O TRISTE ABANDONO DE UMA CASA COM HISTÓRIA

Quando se aproxima o 136º aniversário (1889-2025: 16 de fevereiro) da morte de Soares dos Reis, trago à liça a espécie de maldição da casa-ateliê deste genial escultor, que se tem arrastado através dos tempos, com os poderes públicos insensíveis à importância da história que encerra o edifício. A maldição começou em 1934, quando, por dificuldades financeiras da família de Soares dos Reis, a casa foi vendida. A Câmara Municipal de Gaia não teve interesse na aquisição e o espaço onde se produziram obras de arte foi então local de fabrico e venda de… caixões. Quatro anos depois, a casa foi a hasta pública, tendo sido arrematada pel’O Primeiro de Janeiro, a fim impedir que situações análogas se viessem a repetir. Mas, inexplicavelmente, só em 1946 a Câmara de Gaia contactou o jornal no sentido de passar o imóvel para a esfera pública, destinando-o a perpetuar a memória do escultor.

Como forma de assinalar as comemorações do primeiro centenário do nascimento de Soares dos Reis, em 1947 começaram os preparativos para a recuperação da casa. Mas havia inquilinos a habitá-la e estes recusaram-se a abandoná-la. Sem conseguir despejá-los, a Câmara de Gaia pediu auxílio ao Governo na resolução da questão, tendo este sugerido que o imóvel fosse doado ao Estado. E foi assim que, em agosto de 1947, o edifício ficou livre de moradores. Mas o tempo que sobrava para as obras até à data de nascimento do escultor era pouco e as projetadas comemorações passaram-se sem que a casa sofresse qualquer intervenção. As obras foram finalmente realizadas no ano 1951, sem estudos técnicos de monta, tendo o imóvel sido cedido à Escola Superior de Belas Artes do Porto (ESBAP).

Quinze anos depois (1966), o imóvel encontrava-se de novo muito degradado, tendo sido então celebrado entre a ESBAP e a Câmara Municipal de Gaia um protocolo visando mais uma vez a sua recuperação. Mas divergências várias impediram a sua aplicação prática e a passagem do tempo levou a casa a cair no abandono. Em 1989 houve um novo plano de recuperação do imóvel, tendo sido aberto um concurso. Mas não há notícia de que as obras tenham sido realizadas, tanto que, apenas três anos passados, este procedimento foi repetido. Nesse mesmo ano circulou, aliás, a notícia do arranque das obras, mas nada aconteceu.

No início de 2008, a Câmara Municipal de Gaia tornou pública a assinatura de um novo protocolo com a Faculdade de Belas Artes do Porto (ex-ESBAP), visando a recuperação do imóvel, acordo que viria, no entanto, a ser declarado nulo quando o Ministério das Finanças fez saber que era o proprietário do espaço. Ao mesmo tempo que informou ser o legal proprietário do imóvel, aquele Ministério reivindicou de imediato a sua posse e fez saber que não possuía qualquer interesse nas atividades protocoladas, estando, no entanto, disponível para negociar a sua venda. E, assim, inviabilizou a sua recuperação.

Porém, passados cinco anos, o imóvel foi de novo afeto à Faculdade de Belas Artes. E em abril de 2017 é celebrado novo protocolo entre a Universidade do Porto e a Câmara de Gaia, tendo em vista a remodelação do edifício e a sua transformação num museu vivo e numa oficina para jovens artistas, sem que até à data se vislumbrem sinais nesse sentido.

Entretanto, em abril de 2014, a Direção Geral do Património Cultural (DGPC) havia despachado negativamente um pedido de classificação do imóvel, fundamentando-se no parecer da Direção Regional de Cultura do Norte de que o imóvel não reúne os valores patrimoniais inerentes a uma distinção como valor nacional, face ao seu avançado estado de degradação. Ou seja, o Estado não conserva os bens de sua propriedade e depois invoca essa mesma falta de conservação para não os classificar! Sublinhe-se que na mesma data em que decidiu o arquivamento do processo de pedido de classificação da Casa-Oficina de Soares dos Reis, a DGPC fez transitar a questão para a Câmara de Gaia no sentido de esta ponderar a eventual classificação do imóvel como de interesse municipal numa das categorias legalmente previstas, ficando a aguardar o pronunciamento da autarquia sobre o assunto.

Mas sobre isto mantém-se até hoje (ao que sei!) um silêncio sepulcral. Já quanto à recuperação do imóvel, a vontade aparentemente existe, mas a sua concretização arrasta-se no tempo como se estivesse envolta numa espécie de “maldição” que as próximas eleições autárquicas resolverão definitivamente, porque nenhum dos candidatos que venham a perfilar-se deixará de inscrever essa medida como prioritária no seu programa para a Cultura.

Até porque (importa repetir!) não está em causa apenas a recuperação de um edifício arquitetónico do século XIX, mas a reabilitação da memória de um dos nossos maiores génios artísticos, autor de uma obra riquíssima. Foi lá que Soares dos Reis produziu algumas das suas melhores obras, como os bustos de Marques de Oliveira, de Viscondessa de Moser e da “Flor Agreste”, as estatuetas em bronze O Desterrado e A Riqueza, as estátuas em bronze de Conde Ferreira e Avelar Brotelo ou o monumento a D. Afonso Henriques. E era lá que trabalhava no busto de Fontes Pereira de Melo quando pôs termo à vida, a 16 de fevereiro de 1889, com dois tiros de revólver. Numa das paredes da sua casa-ateliê deixou escrito: “Sou cristão, porém, nestas condições, a vida para mim é insuportável. Peço perdão a quem ofendi injustamente, mas não perdoo a quem me fez mal”. Ainda não tinha 42 anos!

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