Aos 16 anos Carolina Bettencourt migrou para Portugal Continental para estudar Teatro. O gosto por esta arte sempre esteve presente na vida da atriz e por isso a decisão de deixar as ilhas foi natural. Estudou, cresceu, participou em inúmeras peças de teatro bem como em telenovelas e, atualmente, também vê a sua vida profissional suspensa, à semelhança dos colegas de profissão. Todos estes assuntos foram abordados em entrevista ao AUDIÊNCIA Ribeira Grande.
Em primeiro lugar, peço que nos conte um pouco sobre si e sobre a sua infância. Tem irmãos? Que memórias tem da sua infância? Também a passou entre Pico e São Miguel?
Sou a terceira de quatro filhos. Pensar na minha infância é pensar em casas cheias, muita música e alegria. Vivi sempre em São Miguel, numa rua que era também a extensão de casa, da casa de cada um. A nossa rua era a casa ampliada e isso foi a primeira noção de espaço individual e coletivo. Tinha horários preenchidos com várias atividades, mas o violino, o conservatório, foi a mais marcante.
As férias de verão eram sempre passadas no Pico, na maior parte do tempo nas Lajes. Esperávamos o ano inteiro para chegar a casa do meu avô e encontrar todos os meus primos. A família materna é muito grande e nessas férias vivíamos os dias com a noção total de presença. As diferenças de idade entre primos são grandes e vínhamos de sítios diferentes. Mas, em agosto, depois de perceber o que cada um trazia de si, fazíamos do tempo nosso: andar de carrinha de caixa aberta, acampar, passar serões de violão e música, dar mergulhos à noite, organizar ‘peddy-papers’ ou jogos de futebol contra outras famílias e andar descalça foram algumas das grandes marcas daquele tempo. Era a sensação de total liberdade na vila. Éramos um todo e, em algum ponto, sem idade, mas com parentesco a bastar para crescer.
Como e onde surgiu o gosto pela representação em geral e pelo teatro em particular? O facto de ter uma família ligada à escrita e cultura teve influência na profissão que escolheu?
Penso em toda a agitação que acabo de referir e não é possível identificar o momento em que o teatro aparece, mas olho para trás e já lá estava; sempre esteve. Aos oito anos trabalhava na esplanada de uns familiares, com turnos e salário. Servia às mesas à tarde ou à noite (nas noites de concertos e festa era sem parar) e adorava. O meu objetivo era juntar dinheiro para construir um camarim no meu quarto. Na altura, a família estava mais ligada à música e à escrita. Diretamente ao teatro não tinha ninguém. Crescemos num fôlego artístico e cultural e isso permitiu uma sensibilidade para incentivar a minha vontade. Criava espetáculos para a família e se por um lado tinha um público interessado, por outro lado tinha, em simultâneo, a educação a conduzir-me para a formação, a disciplina e a humildade. Mais que tudo a liberdade para pensar, para questionar, para o diálogo, para a vontade. A naturalidade com que debatíamos temas à mesa ajudou a desenvolver o meu sentido de crítica e observação e a educar o gosto.
A Carolina saiu muito jovem dos Açores. Quando é que soube que queria ser atriz profissional? Arrepende-se da decisão que tomou?
Tal como referi, sempre soube o que queria fazer na minha vida. Frequentei todos os grupos de teatro que pude em São Miguel, mas na altura do secundário, nenhuma das áreas era a que queria. Foi muito natural a necessidade de procurar formação fora e os meus pais sempre souberam e incentivaram. Não me arrependo em nada por isso. Nem por sair, nem das escolas em que andei. Possivelmente hoje teria investido em alguma área complementar, em vez de colocar o teatro como única relevância. Foi a necessidade que tive na altura e por isso está tudo bem.
A situação em que vivemos, causada pela COVID-19, veio intensificar os problemas dos artistas. Qual a solução? Que apoio pode ser dado à cultura e aos artistas? É a cultura o “parente pobre” do país?
O problema da cultura é ser vista como um problema. Desenvolveu-se o hábito de olhar para a cultura pelo canto do olho e, hoje, quando temos o país visto à lupa, percebe-se que a situação atual não chegou com um vírus. Existe há muito tempo. Não podemos querer um património cultural e negligenciarmos a sua história. É preciso trabalhar o músculo artístico como no desporto, o exercício do pensamento crítico, a empatia e não como se fosse um “dia da asneira” de uma qualquer dieta ‘iô-iô’. É isso que a arte propõe, a capacidade empática de nos colocarmos no lugar do outro, de ver o outro lado da moeda. E um povo sem cultura é um povo pobre. Se este é o “parente pobre”, o que seria dos nossos escritores, músicos, pintores, etc.? Não é o “parente pobre”, mas também não deve ser um primo emigrante que já não vemos há anos e chamamos em dias de festa.
Há companhias que ameaçam fechar portas, algumas mais conhecidas do grande público, outras menos, mas quase todas atravessam dificuldades. Daquilo que tem conhecimento, há esperança por dias melhores?
Gosto de pensar que o que virá melhor será. Queria mesmo pensar assim, seria um sinal evolutivo, mas a cultura, antes de ser vista por valores, tem que ser vista pelo seu valor.
Quais os maiores desafios que enfrentam os atores, não apenas atualmente, mas sempre?
A falta de uma carteira profissional. Este, para mim, sintetiza o desafio geral.
Voltemos a falar da Carolina. Que trabalhos tem feito ultimamente?
Estou há oito anos no Teatro Actus, que desenvolve um trabalho fundamental na educação de públicos e na sensibilidade artística. Temos seis espetáculos em cena, correndo com eles o país de norte a sul. Trabalhamos sobretudo para um público escolar. É um exercício essencial e de uma exigência enorme.
Tenho também o espetáculo “Boca Ilha” que, desde que estreou, em 2016, tem continuado a circular. Tive igualmente duas participações em televisão, nas novelas “Alma e Coração” e “Golpe de Sorte”.
Qual o trabalho que lhe deu mais gosto?
Essa é aquela questão que sempre que é colocada tenho mais dificuldade em responder. Todos os trabalhos têm estímulos, contextos e desafios diferentes. O “Boca Ilha” é o espetáculo que mais tem de mim em tudo que envolve a sua conceção. Surgiu de uma vontade despretensiosa a partir das minhas leituras de férias e ganhou um corpo que, hoje, já consegue andar. É uma relação de trabalho quase umbilical e ainda possibilitou a sua apresentação em várias ilhas dos Açores. Isso aumenta a caixa pessoal das memórias naquilo que são as vivências, a linha estreita do ofício com a intimidade.
Há anos fiz “a Rulote”, com encenação do Nuno Nunes. Tratou-se de um projeto muito interessante nos seus contornos estéticos e humanos e, talvez por isso, o Nuno tenha sido a pessoa escolhida para vir a encenar o “Boca Ilha”.
Por outro lado, o “Adoecer”, uma produção do teatro O Bando, foi das oportunidades mais gratificantes que tive. O Bando é uma companhia com quem tenho grandes afinidades; é a casa onde me sinto em casa. Talvez seja pelas várias formações que fui fazendo lá em regime interno. O trabalho que desenvolvem é aquele que mais se aproxima da minha forma de ver o teatro. Voltando ao “Adoecer”, o processo de trabalho foi pouco convencional e não só fui incentivada a criar em liberdade, como fora de uma zona de conforto. Mais que tudo, tinha uma equipa de profissionais que admiro. Alguns já amigos, outros que já tinham sido formadores. É bastante estimulante quando o trabalho é feito com prazer pessoal e enriquecedor por ter a oportunidade de trabalhar com pessoas que muito admiro.
O que pretende ainda fazer?
Tudo o que fizer sentido à minha necessidade artística e ao desenvolvimento de uma estética dramatúrgica que julgo ter vindo a moldar-se na minha “assinatura profissional”.
Quais os principais objetivos profissionais e pessoais que tem?
Do ponto de vista profissional, dar lugar ao meu lugar sem perder as minhas convicções e valores. Os objetivos pessoais são asas abertas: quero viajar e conhecer mundo. Tenho há anos a ideia adiada de fazer voluntariado, talvez num país africano.
Do que sente mais falta dos Açores? O que tem cá que não tem onde vive?
O mar. O mar nos Açores é diferente. O cheiro da terra. As vozes. A comida. E a sensação de estar em sintonia com a génese. O que os Açores têm que não encontro em nenhum outro lugar é a chegada. Chegar à ilha não é aterrar nem é voltar. É uma definição por encontrar.
Gostaria de voltar às origens?
Não sinto que tenha saído das origens, porque elas refletem a minha forma de ser no quotidiano. E isso vê-se na necessidade constante de trazer o meu trabalho aos Açores. Como dizia Daniel de Sá, “a pior maneira de ficar na ilha é sair dela”. Nunca saímos daquilo de que somos feitos.