“E A METAFÍSICA COBERTA DE PAPOILAS?”

A frase inicial é um verso de Pablo Neruda, do seu poema Explico algumas coisas, testemunho de uma Espanha rota, bombardeada e ensanguentada pelos generais traidores comandados por Franco no início da Guerra Civil Espanhola (1936-1939).

Me imaginava, como teria sido feliz para o poeta chileno haver assistido ao regresso da democracia em Portugal, país que ele visitou e descreveu nos seus versos como o grande descobridor de ilhas, inventor de pimentas, e de ilhas assombradas (*) …como teria sido para ele assistir à transição democrática da sua Espanha de juventude, da sua casa das flores em Madrid de onde podia ver “ el rostro seco de Castilla, como un océano de cuero.”

Imagino também, qual seria a alegria de Pablo Picasso perante estes dois acontecimentos gloriosos na Europa dos setenta …teria sido inspiração para mais uma tela, ou mais uma escultura cerâmica para o pintor malagueño ?

E como seriam para Pablo Casals, esses momentos históricos,..motivo exultante para pegar no arco do violoncelo e tocar mais uma vez uma suite de Bach…!

Desafortunadamente estes três Pablos morreram no ano de 1973, e não puderam assistir à festa dos cravos, à anunciada festa de transição na Espanha e, ou também, a derrota dos coronéis na Grécia, a terra de Homero, das tragédias e comédias.

Conheci a Pablo Neruda, mais de uma vez assisti a sua poesia, aprendi com Casals a amar Bach, tocado na singularidade única de um arco e um instrumento…ainda guardo na minha memória o meu primeiro momento de ter olhado para o Guernica numa reprodução num jornal a preto e branco e, só mais tarde, descobrir que eram essas as cores originais da gigantesca tela, representação da morte cavalgando num bombardeiro sobre uma mãe, uma criança, um touro e um cavalo, todos eles transformados numa espada gritante, quebrada e ferida …

Em Abril 1964,dez anos antes, Thiago de Mello escrevia um dos seus poemas mais famosos, Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente) dedicado a Carlos Heitor Cony, cujo artigo nono cito;

Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.

Passam 50 anos, destes momentos gloriosos todos eles irmanados pela recuperação da democracia como num Abril e fechar de olhos, momentos de canções e poesia, pois não há revolução sem canções e poesia…aqui deixo algumas que nunca me cansarei de lembrar…

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

(25 de Abril – Sophia de Mello Breyner Andresen)

 

Era um Abril de clava Abril de cravo
Abril de mão na mão e sem fantasmas
esse Abril em que Abril floriu nas armas.”

(Abril de Abril – Manuel Alegre)

 

…Senhores tiranos que do baralho de em pó volverdes
sois os reis sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis…

(Fragmento de A Defesa do Poeta – Natália Correia)

 

…E foi um mosto tão forte
que sabia tanto a Abril
que nem o medo da morte
nos fez voltar ao redil.

(fragmento de As Portas que Abril abriu – Ary dos Santos)

Para aqueles que nasceram depois do 25 de Abril, amem e respeitem a herança da democracia recuperada, 50 anos gloriosos que se ergueram sobre os quase 50 anos do orgulhosamente sós!

Roberto Merino

Notas: Y la metafísica cubierta de amapolas? – Pablo Neruda – Explico algunas cosas –fragmento da obra España en el corazón publicada em 1937.

(*) Em La Lámpara Marina de Pablo Neruda, poema  que foi inserido na campanha internacional para a libertação de Álvaro Cunhal, 1954.

Thiago Dantas de Mello, conhecido como Thiago de Mello, é um renomado poeta, escritor e activista brasileiro nascido em 1926. Ele é amplamente reconhecido por sua contribuição para a literatura brasileira, especialmente no campo da poesia. No ano de 1964, após o Golpe Militar no Brasil, renuncia ao cargo de adido Cultural do Brasil no Chile.

Carlos Heitor Cony foi um renomado escritor, jornalista e cronista brasileiro. Ele nasceu em 1926 no Rio de Janeiro e faleceu em 2018. Cony foi uma figura proeminente na literatura brasileira contemporânea, conhecido por sua prosa elegante e reflexiva.