais, não só do concelho mas de outras terras da ilha, que se envolvem e quase que já não precisavam de nós. Conseguir fazer a festa conseguem, talvez não fosse tão bonita sem a nossa presença, passa esta minha natural e modéstia, mas fariam. Associando-se a nós ou nós associamo-nos a eles, a festa resulta muito mais em cheio e é muito mais bem sucedida.

 

Já reparou que o papel da Viv’Arte, é aquele papel que se vivia em 1500 ou 1600, quando os portugueses chegaram às novas terras… O Mário também chegou aqui e conseguiu cristianizar esta gente relativamente à recriação histórica.

Não diríamos cristianizar, mas temos esse grato papel de contribuir para devolver memória histórica aos habitantes. Sentimos que as pessoas aprendem dos problemas que esta terra teve quando as pessoas não queriam cá viver. Estamos em 1443, Rei D.Afonso V manda atribuir uma isenção de dízimo por 5 anos aos moradores de produtos para que se fixassem na terra e, 3 anos depois, manda publicar novo edital que não seja só por 5 anos, mas que seja para todo o sempre. Esta lei foi só revogada com os Filipes que não acharam bem. Estas ilhas eram necessárias para o reino em termos produtivos,cerealíferos e enfins. Mas, os moradores cismavam em não se instalar cá. Os sismos, o terror, o medo de estarem paradas aqui no meio da água fazia com que as pessoas não quisessem vir para cá. Isso foi sendo ultrapassado e, hoje, está-se bem cá. Ninguém tem esse medo. Já é mais pacífico viver aqui do que no continente muitas vezes.

 

E qual o futuro da nação em termos de recriação histórica?

O futuro da nação em termos da criação histórica passa pelo rigor e pelo apuro, porque todos os cogumelos nascem e morrem e fica a árvore que der frutos e que seja frondosa e que possa dar sombra aos que nela querem repousar e der frutos aos que nela quiserem refrescar.