O ZERO

O Zero sentia-se vazio. Olhava para si mesmo e não gostava do que via: era aquela barriga enorme; era a incapacidade de sobressair; era a falta de um carácter vincado…

Achava mesmo que não valia nada. Já muitas vezes tentara ser esguio como o 1, elegante como o 4 ou belo como o 7, mas nem sequer conseguia a pequena proeza de esticar um braço ou uma perna para se assemelhar ao 6 ou ao 9.

Era realmente uma nulidade. Mas o pior de tudo nem sequer era o aspecto, pois já se tinha habituado a isso, e os outros também nunca o tinham visto de outra forma. Não. O pior não era olhar-se ao espelho: o pior era quando olhava para dentro de si mesmo. Não valia nada, pronto! Era isso. Nunca tinha feito nada de que se pudesse realmente orgulhar; tinha as mãos vazias; nunca ocuparia um lugar na história e não deixaria marcas no mundo.

Não passava de um zero.

Mas, então, por que razão tinha consigo todos aqueles sonhos, aquele desejo de grandeza, a vontade de se lançar a tarefas gigantescas? Era um zero e sentia dentro de si uma enorme tendência para o infinito… Aquilo não tinha lógica nenhuma.

Mas ele evitava pensar muito. Era assim e não havia nada a fazer: muitas vezes dizia a si mesmo que não podia fugir à sua natureza, às limitações com que nascera. Sentindo-se incapaz do esforço de alcançar o infinito, que tanto o atraía, repetia constantemente que o infinito não existia, que era imaginação e tolice. Para se convencer a si próprio. Para justificar a sua nulidade e a vida preguiçosa que levava. Para se poder entregar tranquilamente à doçura de uma vida sem montanhas para subir.

No entanto, aquela doçura acabava por o maçar. Tornava-se amarga: não na boca, mas num lugar qualquer que ele não sabia identificar com exactidão. Ora, aquilo doía-lhe. Era como se tomasse veneno.

O Zero sabia a solução, a resposta, a verdade, mas fugia de pensar nisso. Pensar também pode doer… Sabia que o verdadeiro problema não era a preguiça nem a falta de capacidade. A questão importante era o orgulho.

Sucedia que o orgulho o levava a procurar sempre o primeiro lugar quando se juntava aos outros algarismos para fazerem alguma coisa em conjunto. Conseguia muitas vezes esse lugar, porque discutia e teimava, mas os outros não achavam aquilo bem. E quando isso sucedia formava-se uma barreira – uma vírgula – entre ele e os restantes algarismos. E assim, com o Zero no primeiro lugar e a vírgula logo a seguir, aquilo que faziam não valia quase nada.

Intuía que, se aceitasse um dos últimos lugares, tudo seria diferente. Talvez então pudessem, em conjunto, aproximar-se do infinito e até tocar-lhe. Talvez assim se abrissem as portas a todos os sonhos que desde sempre trouxera consigo. Mas teria – assim pensava – de se curvar perante os outros; e baixar a cabeça era para ele inaceitável…

Não vou acabar de contar a história do Zero. Não vou dizer como chegou a entender que para um zero o melhor lugar é o último. Nem como acabou por pedir desculpa aos outros. Nem como conseguiu depois – não sempre, mas muitas vezes – a glória de baixar a cabeça e se colocar no último posto.

É que estas transformações são sempre muito íntimas e dolorosas. Sou amigo do Zero – conheço-o muito bem – e não está certo que revele em público a sua intimidade.