Lentamente as lojas começam a abrir, também os turistas começam a aparecer…Da saída do metro, a Rua das Flores é o meu passeio diário até chegar ao meu local de trabalho.
Castigada com duras e longas obras, convertida em quase, e digo bem, quase passeio pedonal – pois é incrível a quantidade de viaturas que ai passam diariamente – transformou-se na autarquia do Sr. Rui Moreira numa espécie de Disneyworld, onde tudo era possível… todos os dias, a toda hora uma festa constante e muitas vezes muito pouco imaginativa…, parecia que estávamos na era romana, literalmente panem et circenses.
O tempo de confinamento trouxe à rua um silêncio sanitário ao qual já quase não estávamos habituados…agora pouco a pouco o passeio recupera a Torre de Babel, da qual todos fugiram, menos os troias, trabalhadores da construção civil que continuam a construir ou a recuperar edifícios aos quais depois de acabadas as obras nunca mais poderão entrar! Algumas lojas fecharam, outras desapareceram.
As lojas dos comerciantes indianos, ainda resistem, são as lojas da recordação, da memória, do objeto pequeno, lembrança de um país agarrado ao fado/guitarra, à sardinha de marfinite para pendurar eternamente à porta do frigorífico. Todos suspiram pelo passado, todo tempo passado foi melhor…não é verdade? Uma solução saudosista tao ao jeito dos nossos pensamentos… “ah, a batata e o bacalhau no tempo de Salazar, é que era…!” (quantas vezes já ouvi este falacioso argumento!)
Afortunadamente as minhas lojas prediletas resistem, a Farmácia Parente, o Chaminé da Mota (e os seu livros antigos/alfa revista), o Bufete Marina da Dª. Palmira…e pouco mais, já foi o tempo da Adega do Olho, que congregava às quintas-feiras adeptos e defensores a volta das tripas à moda do Porto. Hoje entre ourives resistentes e novas marcas de roupas, a Rua das Flores pouco mais é de que uma passarela de pedra, escorregadia, e perigosa para os transeuntes. Passa por mim, novamente, uma senhora de 91 anos, antes cumprimentávamo-nos com um beijinho na face, agora com máscaras apenas um aceno distante …
Afortunadamente ainda persiste no seu caminho diário à missa na Igreja do Clérigos! Voltam a regressar, pouco a pouco, os músicos ambulantes, os artistas plásticos, retratos, fotografias e a “rapariga da bicicleta” que faz do seu velocípede a montra dos seus postais originais em aquarela. A Igreja da Misericórdia (1555/1590) continua petra, com o seu fantástico frontispício de Nassoni (restauro de 1748), é pena a igreja estar quase sempre fechada, e a sua entrada estar apenas habilitada ao pagamento de entrada no museu.
No largo de São Domingos, mesmo ao fundo, ainda permanece a Farmácia Moreno, a emblemática Papelaria Araújo e Sobrinho já lá foi, agora transformado em hotel de luxo, e claro, a nossa escola a ESAP/Escola Superior Artística do Porto, resistente a todas as gripes e pandemias, aquela escola superior (com quase 50 anos) que pode fazer a diferença no nosso panorama educativo e cultural, que nunca teve ajuda alguma do município, nem de autarcas, e que se tem afirmado e consolidado como Cooperativa de Ensino, a única no contexto nacional.
O músico francês que tocava o realejo desapareceu, e com ele desapareceram as crianças (os seus filhos) e as atrativas e insólitas galinhas “peludas” (Sedosas, Silkie ou Moroseta) que compunham junto ao instrumento e músico numa espécie de quadro bucólico de fim de século. Também já não se vê há muito um músico romeno, excelente, que com a sua cítara húngara me lembrava a melodia de Anton Karas, introdutória do filme de Carol Reed, O Terceiro Homem, filme britânico de 1949, passado na Viena de pós-guerra com uma breve e fantasmagórica aparição de Orson Welles, gigante cinematográfico.
Nessa fita num diálogo inicial ambientado no Parque Prater numa das cabinas da famosa Wiener Riesenrad (roda-gigante), Holly Martins, a personagem principal, encontra a personagem de Orson Welles. Eles tem uma conversa memorável, cuja última fala é; “Você sabe o que dizem na Itália, por trinta anos sob os Bórgias, tiveram guerra, terror, assassinato e derramamento de sangue, mas eles produziram Michelangelo, Da Vinci e o Renascimento. Na Suíça, eles tiveram amor fraternal, quinhentos anos de democracia e paz e o que eles inventaram? O relógio cuco.”… Orson Welles diria mais tarde, que numa viagem a Suíça eles, os suíços, muito educadamente o informaram que o relógio cuco fora inventado na Baviera. Podem ouvir a música citada em https://www.youtube.com/watch?v=I2ZWcwy12lk