CELEBRANDO MEMORIAL DAY

Para muita gente um dos dias mais infelizes da vida foi aquele em que teve de deixar atrás partes de si e alguns haveres, caminhando para o horizonte em busca de quimeras doiradas e felicidades perdidas. A estória de dólares aos pontapés mal se chega ao aéroporto do destino não acontece frequentemente.

Estamos no fim de Maio, e em todas as últimas segundas-feiras deste mês se celebra na América o Memorial Day – aquele dia em que se recorda com louvor e saudade os indivíduos a quem gratidão devemos, e que deste mundo já se foram. É feriado por excelência, brindando-nos com um fim de semana de três dias, o qual marca o início das actividades de verão. Pessoalmente, com ele celebro a aventura da minha vida, a chegada à terra das oportunidades, que é este lindo país que me acolheu de braços abertos. Porque aconteceu no fim de semana do Memorial Day, aos 26 de Maio de 1984, Sábado do Senhor Santo Cristo dos Milagres.

7:00h.: banhoca nas Poças com duração de 45 minutos. Apreciei tanto aquela água fria, de mar agitado. Despedi-me da velha corrente de ferro, do rochedo da prancha, do outro que se pulava à sua frente; e mergulhei para tocar na segunda corrente, que estava submersa. Tentei passar além dela, mas a forte ondulação teimava a conduzir-me às Poças. Não guerreei com a força branca porque ela, furiosa como estava, acabaria me despedaçando na muralha de quebra-mar que ficava entre as Poças e a foz da ribeira.  Quando acabei a banhoca marítima neguei-me ao duche e decidi ficar salgado para viver a maior aventura da minha vida. Vesti-me e fui entregar a chave das Poças ao Tio Mariano (Frade). A esposa veio à porta e gritou por ele: “O Alfredo vai-se embora, Mariano. Não lhe queres dizer adeus?” Um abraço aos dois, até qualquer dia.

8:30h: carro de praça à porta, despedida de sobrinhos, irmãs e mãe. Foi muito amargo o momento de ver a minha progenitora chorar. Vieram alguns vizinhos à porta. Adeus Alfredo! Vai com Deus. Mala de viagem no porta-bagagem e o carro se pôs em marcha, metendo-se a caminho do aeroporto. As mulheres ficaram em casa.

9:30h.: despedida de cunhado, irmão e pai. O pai, forte, como sempre o conheci, o meu herói, o meu ídolo, lavou a   cara com lágrimas, e gaguejando versou:

“Vai-te com Nossa Senhora,

Que te leve a bons caminhos.

P’ra que tu e a minha nora

Me possam dar bons netinhos.”

10:00h.: viagem de avião de 27 ou 32 passageiros de São Miguel para a Terceira. Após a decolagem o aparelho voador perdeu uns metros de altitude quando passou da Rocha da Relva e começou a sobrevoar o mar. Pensei: “grande vontade é esta, de sair da minha terra no fim de semana em que se realizam as maiores festas religiosas de todo o arquipélago!…”

10:30h.: Chegada à Terceira. Não quis sair do aeroporto. Ali almocei, comprei um caderno e uma esferográfica. Escrevi, rasguei papel, bebi café, fumei, voltei a escrever. Escrevi tanto e acabei por jogar no lixo o caderno e a esferográfica.

15:30h.: Aviso de embarque nos alti-falantes. Apresentei documentos, passei a guarda-fiscal e entrei no avião. Um monstro de aparelho voador em comparação com aquele me le levou para a Terceira. Menos de vinte por cento de ocupação. Sem exageros, estaria nele pouco mais de duas dezenas de passageiros. O senhor fuma? Que sim, respondi. Então terá de se sentar nos bancos da traseira metade. Maravilhado fiquei com o espaço e o conforto.

16:00h.: O avião começou a deslocar-se lentamente em direção à pista. Parou, e depois dos motores serem acelarados iniciou a rodagem, inclinou-se, e pouco depois estava acima das nuvens. Viva a TAP! Durante quatro horas e meia deliciei-me a ouvir música e a ler alguns dos mais importantes jornais portugueses daquele dia. Serviram refeição a bordo, e algumas bebidas. Pela viagem fumei uns cinco ou seis cigarros.

Mudança de fuso horário. 16:30h. da Costa leste dos Estados Unidos: O comandante anunciou que a descida se iniciara. Olhando para baixo já se podia ver terra. Uma senhora exclamou em voz alta: “Ah! Isto é que é a América?… Eu não vejo nenhuns arranha-céus…”. De facto, só terra e mar se podia ver da janela. Muito verde e uma infinidade de azul.

17:00h.: O aparelho voador já estava rolando em solo americano.  Depois de paragem completa tomou rumo ao terminal de vôos internacionais, e estacionou suavemente. Notei que a saída dos passageiros era muito diferente daquela que me habituara a ver em Ponta Delgada. À porta do avião não havia escada, mas sim um corredor. Sim, tal como se via nos filmes do James Bond, ou Agente 007. Perante esta maravilha não tive dúvidas de  estar na América. Ao apresentar meus documentos fui dirigido a um escritório de autoridade federal, onde fui entrevistado em Inglês, respondendo como pude. Manchei os cinco dedos de cada mão com tinta da China, e com eles sujei dois ou três papéis. Um sorriso acompanhado de um gesto manual deu-me a entender que estava livre e pronto para levantar a bagagem. Assim fiz. Welcome to the United States of America. Thank You!

17:45h.: Reconheci a mala de viagem na passadeira rolante. Azul. Nem sequer era minha. Foi emprestada. Aliás: usei-a para transportar as minhas coisas, de certo modo fazendo um favor à dona, por trazê-la de volta à América. Tratei de tirá-la da passadeira, mas alguém nela pegou, fazendo questão de a transportar, em carro de mão, até à saída do edifício. Fiquei boquiaberto com o serviço das boas-vindas, e logo pensei que seria necessário gratificar aquele indivíduo. Passei a última porta e deparei com uma multidão. Tanta gente de diversas partes do mundo à espera de passageiros de desembarque. Portugueses havia poucos, mas de entre a multidão ouvi uma doce voz chamar meu nome. Era a esposa. Corri a ela. Abraço, beijo, apalpadela. Reparo que o homem da bagagem estava indo sempre em frente, até à faixa de rodagem dos automóveis, e ali esperou por mim. Nisto, vejo a minha mulher aflita, à procura de dois ou três dólares na sua bolsa para lhe dar de gorjeta. Abraços aos sogros, cumprimentos e outras saudações aos cunhados. Vamos embora para Fall River.

18:00h.: Eh, grandecíssimo carro! Com um automóvel deste tamanho, na Ribeira Grande, levaria meia hora para virar o canto da loja do mestre António Fona! Tanto espaço, meu Deus! Nunca me senti tão pequeno. Era um “Oldsmobile Cutlass Supreme”. Tão silencioso e confortável, de transmissão automática, alimentada por um motor de oito cilindros em V. Por momentos pensei que ia para a Ribeira Quente, mas logo me disseram que estávamos a passar o túnel grande, aquele que ligava o aeroporto à cidade de Boston. Aqui por cima é mar, fizeram este túnel debaixo de água. Percebi então a ausência dos arranha-céus na descida do avião quando passámos o túnel e voltamos a ver o céu. Ali estavam eles, na cidade de Boston. Sabes que Boston é a capital do estado de Massachusetts? Esta porra desta gente pensa que eu sou um ignorante? – pensei com os meus botões. Mas a minha mulher bem sabia que não, e pediu-me para desculpar o pai. Alfredo, eu ouvi dizer que o que gostas mais de fazer é tomar banho no mar e nadar… Que sim, respondi, e fui mantendo a conversa como pude.

19:00h.: Avistámos Fall River. Isto é uma cidade velha. Antes dos portugueses aqui chegarem era uma mancha negra. Tudo, tudo preto! Os portugueses é que deram cor a esta cidade. Estamos quase em casa. Chegámos. A sêde era tanta, e eu muito tinha ouvido falar da cerveja americana, aquela de lata, grande, fina, refrescante e cheia de espuma. Entrámos em casa e puseram-me nas mãos uma cervejinha de garrafa, mais pequena do que a mini-saia, da Concha, da fábrica de cerveja Melo Abreu. Caiu-me o coração aos pés. Não! Isto não é assim que se bebe, disse meu sogro. Bebe-se é duas num copo! Ah, já percebi! Não me parece que assim possa render mais. Mas cada casa tem seu uso, e cada porca um parafuso. Pedi um abridor para tirar a tampa da garrafa. A espertinha da esposa chega-se a mim e desenrosca a tampa. Esta é boa! Agora as tampas são enroscadas. Só na América.

20:00h.: Havia um banquete à minha espera. Tanta comida! Era dia de festa, sem dúvida. Entre a variedade estava polvo guisado, o manjar que eu mais adorava. Mas nem lhe toquei. Nem nunca disse a ninguém o motivo de não lhe ter tocado. Mas o segredo desvenda-se aqui: no dia anterior, ao despedir-me da boa-vida, em meia-tarde fui ao Esgalha. O Esgalha ainda não tinha o restaurante. Tinha sim uma taberna, tipo casa-de-pasto, onde servia bons petiscos e ótimas refeições à moda regional. Entrei e fiz sinal ao sr. Humberto que me iria sentar no quartinho de trás. Sim, senhor, faça favor! Eu e o senhor Humberto Esgalha sempre nos demos muito bem, e tratávamos um ao outro com muito respeito. Mestre Alfredo, hoje temos polvo como prato do dia. Está muito bom. Mandei vir um prato. Chegou à mesa uma travessa. Trouxe-me metade de um pão caseiro e um copo de vinho de cheiro. Um copo, claro, dos nossos copos. Um copinho, como se dizia na Ribeira Grande, e um quartilho como se chamava no resto da ilha. O polvo estava tão bom que o vinho não deu para acompanhar. Mais um copo! Espera, Alfredo, já papaste um monstruoso prato de polvo, metade de um pão caseiro, dois copos de vinho, não ficou louça para lavar, o que te falta agora? Um café e um bagaço. Foi sair da taberna e ir dormir um sono nas Poças. Barriga inchada, cabeça muito mais. Depois disso quem é que quer ver polvo no dia seguinte? Não era eu.

21:00h.: Alfredo, há festa na igreja do Espírito Santo. Vocês não querem ir à festa? Nem pensar! Nunca fui de festas. Saí de São Miguel num dos dias da maior festa açoriana. Venho para a América para me meter na festa? Não. Tenho de pôr a escrita em dia com a minha esposa. Preciso molhar a caneta. Foram quase oito meses de separação. Hoje se inicia uma nova lua-de-mel. A festa que se lixe.

27 de Maio, 9:00h.: Depois de uma noite tão boa e de uma dormida relaxante, acordo com a canção de Laura Braningan, intitulada “Self Control”, através da estação 93.3 WSNE, de Providence, pelo aparelho de rádio-despertador. Nunca esqueci nem a música nem a estação. O quarto era acolhedor. Era da minha esposa e passou a ser nosso. Debaixo do tecto dos pais. Bom dia, amor! Beijinhos. Não, agora não há tempo para isso. Toca a levantar e ir para a missa.

Mais tarde, à saída da igreja, disse à esposa que precisava comprar cigarros. Respondeu-me: Vamos ali, à farmácia. A farmácia vende cigarros? Claro! As farmácias aqui vendem tudo. Até que faz sentido esta coisa de vender veneno para pôr as pessoas doentes, e depois vender-lhes os remédios para curar. Bem pensado. Só na América. Depois do almoço meu cunhado fez questão de me levar ao seu apartamento, e nesta altura é que eu apreciei a tal cerveja americana que toda a gente falava. A cerveja de lata. A lata branca, com letras azuis e vermelhas, a Budweiser. Loira, leve e refrescante, de medida apropriada. Passei então a ter lata para beber cerveja enlatada, visitando meu cunhado frequentemente.

Por hoje é tudo, voltando a lembrar que nem sempre a saudade chora, como alguém já disse.

Haja saúde!