Em 1976, Pedro Barbosa / ASOBRAB ORDEP, publicavas as suas elocubrações filosóficas e as inaventuras, que intitulou O Guardador de retretes”. Uma recolha de escritas, dizeres, frases, grafitis, que decoravam as paredes dos cubículos sanitários, comparando-os na sua recolha em países como Portugal, Espanha, e Itália, entre outros. O seu olhar, perspicaz e agudo, como o nosso, às vezes, menos atento a pormenores, não ficou indiferente à sua obra, tendo o catedrático Arnaldo Saraiva assinalado na altura que: “Poucas têm sido, na verdade, as obras que sacodem as almas e alargam o horizonte dos espíritos lusitanos. O Guardador de Retretes está seguramente entre essas poucas”. (*)
Lembrei-me deste livro, que deve estar na minha biblioteca, quando indago sobre a origem do título que o dramaturgo Edward Albee, deu a sua magistral peça de teatro. Porquê Virgínia Woolf e não apenas, Woolf (o lobo)? De acordo com uma entrevista de 1966 na Paris Review, Albee encontrou a pergunta rabiscada em sabão no WC de um bar café do Greenwich Village, em Nova Iorque. Cerca de dez anos depois, quando começou a escrever a peça, lembrou-se desta “típica piada intelectual universitária”. De facto, a rábula é muito engenhosa, e é uma verdadeira pérola para Albee, para a personagem de George, professor de literatura, esposo de Martha, a filha do reitor de uma Universidade. A referência à Virginia Woolf, a brilhante escritora e defensora dos direitos da mulher, escritora que procurou viver sua vida sem falsas ilusões, pode traduzir-se finalmente através do título em: Quem tem medo de enfrentar à realidade?”
A primeira vez que ouvi falar sobre desta peça, e logo do espectaculo, foi ainda no Chile, quando, esta, foi escrita em 1962. A peça estreou no Chile em 1964 na sala Antonio Varas (“¿Quién le tiene miedo al lobo?”), com encenação de Agustín Siré, pelo ITUCH hoje Teatro Nacional Chileno, o espetáculo chamava-se , ¿Quién le tiene miedo al lobo?” com interpretação de Agustín Siré, María Cánepa, Sergio Aguirre e Ximena Gallardo no elenco. Talvez, nesse momento, não se explicou o jogo de palavras que estava por detrás do título original. O elenco era do melhor que se podia reunir para uma peça que começava a ser êxito e representada em todos os palcos do mundo.
Dois anos mais tarde, eu , e os da minha geração tivemos a sorte de ver a versão fílmica da peça, desta vez devidamente referenciada: Quem tem medo de Virginia Woolf? /Who’s Afraid of Virginia Woolf?, realização de um competente homem de teatro e cinema, Mike Nichols, e nos papeis protagónicos, Elizabeth Taylor, Richard Burton, George Segal y Sandy Dennis.
Elizabeth Taylor, Richard Burton, se conheceram durante as gravações de “Cleópatra” (1963) e se casaram um ano depois, em uma relação que acabou em 1974 devido, sobretudo, aos problemas do actor com o álcool. Menos de um ano depois do primeiro divórcio, se casaram novamente, mas a união durou apenas 11 meses. Dada a relação da vida real entre os dois célebres actores, os papéis da peça pareciam escritos para o casal, que numa longa noite se debatem, digladiam perante um jovem casal inocente e alheio ao mundo que os “embala” durante quase três horas de representação.
Este ano uma nova versão esteve no palco do TNSJ, a nossa principal casa de espectaculos. Encenação de Simão Africano com cenario de antigo diretor artístico do TNSJ, Nuno Carinhas.
Encenador e cenógrafo acentuam o “jogo-diversão” que predomina nas relações de George e Martha e que no decorrer da acção passa para o casal jovem convidados para uma tertúlia ao fim do dia.
O cenário de Nuno Carinhas, despido de quase todos os elementos que podíamos julgar estar presentes numa sala de estar – living room – se transforma num ringue de luta e exorcismo para George e Martha , no qual não faltam sacos de pugilismo/perfuração , para o exercício-jogo, que consiste em limpar a roupa suja, consequentemente com os danos que isso provoca, insultos, ironias, humilhações, ameaças, ações que se repetem, misturadas com muito álcool ,indistintamente e indiferentemente quando estão sós ou acompanhados na presença do outro casal.
Excelente espetáculo com excelentes representações do elenco integrado por João Reis, Anabela Moreira, Daniel Silva e Joana Africano. De salientar que as representações estiveram sempre esgotadas durante a temporada de 6/16 de Janeiro realizada na sala principal do TNSJ
Notas
(*) «Poucas têm sido, na verdade, as obras que sacodem as almas e alargam o horizonte dos espíritos lusitanos. O Guardador de Retretes está seguramente entre essas poucas. Porque vem apresentar-nos e falar-nos de textos tradicionais marginais, tradicionalmente marginalizados, ocultados, recalcados pela cultura dominante; porque vem propor uma visão do homem português (ou simplesmente: do homem) que de modo algum coincide com a de nobres livros escritos por nobres sujeitos» Arnaldo Saraiva (1976)
«Who’s Afraid of the Big Bad Wolf?» – Quem tem medo do lobo mau? – é uma canção escrita por Frank Churchill com letra de Ann Ronell, originalmente se apresentou em 1933 na corto metragem de Disney, Os três porquinhos, uma das suas Silly Simphonies mais famosas.
(*) “Em Quem tem medo de Virginia Woolf (Who’s afraid of Virginia Woolf?) o autor situa seus leitores e espectadores no campus de uma universidade localizada na cidade fictícia de Nova Cartago, na Nova Inglaterra, região nordeste dos Estados Unidos. A localização não poderia ser mais significativa para o papel crítico da peça, pois permite que as associações latentes no texto remetam simbolicamente às raízes da formação histórica e ideológica estadunidense desde a chegada dos colonizadores puritanos (1620), passando pela Guerra de Independência (1776) e consolidando-se por meio de remissões de ironia latente à Antiguidade clássica e ao mundo greco-romano. A Nova Inglaterra é, em larga medida, o nascedouro da cultura capitalista estadunidense, e esta é apresentada na peça em inequívoco processo de desintegração”… da ideia de jogos (games) e das personagens como jogadores (players), as falas narrativas das personagens George e Nick remetendo a passagens reveladoras de seus respectivos passados, e os títulos dados aos três atos da peça que, numa gradação crescente iniciada em Divertimento e jogos, Ato I (Fun and games), passa pela Noite das bruxarias, Ato II (Walpurgisnacht) e conduz ao desfecho em O exorcismo, Ato III (The exorcism).