Nascido nos Arrifes em 1955 mas com grande parte da sua infância no Pico, Sidónio Manuel Moniz Bettencourt descende de uma família de baleeiros. Desde cedo ganhou gosto pela rádio, confessando que em criança tentava imitar o timbre dos radialistas.
É jornalista profissional da RDP desde 1976, tendo já exercido funções na RDP de chefe de redação e chefe do serviço de informação, entre outras, e também já cumpriu funções como deputado na Assembleia Legislativa Regional dos Açores, de 1996 a 2000. É fundador e foi produtor da Semana dos Baleeiros, já escreveu várias obras literárias (tendo outros livros em preparação) e é um comunicador nato e um apaixonado pelos Açores.
Entre vários troféus, prémios, galardões e distinções alcançados, destaca-se o “Troféu Portugalidade” na 13.ª Gala Audiência, em 2018.
O Audiência foi ao encontro de Sidónio Bettencourt, uma referência na comunicação, para perceber o percurso profissional e pessoal do jornalista.
O Sidónio não nasceu na ilha do Pico, mas é como se tivesse nascido. De onde vem a associação a esta ilha?
O meu pai era militar e estava colocado nos Arrifes. Tanto meu pai como minha mãe eram das Lajes do Pico. Acontece que em 1961 o meu pai foi para a guerra em África. Foi no sábado do Senhor Santo Cristo. Estava a tocar o hino e eu estava a ouvir os foguetes, portanto, isto foi algo que me marcou… Eu fui dizer adeus ao meu pai à porta com cinco anos. Acontece que o meu avô do Pico, sendo a minha mãe filha única (tinha mais três irmãos mas era a única rapariga), pensou no que é que a gente ficava a fazer nos Arrifes. Nada. Ele meteu-se na primeira traineira que veio, esteve a ajudar a emalar as coisas e voltámos de barco para o Pico, para a casa do meu avô. O meu avô marcou-me muito. Em 1961, o mar dentro de casa, aquelas tempestades, não havia telefone, não havia luz… de 15 em 15 dias é que havia navio, a luz fechava a um quarto para a meia-noite… Ao pé de minha casa não havia muralha. O mar vinha devagarinho, mas quando vinha… Aos 10 anos meu pai vem de África e eu vou para Aveiro. Estive lá três anos. Ia de Águeda para Aveiro para estar às 8h30 nas aulas. Eram 6h da manhã e já andava a caminho da estação de ferro, eram 40 e tal quilómetros até Aveiro. Isso marcou-me também mas ajudou-me a descobrir muita coisa. Era o açoriano. Não conhecia ninguém, tinha chegado atrasado às aulas. O que é que me entusiasmou? A televisão e o rádio. Passava os serões a ouvir o Rádio Clube Português. Apanhei o tempo do Zip-Zip das noites de teatro da televisão… aqueles clássicos famosos que a televisão hoje se recorda, tal como o Festival da Eurovisão e da Canção, o Benfica a jogar contra o Manchester United a preto e branco, o Alves dos Santos (que uns anos mais tarde veio entregar-me o prémio de jornalismo), entre outros. O meu desejo era ser como eles. Metia-me na casa de banho a fazer relatos de futebol. Usava um balde para a voz ficar mais grossa.
A minha mãe achava que eu era doido: “nunca mais sais daí para fora, estás doido, vai mas é estudar”, dizia ela. À noite ia para o quarto e ligava o Rádio Clube Português. Ao fim de semana o que é que se fazia? Ia-se à missa, vinha-se para casa, almoçava-se… eu não tinha amigos, os poucos que já tinha estavam em Aveiro. Então eu começava a fazer teatros em cima da cama. Interpretava textos. Ao final da tarde chamava meu pai para vir ver.
Ser ilhéu sente-se mais em São Miguel ou no Pico?
Ser ilhéu sente-se até em Toronto. A ilha que tenho dentro de mim é o Pico. Apanhei a infância dura no Pico, os afetos da família no Pico, a ausência de meu pai senti-a do Pico… aquilo que a ilha tem de lonjura, de distância… saudade… o meu avô esteve 10 anos na Califórnia. Morreu com 95 anos em São Francisco. Ele contava-me histórias da América e nunca tinha ido a Lisboa. Portanto, tudo isso que está ligado ao mundo e ao imaginário açoriano é no Pico. É esse Pico que me leva para a rádio, para a escrita, para os poemas… é uma espécie de prolongamento da voz dos que não tiveram voz. Ainda hoje tenho necessidade de contar aquelas tardes frias de maré seca, de trindades e do mar gelado. É essa infância que tenho ainda dentro de mim. Ainda hoje passo na Rua de Baixo. Às vezes preciso de passar lá para me lembrar dos anos passados que já foram. Isto é de uma tristeza e nostalgia tamanha, mas dá-me força. Os meus avós eram baleeiros, alguns dos meus primos também foram, outros estiveram na pesca do atum em San Diego, os meus irmãos-primos foram muito cedo para o Canadá e eu senti desde cedo que a minha família estava longe. Gosto muito de São Miguel, adoro a cidade de Ponta Delgada. É a cidade que gosto, tem a Marginal, tem a praia, tem as pessoas, os cafés… tem tudo o que gosto.
Tenho uma série de crónicas por publicar. Muitas delas têm que ver com o Pico. Quanto mais longe eu estou, mais necessidade tenho de me aproximar. Quando estou lá, é para viver esse Pico. As pessoas perguntam-me sempre “como te lembras disso?”. Eu sei de coisas do Pico que as gerações mais novas não sabem, e ficam espantados como eu sendo de fora, sei tanto sobre o Pico. Quando vim de Águeda, já estudante em São Miguel, o meu pai volta para Moçambique. Aí tive de ficar aqui a estudar. Mas chegava-se às férias, ali a 10 de junho, o primeiro Ponta Delgada [navio] levava-me ao Pico até ao final de setembro! Lá ia eu para casa do avô… já o adolescente estudante que vem de São Miguel, filho do Oficial… e meu avô tratava-me como um príncipe, não queria que me faltasse nada. Tenho uma relação fortíssima com aquela casa. Tinha atafona, tinha vacas, ia-se pescar… era uma casa de lavrador, uma casa modesta, uma casa poço de maré. Tinha tanque e tinha o forno onde a minha avó fazia uma comidinha especial para mim. Há um texto chamado “A Casa Mãe”. É onde tudo nasce. O rezar, os meus avós a subir a rua para ir à missa: a minha avó de xaile e meu avô de chapéu e casaco. É uma imagem que guardo. Estrutural e mentalmente estou no Pico. Adoro as ilhas todas. Tenho uma visão dos Açores em que acho que cada ilha é uma ilha e cada lugar um lugar. Tenho uma grande admiração por todas elas. Aquela ilha onde se sente mais a ilha, é em lugares em que fica tudo muito longe. Era assim. Eu vivi isso. Hoje já não é assim: estamos de manhã em Ponta Delgada, à tarde vamos tomar café a São Jorge e à noite já estamos no Faial. É aqui que o jornalista entra. Na rádio habituei-me a ser jornalista e a pôr no microfone as causas e as lutas. Eu sou autonomista. Sou de abril e da autonomia.
Há pouco estávamos a dizer que é preciso mostrar a identidade dos Açores para fora. É por causa disso que tem uma relação muito forte com as comunidades?
Outro dia estava em São Francisco da Califórnia, a passear naquelas ruas, e pensei: “como é que o meu avô esteve aqui a trabalhar nos caminhos-de-ferro quando o rei D. Carlos morreu, e eu estou aqui à procura de um bar para tomar um copo?”. Pus-me a olhar para trás… como é que o meu avô veio parar aqui? Em que condições vieram aqui parar? É preciso conhecer um pouco a história… indo ao museu de Fall River, apercebemo-nos que aquilo é tudo famílias açorianas. Quer dizer, eu tenho de ter uma admiração por esta gente. Pessoas que estando longe, amam a sua terra. Quando eles vêm cá, devemos saber recebê-los. Aqui no meu programa [Inter-ilhas], quando vem um artista de fora, pode não ser pela boa música, pode não ser o melhor cantor, mas pode ser pela história de vida, pela boa disposição e pela conversa… Em cada um deles há um bocadinho de artista, há uma saudade na ilha que eles vão contar… Portanto, se tivermos uma boa conversa, fazemos um bocadinho de rádio. Não é uma rádio fictícia.
Acho que tratamos com desprezo e preconceito os emigrantes. Talvez por achar isso e por ter visto os meus partirem e sabendo a luta que tiveram para estar bem, tenho uma grande admiração por eles. Sacrificaram-se muito, mas numa terra diferente, numa terra em que lhes falta quem ficou atrás. Hoje como pai tenho os meus filhos fora. Eu saí, deixei os meus atrás, os meus primos já estão pela América, os meus filhos também já estão fora… portanto, esta condição de ilhéu faz-nos ser todos emigrantes. Eu sou emigrante aqui, à minha maneira.
Não gosto de um olhar depreciativo em relação às outras ilhas, até a partir de São Miguel. Achar que as outras ilhas são pequenas? Isto é tudo relativo. No meio do oceano e no meio do céu, quem vem de avião e vê nove pontinhos… nós vivemos ali. Naqueles nove pontinhos. Depois temos a mania que somos grandes e pequenos. Precisamos de conhecer mais a nossa história. É bom que haja intercâmbios desportivos e culturais porque há uma geração que nunca foi a outra ilha. Há pessoas que já foram 10 vezes a Boston e que nunca foram a Lisboa… há pessoas de uma certa idade que nunca foram à ilha em frente. Isso é importante, é importante conhecer as outras ilhas. Quando estou a fazer o Atlântida na altura das Festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres, há pessoas que ligam a agradecer e a dizer que não sabem se voltam a São Miguel, que estão acamadas… isto dá-me para chorar. Eu tento disfarçar, mas dá-me uma pancada, um choque. Sei o que é uma pessoa que está ao telefone, que está a ver a imagem do Senhor Santo Cristo, e que me diz “não sei se vou voltar à minha ilha”. Esta mulher não mais vai voltar aqui… e ela sabe disso e está a aproveitar este momento. Eu estou a servir de veículo para ela ver e falar com o Senhor Santo Cristo.
Toda essa noção de ter que mostrar aquilo que “somos” fez com que ganhasse o Troféu Portugalidade. Foi importante esta distinção?
Foi, muito. Fiquei muito honrado. Teve muita repercussão na RTP Internacional, que deu muito relevo a esta atribuição. De todos os prémios que recebi, este teve outro sentido. Veio tocar não ao comunicador, não foi devido a uma reportagem que fiz… mas foi pelo conjunto de várias atitudes que no fundo são a minha vida, a minha forma de viver e a minha forma de estar. Eu sou assim. Falando sempre de Açores, ganhar um prémio que tem o nome de Portugalidade, para mim até foi uma surpresa na altura. Eu sabia que ia receber um troféu. À medida que foram esgotando, fui pensando que havia um engano. Mas quando foi atribuído, fiquei surpreendido. Ser reconhecido como exemplo da portugalidade que devemos ter, foi uma alegria enorme. Fiquei chocado comigo mesmo, interiormente. Foi uma alegria para muita gente que na RTP Internacional viu o apresentador de quem gostam. Foi também um troféu para eles. Muitas pessoas se dirigiram a mim e diziam “continua, continua”. Não é para eu trabalhar mais. É para nunca deixar de lhes levar as coisas da sua terra. Percebi o alcance que o troféu teve e isso comoveu-me. Lisonjeou-me. Alguns perguntam “ser dos Açores e ganhar Portugalidade?”. Para mim este troféu era para alguém que vive nas comunidades e que se distingue em nome de Portugal. No entanto, há esta visão sobre a qual pensei: é dar [o troféu] a alguém dos Açores que eleva essa portugalidade.
Para terminarmos a entrevista: Rádio ou Televisão?
Eu sou um homem da rádio que colabora com a televisão. Aliás, quando a televisão veio para cá, eu já estava na rádio e não concorri à televisão. Não tinha nada que ver com o que tinha dentro de mim desde pequeno.
Hoje sou uma pessoa que colabora com a televisão. Muita gente se recorda de mim pela televisão, muita gente pensa que trabalho só para a televisão. Mas essencialmente a minha profissão é jornalista de rádio que colabora com a televisão. Eu não domino todos os mecanismos da televisão… na rádio há coisas que se faz por experiência, por empatia e por analogia. A televisão tem uma linguagem própria… a minha gramática é, essencialmente, radiofónica. Estou aqui nesta casa, que era o velho emissor regional dos Açores, depois foi a RDP Açores e hoje é a RTP/Antena 1 Açores. O caminho foi sempre o mesmo. A empresa foi mudando, mas ficámos sempre no mesmo sítio. Mas é a rádio. A rádio é um tudo.