Há 45 anos no mundo autárquico, Alcino Lopes é o presidente de Junta de Freguesia há mais tempo em exercício, em Vila Nova de Gaia. A pouco mais de um ano do fim deste que será o seu último mandato à frente dos destinos da União de Freguesias de Gulpilhares e Valadares, o autarca não escondeu, em entrevista exclusiva ao AUDIÊNCIA, a sua vontade de renunciar ao cargo que ocupa há cerca de 39 anos. Fazendo uma retrospetiva sobre a história da sua viagem pela política, o seu percurso e as conquistas alcançadas, o edil garantiu que anseia ver concluída a reabilitação da sede da Junta de Valadares, em benefício dos colaboradores e da população. Na ocasião, Alcino Lopes falou, ainda, sobre “um legado que fica para toda a vida”, mostrando-se disponível para ajudar, seja quem for, na prosperidade dos territórios.
Para quem, eventualmente, não o conhece, quem é o cidadão Alcino Lopes?
Eu sou muito conhecido. Eu acho que as pessoas que precisam da autarquia, à partida, conhecem-me. Agora, todos os outros que fazem uma vida afastada não me conhecem e ainda bem que assim é. Não é fácil nós aguentarmos, anos e anos, a prestar atenção às pessoas que nós conhecemos e que gostam imenso de um mimo, de cuidado ou de um toque. A questão da humanidade, para mim, é a mais importante, porque temos de estar ligados à maioria dos fregueses.
O que o levou a ingressar no mundo da política?
Tudo aconteceu por acaso. Eu não era militante do PS e também tinha estado muito tempo em Angola, pela tropa. Portanto, não tinha qualquer tipo de ambição. Aquando do meu regresso, eu comprei um carro muito vistoso, um Capri II amarelo, aliás, fui a primeira pessoa a comprá-lo aqui no Norte. Logo, era um carro chamativo e que roubava as atenções. Acontece que, uma vez, na zona de Vilar do Paraíso, havia uma sede junto à antiga Estrada Porto – Espinho, onde se punham a angariar fundos. Na ocasião, eu ia a passar na estrada e o automóvel da frente parou, então eu também fui obrigado a parar. Eu dei uma nota de 20 e perguntaram-me se eu autorizava que colocassem um autocolante e eu inocentemente disse: “está bem, pode colocar”. Depois, as pessoas passavam à minha porta e viam o símbolo e, na altura, o então presidente de Junta veio ter comigo e perguntou-me se eu queria fazer parte da lista, porque tinham pouca gente. Na verdade, eu pedi para me colocarem em último, mas quando houve uma reunião em Santo Ovídeo e eu percebi que me tinham colocado no segundo lugar da lista, quando nem me conheciam muito bem, porque eu não fazia parte do Partido Socialista, nem tinha grande tendência para partidos. Depois, o bichinho entranhou e, a partir daí, foi sempre a ir a eleições e a ganhar. Eu tive muitas oportunidades, pois o meu percurso foi longo, mas sempre me pus de parte. Eu acho que a minha mulher e os meus filhos sofreram um bocado, porque eu não tinha horas para nada, pelo que acho que sacrifiquei imenso a minha família, mas são coisas que acontecem. Eu, de maneira alguma, queria estar ligado à vida autárquica, porque nunca me considerei muito político. Eu tenho simpatia pelo Partido Socialista, já tive mais do que o que tenho, mas continuo a ter qualquer coisa dentro de mim, embora às vezes fique desgostoso com aquilo que se houve e que se faz, mas nunca interiorizei muito esta questão da política. Eu cheguei a ter alguma projeção em Gaia, mas fugia sempre. Eu podia ter estado em vários lugares da Câmara, mas nunca quis. Nunca larguei a minha profissão na PT e, felizmente, foi o que eu fiz melhor, porque permitiu-me que eu viesse para casa, na altura, com um bom ordenado e, depois, com uma boa reforma. Logo, nunca pus em causa o meu trabalho.
Quais são as suas motivações?
Motivações todos temos. Neste momento, mesmo estando numa situação de abdicar, tenho motivações, mas não sou a mesma pessoa que era no passado, porque também reconheço que, hoje, é bem mais difícil trabalhar as coisas do que no passado. A minha motivação, aqui, é ser exigente e saber proteger os meus colaboradores. Desde que eu cá estou, eu encaro isto com um grau de exigência muito elevado. Eu, às vezes, costumo dizer que tomara todas as Juntas do nosso concelho e do país tivessem a organização, baseada no rigor, que nós temos, porque ninguém tem o direito de fazer algo aqui, que não seja rigoroso, o que não quer dizer que, uma vez ou outra, não aconteça uma falha, porque não somos profissionais, nem temos técnicos superiores. Eu deito um olho clínico a tudo, o que é muito bom para as minhas colaboradoras, porque sabem que se falharem, eu descubro e elas estão tranquilas. Aqui, fazemos a contabilidade ao dia. A Freguesia de Gulpilhares, em certas coisas, é única.
Como descreve o seu percurso, até chegar à presidência da Junta de Freguesia de Gulpilhares?
Eu fui a eleições foi em dezembro de 1979 e o meu trajeto tem sido muito diversificado. Na altura, quando eu entrei para a Junta foi como secretário. O anterior presidente também se chamava Alcino, contudo era um pouco limitado e queria fazer tudo, não delegando tarefas. O tesoureiro deste executivo pegava-se com o presidente, mas, na verdade, ele fazia o que podia. Posso dizer-lhe que vi coisas que não gostei, porque naquele tempo a contabilidade era um livro de mercearia e no fim do primeiro mandato fizemos uma reunião com toda a gente, na altura eu ainda não era militante, e quase todos me elegeram para ser o presidente e eu disse que não aceitava, porque o Alcino estava a fazer o melhor que sabia e eu não tinha qualquer interesse em ser presidente de Junta, apenas impus ficar como tesoureiro, porque o tesoureiro é muito importante numa Junta de Freguesia. Então, eu disse ao presidente que o lugar de tesoureiro era para ser cumprido, não era para fazer brincadeiras. Na ocasião, era tudo muito primário, alguns nem deviam saber contar as notas, era tudo uma bandalheira. No mandato seguinte, já me candidatei a presidente, porque o antigo autarca também estava adoentado e daí para a frente foi sempre a andar. O meu objetivo era cumprir a minha função. Eu acho que as coisas, no passado, eram mais fáceis do que são agora. Nós tínhamos sempre alturas de grande manifestação de alegria e de tristeza, por aquilo que se fazia ou não. Portanto, este percurso de quase 45 anos é muito alargado para eu poder escalpelizar aquilo que se passou. Mas, passaram-se muitas coisas belas nesse período, não posso dizer o contrário, porque eu fui capaz de fazer coisas que não existem noutros territórios edificadas pela Junta de Freguesia, mas pela Câmara Municipal. Nós, felizmente, tivemos arrojo para conseguir fazer equipamentos que ficam para toda a vida. Portanto, isso é uma das coisas que me orgulha, mas também me tirou muitos dias de sono. Foi um percurso difícil, também para conseguir conviver com a minha família, porém tudo se resolveu. Neste momento, não tenho nenhum objetivo, tirando sair o quanto antes. O meu percurso teve momentos muito fortes, aliás, se for analisar o património de Gulpilhares questiona-se se formos nós que fizemos, mas fomos, com pouco dinheiro da Câmara e as coisas apareciam, porém, hoje é mais difícil. O nosso Auditório foi desenhado por mim e foi feito por administração direta. Na altura, o presidente da Câmara era o Heitor Carvalheiras e arranjou as cadeiras, mais nada. Depois, temos um conjunto de edifícios para as sedes das coletividades, também temos o maior estádio ao nível de freguesias, tirando o Jorge Sampaio, para além de um vasto património. Contudo, agora é muito difícil, porque hoje nós estamos um bocadinho afastados uns dos outros, surgiram problemas que acabaram por perturbar o resto e este momento é um bocadinho complexo, pois havia coisas que estavam planeadas e que eu já nem acredito que se concretizarão. Eu diria que foi um percurso, de certa maneira, aliciante em muitas coisas e muito difícil noutras.
Há cerca de onze anos abraçou a liderança dos destinos da União de Freguesias de Gulpilhares e Valadares. Quais foram os maiores desafios e as maiores concretizações?
Eu fui o único presidente de Junta que, na primeira reunião, votou contra a agregação, mesmo sabendo que se não houvesse a junção dos territórios eu não me podia voltar a candidatar, porque não é fácil nós estarmos em dois polos sem pessoas profissionalizadas a trabalharem connosco, para resolverem problemas e, depois, andamos aqui a “tapar buracos”. Valadares e Gulpilhares não são freguesias pequenininhas, são freguesias médias e juntas têm mais de 20 mil habitantes e nós temos Câmaras no país com 3 mil habitantes. Contudo, as Juntas são o parente pobre do sistema. Se formos comparar Valadares antes da agregação e depois, tem muita importância, porque esta localidade teve a sorte de se agregar com Gulpilhares, que, a nível de finanças, teve sempre dinheiro e eles tinham dívidas. Só a ADSE eram 28 mil euros e chegaram a ter 100 mil euros de descontos por pagar e os funcionários viam-se aflitos e isso, aqui, é sagrado. Quando eu tomei conta dos dois territórios, as despesas correntes baixaram de uma forma exponencial e só assim é que eu sou capaz de fazer investimento, porque se nós gastarmos o dinheiro todo em despesas correntes, o investimento não acontece. Isto quer dizer que se Valadares não se tivesse emancipado, se calhar, passados 20 anos gastaria 500 mil e, sob a nossa gestão, a União de Freguesias gastou menos de 300 mil euros para cada Junta. Eu faço tudo o que está ao meu alcance, em prol destes dois territórios e, no final, estou tranquilo. Portanto, a nossa função de autarca é fantástica, nós fazemos de tudo.
Em cerca de 45 anos de vida autárquica, quais foram as maiores dificuldades?
As maiores dificuldades que nós hoje enfrentamos e, possivelmente, também a Câmara Municipal, que está num patamar superior, estão relacionadas com o facto de, há meia dúzia de anos para cá, as pessoas passarem a usar com mais frequência o correio eletrónico, assim como outras formas de comunicarem e de dizerem asneiras. A parte que, neste momento, mexe comigo é eu ter de estar a responder a coisas que, a meu ver, não fazem sentido. Portanto, agora é mais complicado, porque algumas pessoas são agressivas e não percebem que nós não temos um batalhão para ir tapar um buraco na hora, numa área de 16 quilómetros quadrados, aliás nós quase que não temos pessoas para trabalhar, pois os funcionários estão a ficar velhos e nós não os vamos deitar fora. Quando as pessoas vêm à Junta e questionam-me sobre o facto de se fazer ou não alguma coisa, saem tranquilas, uma vez que nós explicamos as coisas com objetividade. Neste mandato, com a Câmara, não houve assim nada de revelo, também não sei se vai acontecer, mas nós também se não tivermos a dinâmica do município perante as Juntas, não é com o dinheiro que o Estado dá que nós conseguimos fazer brilharetes. Nós fazemos alguns, mas era preciso envolver mais as Juntas com dinheiros que pudessem resolver muitos problemas, porque há várias situações sobre as quais fazemos pedidos à Câmara, nomeadamente, ruas que já são antigas e basta colocarmos uma camada de tapete que ficam bem e se a Câmara delegasse isso para nós, nós conseguíamos fazer mais barato e mais rápido. Portanto, se a Câmara Municipal de Gaia quiser ter pessoas a trabalhar nessas matérias, nós conseguimos. Tenho a certeza de que todos os presidentes de Junta estão disponíveis para ajudar o município, através de protocolos exequíveis. Este ano, não apareceu nada, o ano passado também não. Portanto, isto está um bocado parado. Espero que o presidente, até ao final do mandato, ainda consiga corrigir duas ou três coisas que serão uma mais-valia e é isso o que hoje se quer.
O que é que a União de Freguesias de Gulpilhares e Valadares precisa, neste momento?
Em Gulpilhares há uma promessa do presidente da Câmara, que sempre foi um indivíduo que quando assume cumpre, que está relacionada com a renovação do Auditório, que já tem 29 anos e algum desgaste ao nível das cadeiras, assim como algumas infiltrações no telhado, porque a cobertura é em tela e, portanto, começa a entrar humidade. Uma sala daquelas precisa de manutenção. Uma obra interessante, também, que o senhor presidente da Câmara demonstrou vontade de fazer é o arranjo do Largo da Igreja de Valadares, onde pretende fazer uma grande praça, que se for concretizada, vai ser muito bonita, mas estamos a falar de um lugar onde se vai investir bastante. A zona da praia, em Valadares, também precisa de ser intervencionada, porque muitas ruas estão profundamente estragadas. Para além disto, se o presidente nos desafiar para coisas que não sejam muito pesadas, eu acho que todos nós queremos, para o bem-estar das pessoas.
O Auditório foi um sonho seu, tornado realidade. Que outras apostas materiais e imateriais foram feitas por este executivo?
Muitas coisas foram feitas e, muitas vezes, as pessoas nem se aperceberam, por exemplo, o ano passado, a Junta comprou um terreno enorme por 250 mil euros. A Câmara não nos deu um tostão e nós ainda fomos dizer ao município que íamos disponibilizar quase metade do terreno para a colocação de uma Unidade de Saúde e com o sobrante ainda vamos fazer mais dinheiro do que aquele que pagamos pelo espaço todo. Nós fizemos investimento, na perspetiva de ficarmos com património para nós e o resultado das outras partes serve para cobrir o que se investiu. A Unidade de Saúde que temos, neste momento, é pequena e foi a primeira coisa que eu fiz quando vim para a Junta, enquanto secretário, isto é, desenhar o prédio, na altura, para a área da enfermagem, que era algo que não tínhamos e que, hoje, é a nossa Unidade de Saúde, que tem três ou quatro médicos. Também, damos muito apoio às instituições locais, aliás, direcionamos-lhes cerca de 50% do valor que recebemos da Câmara Municipal, porque não faz sentido termos coletividades a definhar, porque ou fecham ou temos de as revitalizar. Nós nunca deixamos cair ninguém. O que eu levo um bocadinho dentro de mim foi ter havido um corte nas transferências do município, quando até 2013 nós tínhamos muito mais dinheiro do que temos agora, mas precisávamos de mais dinheiro para conseguirmos ser mais empreendedores.
Durante o seu percurso autárquico, qual foi o momento mais importante para si?
Não sei. Tive momentos muito bons e de muita alegria, mas não tenho nenhum em especial.
E o mais triste?
O momento mais triste, se calhar vai ser aquele em que eu vou sair por esta porta.
Então, porque é que vai abdicar?
Eu estou-me a desgastar sem necessidade e quero acompanhar a minha esposa, que está debilitada devido a algumas questões de saúde, assim como estar mais próximo da minha família. Eu tinha estabelecido a meta até junho, mas nós temos tido problemas com a reabilitação da sede de Valadares, porque começou na época da Covid-19 e o empreiteiro depois andava ali a fazer de conta, até que percebeu que ia perder dinheiro, porque a empreitada que esse individuo ganhou era de cerca de 135 mil euros e a segunda proposta custava mais 90 mil euros do que a primeira e eu não podia deixar o senhor sair de qualquer jeito, pois tinha de fazer um novo concurso e lá vinha uma pancada a sério, então ele anda a fazer aos bocados. O edifício era uma miséria e estava tudo podre, aliás, quando chovia, quem estava no primeiro andar, tinha de colocar muitos baldes e, às vezes, o que chateia em alguns valadarenses é que não tinham nada, não têm nada feito por eles e depois aparece lá um indivíduo com vontade de fazer e “aqui-d’el-rei” porque não faz. Na última reunião, o empreiteiro garantiu-me que em setembro a obra estaria concluída e, nesse momento, eu quero estar lá, porque foi uma das coisas que eu vivi e tive muitas chatices. Portanto, se eu sair, saio triste, mas quando estiver lá fora sentir-me-ei aliviado, tal como aconteceu na PT.
45 anos depois, de forma é que diria que contribuiu para o engrandecimento do território?
Nós fizemos muitas coisas e é um legado que fica para toda a vida. Contudo, ultimamente não tenho conseguido ter a dinâmica que tinha no passado. Alguma coisa não está bem e, portanto, não vou andar aqui a matar-me.
Quais são os seus maiores desejos?
Eu tenho dentro de mim o desejo de inaugurar a sede de Valadares e espero conseguir. Mas, nesta altura, o que eu desejo é ter paz e a minha família o melhor possível, porque se não tivermos estabilidade em casa é uma chatice. Só quem passa por elas é que percebe e há muita gente a sofrer a sério, pelo que se eu tiver saúde assim como a minha gente, eu fico feliz. Agora, eu tenho de arranjar um escape para viver de maneira diferente e já tenho coisas pensadas.
O que vai fazer quando calçar as pantufas?
Eu tenho condições para ir para o Algarve as vezes que eu quiser para o apartamento da minha irmã. Depois, tenho possibilidades de fazer termalismo, algo que eu comecei a fazer em São Jorge, na Feira, aos 32 anos, porque me doía sempre o fémur esquerdo e fui para lá muitas vezes e não piorei. Nessa altura, era sempre a correr, pois saía da PT, depois vinha para a Junta e quando saía daqui dirigia-me para as termas. Tenho de arranjar uma maneira de me distrair, agora, não vou andar aqui metido, porque temos de ter a consciência de que o nosso momento chegou e de que temos de dar espaço aos outros. Eu não me estou a ver a vir aqui dar um palpite a quem quer que seja. As pessoas hoje têm capacidades que, no passado, não tinham.
Quem é que imagina à frente dos destinos deste território?
Nós estamos a ter a informação de que vão fazer a separação. A meu ver, é uma vergonha haver uma equipa a trabalhar na desagregação e dizer que é difícil, porque foi mais difícil fazer a agregação do que separar, porque as coisas estão lá. O coeficiente de transferência de dinheiro é possível fazer na hora. Em Gulpilhares, eu acho que a pessoa que tem mais vivência aqui comigo é o Eduardo, que tem sido tesoureiro. Agora, depende dele. Contudo, a meu ver, é a pessoa que está mais preparada, até porque tem facetas que são importantes, é risonho, gosta de brincar, acho que é um rapaz sério e que já tem o traquejo para liderar os destinos da Junta de Freguesia de Gulpilhares, claro que, naturalmente, terá de criar uma dinâmica diferente na vida dele. Porém, sinceramente, para Gulpilhares não vejo mais ninguém.
Qual é a mensagem que gostaria de transmitir à população?
A mensagem que eu transmito é que estou ansioso para inaugurar a sede da Junta de Freguesia de Valadares.