O DIA DOS AÇORES SOB A VISÃO DO JORNALISTA, DO DEPUTADO E DO HOMEM

Sidónio Bettencourt é uma das caras e vozes mais conhecidas dos açorianos, por onde quer que estes estejam. Nos Açores ou espalhados pelas Comunidades Açorianas, é através do “Interilhas” ou do “Atlântida” na rádio e televisão públicas, respetivamente, que o jornalista chega a casa de quem o queira receber para ter notícias da sua terra.

Com vários prémios ganhos, livros lançados, quatro anos como deputado regional (entre 1996 e 2000) e mais de 15 anos de “Interilhas” e “Atlântida”, a chegar aos 65 anos de idade muito há ainda para fazer, como por exemplo a escrita das suas “Crónicas das Viagens”.

Em comemoração do Dia da Região, o AUDIÊNCIA Ribeira Grande entrevistou o homem que todos os sábados leva um pouco dos Açores mais longe.

 

 

O Sidónio foi deputado regional. Qual a principal diferença que vê nas comemorações que eram feitas no Dia da Região quando era deputado e agora, tendo em conta que também vê como são feitas as comemorações e, inclusive, todos os anos o Atlântida viaja até ao concelho onde vai ser comemorado o feriado regional para fazer o programa do sábado que o antecede.

Fui deputado na XI legislatura, o primeiro Governo de Carlos César. A verdade é que esta forma encontrada é uma síntese de uma intervenção que eu fiz na Assembleia Regional. Nós falávamos (vulgar e anteriormente) do feriado do Dia da Região Autónoma dos Açores, como sendo o “Dia da Autonomia”, ou o “feriado da Autonomia”, embora o decreto registe que é a segunda-feira do Espírito Santo que justifica o dia do feriado regional, por causa da festa comum a todas as ilhas e até das comunidades açorianas e portuguesas espalhadas pelo mundo.

O Parlamento reunia na Horta e ao fim do dia havia na sociedade Amor da Pátria uma conferência sobre a autonomia, sobre questões constitucionais e vinham convidados especialistas de fora. A iniciativa era da Assembleia, portanto, esse feriado era assinalado com o Parlamento, então convidava-se todos os deputados. Ninguém em rigor gostava muito de ir para a Horta na segunda-feira do Espírito Santo porque cada deputado na sua ilha tinha festas. Era um martírio ir ouvir uma conferência ao fim da tarde na segunda-feira do Espírito Santo porque era o feriado regional e vulgarmente se dizia o “Dia da Autonomia”, mesmo na gíria jornalística. Mas uma coisa é o “Dia da Autonomia” e outra coisa é o “Dia da Região Autónoma dos Açores”.

Em 1998 fiz uma intervenção de fundo na Assembleia (era deputado desde 1996, tinha a experiência de dois anos) para chamar a atenção para o facto de que o Dia dos Açores deveria ser um dia como o Dia de Portugal. E se era pelo Espírito Santo, deveria ser vivido em todas as ilhas naturalmente; sugeria também que para a autonomia, deveria haver o Dia da Autonomia. Até sugeria o dia 2 de março. Tal como o 25 de Abril não é o 10 de Junho, quando se quer sublinhar a Revolução dos Cravos, da qual advém a autonomia política, falamos no dia 25 de Abril. E o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades é o dia dos Portugueses e das Comunidades espalhadas pelo mundo, celebrado a 10 de Junho. Levantei essa questão, deixando à consideração, até porque era uma forma de fugirmos a irmos todos para a Assembleia ouvir uma conferência.

Houve outra tentativa também de inaugurar no Palácio da Conceição retratos dos autonomistas. Havia sempre momentos para demonstrar que estávamos a viver a autonomia. Eu achei que isso era excessivo e inibidor. Achava sempre que devia haver o “Dia da Autonomia” e o “Dia da Região Autónoma dos Açores”. Imaginemos que com a evolução política, amanhã os Açores são ser um estado federal. Já não é o Dia da Autonomia, é o dia de outra coisa qualquer.

Na altura, eu, o presidente do Governo, Carlos César, e o presidente da Assembleia, Dionísio Sousa, conversámos em particular. Eles acharam a intervenção interessante e trocámos algumas impressões. A verdade é que houve esta alteração significativa logo nos anos seguintes: é a festa do Espírito Santo, não são os deputados que vão para a Horta, é o Parlamento que vai à festa.

Entretanto, saí em 2000 e comecei a fazer o Atlântida. Encontraram uma síntese interessantíssima, que é levar também as autoridades convidadas para o Dia da Região Autónoma dos Açores em cada concelho e até noutras cidades das nossas comunidades, como foi em Fall River e Toronto. É uma síntese entre as duas coisas: portanto, nós vamos à Graciosa, de manhã há uma cerimónia em Santa Cruz, e depois vamos para a festa à moda de Santa Cruz com a ajuda do Governo Regional e da Assembleia Regional onde há uma festa maior, mas tudo é feito à moda daquela terra.

Fazer o Dia dos Açores no Nordeste, na Graciosa, na Povoação, em Santa Cruz das Flores ou na Madalena do Pico é substancialmente diferente. Também é uma forma de relevar o poder autárquico. E também as condecorações… a distinção das pessoas que não são os políticos, são as pessoas: os desportistas, os cidadãos que se notabilizam, as nossas comunidades, as instituições… portanto, achei que foi uma solução. Não digo que seja perfeita, mas agrada-me bastante.

Mesmo assim, se um dia quiserem comemorar uma data para assinalar a autonomia (nem que seja a do primeiro Governo Constitucional), acho que o Parlamento poderia dedicar-se por inteiro a um dia destinado a discutir a autonomia política administrativa. Assim, era uma forma de os partidos representados no Parlamento poderem falar da autonomia em sede própria, porque como o Dia dos Açores é hoje, quem fala é a Presidente da Assembleia Regional e o Presidente do Governo da Região Autónoma dos Açores, o que acho muito bem, mas depois os partidos, que são as forças vivas políticas, não têm acento, enquanto que no dia 25 de Abril todas as forças políticas têm o seu discurso, aqui não há essa correspondência para assinalar a autonomia.

 

E sobre esta forma que é celebrada agora? O Sidónio já falou sobre isto, mas agora quero que fale sob o ponto de vista de apresentador do Atlântida. Qual é que foi, se é que pode haver, o programa que o tenha marcado mais por algum motivo neste âmbito do Dia da Região?

Eu raramente estou no Dia dos Açores. Estive quando estive na direção da RTP. Fazia o programa e ficava mais um dia porque éramos convidados. Mas nem como ex-deputado sou convidado. Às vezes dói um bocadinho estar a fazer um programa e saber que no dia seguinte vem toda a gente. Acho que os ex-deputados deveriam ter um cartão de terceira idade para entrar na Assembleia e ver as intervenções, mas isto é um aparte com sorrisos porque, enfim, foram quatro anos das nossas vidas a lutar por uma causa, e eu acho que os Açores precisam de causas. Isto num tempo em que havia, e ainda bem que havia, os períodos antes da ordem do dia para os deputados se inscreverem e falarem de assuntos de interesse relevante para a Região. Hoje em dia já não há isso, que acho que é algo que deveria ser revisto novamente porque assim os deputados das ilhas [que representam os seus círculos eleitorais] podem ter um momento para levarem à Assembleia, individualmente, as suas questões. Muitas vezes a sessão saía da ordem do dia. Era um assunto levado por um deputado antes da hora do dia que criava a agenda. Chamo aqui a atenção na qualidade de cidadão e também de pessoa que trabalha todos os dias com o povo, quer na rádio, quer na televisão, para que se crie novamente uma fórmula para os deputados poderem levar assuntos à Assembleia Regional. Acho muito limitativo e inibidor uma pessoa não poder levar um assunto desta forma. Há outras formas de se questionar o Governo, mas é dentro de uma lógica de Grupo Parlamentar, portanto, não é o cidadão. Quando se fala tanto de proximidade, seria muito interessante que houvesse um período antes da ordem do dia.

Deveria haver novamente os períodos antes da ordem do dia para os deputados se inscreverem e falarem de assuntos de interesse relevante para a Região. Chamo aqui a atenção para que se crie novamente uma fórmula para os deputados poderem levar assuntos à Assembleia Regional.

Quanto aos programas, todos são diferentes. Eu tenho boas recordações, alguns já foram há muitos anos mas ainda os tenho presentes. São programas em que damos vida à conceção do tradicional do Espírito Santo. O que é que fazemos no nosso programa na altura da gastronomia? Falamos com as senhoras da cozinha, que vão tratar das sopas para a segunda-feira; falamos com os foliões, falamos com pessoas que de outra maneira não viriam à televisão. Há sítios onde não há coros mas tem que se cantar o Hino dos Açores. Falamos com o coro ou com a filarmónica… é sempre interessante divulgarmos ao Mundo a particularidade de cada uma dessas terras.

Estar, por exemplo, em Toronto precisamente no Dia dos Açores e haver a distinção por parte da Assembleia e do Governo de figuras que normalmente não são lembradas todos os dias mas que existem na comunidade, no momento de serem distinguidas com as insígnias da Região Autónoma dos Açores, serem pessoas das nossas comunidades (que vêm de Fall River, da Califórnia ou de Santa Catarina do Brasil) e, portanto, estarmos nós (Governo, jornalistas, cidadãos) numa terra que é nossa mas que é no estrangeiro, e estarmos a ver condecorar pessoas por causa dos Açores e daquilo que fizeram pelos Açores estando eles a viver nas comunidades, a mim mexe comigo porque é aquele sinal de que valeu a pena. Chega a ser comovente ver que a Presidente da Assembleia Legislativa está a entregar uma insígnia a um senhor que toda a sua vida trabalhou em Montreal e que fez um trabalho em nome da comunidade e dos Açores.

Estar, por exemplo, em Toronto precisamente no Dia dos Açores e haver a distinção por parte da Assembleia e do Governo de figuras que normalmente não são lembradas todos os dias mas que existem na comunidade, a mim mexe comigo porque é aquele sinal de que valeu a pena.

Um ponto que gosto de ver sempre é como é a agitação da comunidade em fazer a festa que fazem há séculos para que nada falhe no tempero porque vai estar cá muita gente: vêm os jornalistas, o senhor Presidente do Governo, os Secretários… não pode falhar nada! A alegria dos bastidores desde a cozinha aos armazéns, à vaca que se vai matar e ao vinho que se vai comprar… tudo tem que ser do melhor dentro da tradição. É fantástico ver isso. Como vai ser feita a festa e ver essas preocupações.

O povo açoriano tem uma coisa: somos diferentes em todas as ilhas. Em cada lugar o Espírito Santo é diferente, mas temos todos algo em comum que é ser-se açoriano.

 

O Sidónio tem uma grande relação com os emigrantes. Como é que se sente ao saber que leva “aquele bocadinho” dos Açores ou da terra em particular da pessoa que está sentada do outro lado da televisão? Acompanhei, por exemplo, o especial que o Atlântida fez na altura das festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres e constatei que se emocionou.

Para já, eu sou uma pessoal muito frágil nesse aspeto. Comovo-me com muita facilidade por razões várias da minha vida. Sou uma pessoa sofrida, vou dizê-lo assim. Muitas vezes ponho-me na pele das outras pessoas e se há coisa que mexe mesmo comigo é o lado da emigração. Sei que às vezes brinca-se com isso e sei quando se brinca por brincar ou com um certo despeito. Alguns pensam que é uma coisa para pessoas não menos preparadas. Às vezes usa-se um certo desdém nos comentários… eu já posso provar que não é assim. Tenho tido contactos com pessoas daqui que nem viam o programa “de emigrantes”, “de folclore” ou da “banda de música”… há até quem ache que não devíamos pôr as filarmónicas porque “eles lá também têm”. As pessoas não sabem a importância que tem mostrar a igreja de cada pessoa a cada pessoa que está longe da igreja onde foi batizada, ou da filarmónica onde tocou o avô. Não tem nada que ver com ser mais uma banda de música. Não é mais uma, é “aquela”. É a Filarmónica de São Lázaro do Norte Pequeno de São Jorge. Não é “mais uma”… não é a que toca mais afinado. O programa é levar a realidade a cada coração das pessoas.

Outro dia tive a experiência de um professor catedrático que se abraçou a mim a chorar e disse que agora ao estar longe é que percebia o que era ligar a televisão e eu “entrar” e começar a mostrar a cidade, ou estar em Água Retorta de onde o pai era… a pessoa aí cai em si e percebe a profundidade do programa. Esse fenómeno toca-me muito. Tenho isso sempre presente. Tenho que pensar nisso e nessa gente. Cada palavra e cada alinhamento do programa é pensado com um objetivo. O programa que fizemos pelo Santo Cristo e a forma como acabámos, foi pensada. Mais que o conteúdo do interior, eu queria saber como ia acabá-lo. Tínhamos de tocar as pessoas, não é fazê-las chorar.

Tive a voz de uma senhora acamada que não tem possibilidades de voltar cá por razões várias (nem é financeira, é por não ter família cá ou por não se poder deslocar), e a única oportunidade que tem de matar a saudade e de se rever na festa é através da televisão ao falar comigo. Ela agradecer esse fenómeno sabendo e dizendo que não vem mais ao Santo Cristo… não sei. Há pessoas muito fortes. Eu faço um esforço enorme porque sei o que aquela senhora está a dizer. As palavras dela não são para fazer ninguém chorar, é a autenticidade. É a verdade. É aquela pessoa que é igual a outras que não conseguiram entrar em linha e que têm uma mensagem para dizer. Por isso é que muitas vezes não estão a falar sobre o tema que estamos a explanar, mas é para mandar um abraço à irmã ou à tia porque já não as vão ver e querem que elas saibam que estão vivos e gostam muito deles. É aquele abraço que hoje sentimos todos em tempo de pandemia, mas todos os dias há uma pandemia para os emigrantes.

Quando vou aos Estados Unidos da América ou ao Canadá, penso que as pessoas estão habituadas a vir cá, mas há de tudo. De repente “não vou há 15 anos”, “há 16 anos”, “há 17 anos”… há 17 anos?! Isso é muito tempo, e a última vez que vieram foi por poucos dias. Ou seja, vêem imagens que a televisão vai dando. Imagens de uma cidade nova, de um arquipélago moderno… e eles até ficam arrependidos de ter ido embora, mas foram na altura certa. Tinha que ser. Mas esta dicotomia quase de ciúme “vocês até já estão melhores que nós”, ou “eu gostava de estar aí”, mas ao chegar cá já não encontram aquilo que estão à espera porque estão à espera de uma certa infância e de ver toda a gente como se estivessem à sua espera, quando algumas já morreram, outros foram embora, outros embarcaram para outros sítios. Este dilema de estar lá e cá é muito complicado.

Digo a toda a gente “ande cá e lá”. Lá já estão enraizados, mas de cá têm saudades. Tenho que ter a perceção que estou a lidar com pessoas com grande honestidade e que estão a viver um momento de grande suscetibilidade. Estas pessoas não apanham o telefone sempre que ligam. Há muita gente a ligar e nunca consegue. Aquele que consegue entrar em linha, é como se lhe tivesse saído a sorte grande. Eu tenho que ter a compreensão necessária e o sorriso para não alarmar, mas sei o que aquela pessoa tem na voz.

Ainda outro dia por Santo Cristo ligaram pessoas do Continente. Gente nova, que eu conheço, mas quando se está fora, estamos fora. É longe… é como de repente em casa aparecer um programa sobre a Beira [Velas, São Jorge], com as amigas, os amigos e com o Grupo Etnográfico da Beira. Fica aqui perto. Mas as pessoas não são as mesmas. É um dia diferente e comove… qual o problema de nos comovermos? O dia em que não nos comovermos não vale a pena fazer grandes celebrações do Dia dos Açores porque é sinal que não há saudade e sem saudade não existimos. São programas de memória e de recordação. Quando me dizem “também é preciso mostrar outras coisas”, então para isso tem que haver outros programas que mostrem a contemporaneidade e que também sejam aceites pelas pessoas de lá, só que o problema disso é que são as pessoas de gerações mais antigas, porque os mais novos não estão agarrados à televisão a ver o que é que há de contemporâneo nos Açores… E mais, há os novos que vão agarrando as tradições. As instituições do Espírito Santo, das Casas dos Açores, entre outras, são constituídas por malta nova. Esta ideia de que a malta nova não quer saber, não é verdade.

Há quantos anos ando por estas ilhas e toda a gente diz “isto vai acabar porque já ninguém quer nada disto”? Não, acaba quando tem que acabar. Pela natureza, não por não haver jovens. Eu sinto que em cada freguesia e em cada lugar há um orgulho por ser-se dali. Aquele bairrismo saudável. Os jovens, quando vêem que aquilo vai acabar, arregaçam as mangas, juntam-se uns com os outros e agarram as instituições. E mais! São pessoas que normalmente fizeram a sua formação superior fora e quando regressam vêm até mais bem preparados e com vontade de dar a volta, porque intelectualmente percebem o sentido patrimonial que ali está e não deixam morrer. Podem fazer de forma diferente, de forma mais evoluída e não fazer tal e qual como se fazia, até porque a tradição também vai sempre alterando, mas não acabam as instituições. As filarmónicas nos Açores estão vivas e cada vez melhores, por exemplo!

O Atlântida e o Interilhas dão-me esse prazer de poder lidar de perto com as pessoas e amá-las porque elas precisam de alguém de fora que as reconheça, e isso é muito bom. Tudo isto dá-me muito prazer. É do que vou ter mais saudades.

 

No fim do ano o Sidónio esteve no Brasil, no Maranhão, também com descendentes de emigrantes.

Foi um momento histórico porque São Luís do Maranhão já não tem emigrantes. Aliás, nós falamos muito de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul e até de São Carlos no Uruguai, mas São Luís do Maranhão falamos a fugir. No entanto, há 400 anos foram para lá os primeiros açorianos e a fundação da cidade tem que ver com a chegada dos açorianos. Nunca mais houve emigração para lá, mas os estudiosos estão empenhados em resgatar a origem, e aí é que aparecem os investigadores a falar dos Açores. Esse momento histórico é fundamental e para mim foi muito bom estar no dia da criação oficial da Casa dos Açores de São Luís do Maranhão. Estar lá e ver os brasileiros a criar a Casa dos Açores é fantástico. Esta não é uma Casa dos Açores para alimentar as gerações e a saudade, mas é uma Casa de difusão e do resgate do que é São Luís e o Maranhão hoje por causa das origens dos açorianos. É uma casa que vai ter que ser de conferências e de pesquisa. É perceber que há maneiras de ser em São Luís que advêm do facto de terem passado lá açorianos.

Tenho por obrigação, como sócio, promover cada vez mais São Luís do Maranhão, as tradições e ajudar no que me pedem. Tudo isto mostra a força que nós tivemos.

De repente vamos ao cancioneiro e descobrimos “Samacaio deu à costa nos baixios do Maranhão”… em outubro andei nos baixios do Maranhão. É perceber porque é que essa canção é importante. Portanto, o nosso folclore e as nossas raízes estão ligados e às vezes não percebemos o porquê.

 

Não tem intenção ou vontade de compilar num livro todo o conhecimento que tem e memórias sobre comunidades e emigrantes?

Pois… Há muita gente a fazer um trabalho histórico com muita categoria. O que me apetece e acho que já não tenho tempo é de contar essas histórias, deixar isso de forma oral. Costumo dizer que já não vou a tempo de contar à minha neta o que já vivi, ou de contar porque é que me ofereceram “aquilo”, de onde vem “aquilo”. Por onde passo, trago sempre recordações. Eu sei o que é “aquilo”, sei os bordados que me oferecem, as peças de artesanato… Tenho uma sala com um conjunto de recordações que vão desde a boina do Corvo até aos tambores do Recife. É tanta coisa… são 46 anos, há tanta coisa para contar. Não sei se dá para escrever…

O que ainda gostaria de escrever era um livro de “Crónicas das Viagens”. Não é um romance, não é um conto, não é um diário, mas sim aquilo que me ficou das viagens todas. Cruzar San Diego com Washington, Tijuana no México e Paloma… fazer uma espécie de carta aos netos e aquilo ser verdade mas impressionista. Isso poderia ser um contributo. Não vai ter grande valor histórico, não é esse lado que me apetece. Para isso há investigadores com toda a categoria. Eu quero é a minha impressão de repórter, até numa linguagem mais poética, que fosse a memória do que eu vivi: saltar da Rua de Santo Espírito em Santa Maria, de repente acordar em San Diego, saltar novamente e estar com o Presidente da República na ‘State House’ em Boston, depois ir às eleições americanas… aquilo que eu vivi e foi verdade. Mas é preciso tempo e o meu medo atual é o tempo.

Cada livro, cada oferta, cada dedicatória têm uma história. As personagens fizeram parte da minha vida… as eleições americanas, a cobertura das eleições do Bill Clinton, poderiam ser descritas. Como são os bastidores de uma campanha eleitoral? Não no sentido geoestratégico, para isso há muitos especialistas, mas mais o lado da vivência humana. Há sempre um açoriano pelo meio.

Quando fui cobrir a tomada de possw do Bill Clinton, fizemos uma reportagem “América, Arquipélago de Sonhos”, é tudo passado com açorianos (é das coisas que mais gostei de fazer). É ver como é que é um dia para um ou vários açorianos, gente com experiências fantásticas: jovens que estiveram a bordo dos famosos porta-aviões dos Estados Unidos, por exemplo… há jovens filhos de açorianos que estiveram na guerra e contaram-me histórias. Há um faialense, por exemplo, que fez toda a simulação do ataque dos pilotos da ‘Navion’. Ele contou-me como é que era a programação e como foi trabalhar nisso. Portanto, há histórias fantásticas da presença e das vivências dos açorianos. A pesca do atum, a odisseia de ir daqui para os Estados Unidos… ainda apanhei pessoas com 90 e tal anos que contaram como é que chegaram à grande Califórnia, como se venceu na vida e que sacrifícios fizeram. Pessoas que deixaram uma descendência. São histórias humanas… Nós temos uma grande entidade nas Américas. Há as comunidades portuguesas e há as comunidades açorianas.

É bom lembrar neste dia que há uns anos o Presidente do Governo Carlos César, no Dia dos Açores em Toronto, teve uma expressão que eu vou citar de cor e é fantástica, para que as pessoas se naturalizassem canadianas, para terem os papéis canadianos e votassem no Canadá. Muita gente não fazia isso porque não queriam perder a sua nacionalidade portuguesa, a pensar que no momento em que jurar sob a bandeira do Canadá, deixariam de ser açorianos. O Carlos César na altura disse algo bem apanhada, que foi “quanto mais canadianos forem, melhores açorianos serão” porque podem exercer o poder, podem candidatar-se e liderar a comunidade. É uma frase muito bem concebida que define muito bem esta dialética do ser açoriano.