É o regresso do maior dramaturgo do século passado Samuel Beckett, desta vez pela mão da encenadora Renata Portas no Teatro Municipal Rivoli. Não é fácil nos dias de hoje, pandémicos, propor ao público um espetáculo de duas horas a partir da densidade dramática da obra do grande dramaturgo irlandês. Breves universos que se desenrolam em tempos similares/reiterativos de extensão e continuidade.
“A Renata Portas é das mais intransigentes e coerentes criadoras de teatro portuguesas que conheço. Feito nada fácil numa área sempre sujeitas a inúmeras condicionantes e expetativas. Escolher levar à cena alguns dos Dramatículos mais experimentais e obscuros de Samuel Beckett, que eu traduzi, seria previsível. Afinal, todo o teatro da Renata pauta-se por um fascínio com a morte, a perda, a solidão perante o destino inescapável, com aquilo que sobra da existência humana quando a vontade e o sentido deixam de existir. Um teatro da cerimónia e da ausência, que recusa a ilusão e o conforto e procura o despojamento monástico e o trabalho milimétrico do ator.” (Só os impiedosos podem ser radicais /Jorge Palinhos) // Em entrevista de Renata Portas podemos ler: “Há três coisas neste espetáculo e na maior parte dos meus espetáculos: o tempo, a linguagem e a morte/memória. Todos são mais ou menos a mesma coisa. Cada vez que digo “tempo” aniquilo a coisa sobre a qual estou a falar. Falar é adiar o tempo, lembrar é tentar recuperar tempo e, no meio disto tudo, é possível trabalhá-lo. Para mim, o teatro é o sítio mais privilegiado para se trabalhar a questão de tempo e espaço, que podem ou não caminhar juntos. Por isso, o tempo neste espetáculo vem ao encontro destas noções.”
https://www.teatromunicipaldoporto.pt/pt/noticias/entrevista-renata-portas-2021-06-29/
É a este tempo de memória, de linguagem e morte que a encenadora Renata Portas nos convida, em compassos de espera, em intermitências temporais, em vazios de ansiedade à espera das palavras. // Em Dramatículos de Samuel Beckett, a encenadora Renata Portas, compõe um espetáculo a partir de cinco peças breves do encenador e dramaturgo irlandês (Ohio Impromptu, Rockaby, Play, Not I e Footfalls) sobre a condição humana e a ideia de ruína. // Por considerar os “dramatículos” os textos mais radicais e exigentes de Beckett, Renata Portas desenvolveu este projeto em jeito de “diálogo, de fazer para compreender” a obra de um autor central do teatro da linguagem e do pensamento. Quanto à encenação, encarou o desafio como a “maestrina que cumpre a partitura”, acrescentando-lhe três cenas inventadas e algumas derivações, uma das quais inspirada no artista plástico português Jorge Molder — que no seu trabalho evoca frequentemente personagens do mundo literário como é o caso de Samuel Beckett. Com interpretação de Cláudia Lázaro, Sílvia Santos, Pedro Manana e Pedro Damião. Da equipa artística e técnica se destacam St. James Park, que assina a música original e sonoplastia do espetáculo, Diogo M. Ferreira e o cineasta Edgar Pêra, que colaboraram na criação de dois objetos cénicos e fílmicos, ou o artista plástico Sérgio Leitão, que se estreia na cenografia.
https://glam-magazine.pt/dialogo-entre-renata-portas-e-beckett-em-estreia-no-rivoli/
De assinalar que nesta sua primeira experiência como cenógrafo, Sérgio Leitão aporta ao espectáculo de uma forma competente e imaginativa soluções e propostas cénicas que resolvem o mundo idealizado por Beckett nos seus textos. // Na estreia no TMR, foi lançado um livro com textos de vários autores sobre o espectáculo e sobre o autor. Entre eles um dos quais gostava de destacar de Jorge Palinhos, dramaturgo e docente da ESAP, uma espécie de carta aberta de amor e ódio dirigida a esse Samuel Butler Beckett, esse filho de mãe, sacana, chato que há décadas inferniza a vida de dramaturgos e traductores…(sic)…e porque não falar, já agora, também dos espectadores…(?) entre os quais me incluo. // É com uma nota de agradecimento a Renata Portas que me despeço, agradecido por ter tido a oportunidade de reencontrar um dos meus autores preferidos num palco, vivo interpretado por actores como deve ser! E por esta nota final com a qual termino esta crónica. //O meu primeiro encontro com Beckett foi no ano de 1966, tinha eu apenas 14 anos, e a entrada foi pela porta grande. Assisti a primeira representação de À Espera de Godot na Sala António Varas, em Santiago do Chile. A encenação e interpretação era a cargo de reputados actores, todos eles da fina água do teatro chileno e que me marcaram para sempre na minha vida como espectador.
Assisti assombrado (e é correcta esta expressão) a um mundo que não conhecia. O meu teatro de autores gregos, espanhóis, franceses, ingleses e alemães ficava para atrás. Nessa noite aprendi a conhecer um mundo novo do qual ainda ninguém me tinha falado. Era o mundo solitário e inacabado à espera. Numa estrada apenas habitada por uma árvore seca ou uma espécie de árvore, um tronco retorcido…dois homens esperam por um terceiro na esperança ou desesperança da sua aparição…aquele cenário era tão vasto e rico como o castelo de Elsinore e o banquete daqueles dois vagabundos chuchando um osso esquálido e roído era tão fastuoso como os mencionados por Lope de Rueda em La Tierra de Jauja. Nessa noite aprendi que havia um território no qual os seres humanos podiam descalçar-se e sentar-se à beira da estrada à espera que o tempo passasse sem acontecer nada enquanto a lua seguia a sua trajectória implacavelmente à espera…à espera…