OS RAPAZES DA RUA

Seguindo o raciocínio de promessa ser dívida, proponho-me nestas linhas pagá-la, antes de serem aplicados juros. Assim, começarei pelo futebol de rua, que era a brincadeira do ano inteiro. Jogo proibido, como tantos outros. Aliás, tudo parecia proibido na primavera marcelista. Ainda assim, uns anos antes, quando Salazar ainda podia arrastar as botas, no Adro das Freiras e no Largo de Santo André realizavam-se alguns desafios, com equipas formadas na ocasião, constituídas por rapazes graúdos, de idades de namorar. As crianças, de longe, observando os seus movimentos aprendiam as manobras, para praticá-las depois com os da sua idade. É que os rapazes pequeninos não se caldeavam com os grandes. Porque os grandes falavam mal. Diziam pragas que “misicórda”, e sabiam coisas que os pequenos não deviam saber. Pois, é! A rua era a primeira escola para alguns, e nela de tudo se aprendia.

No Adro das Freiras os desafios foram proibidos quando a “Assistência” começou a funcionar, naquela grande casa que era do Morgado Estrela Rego. Estamos a falar do complexo de maternidade com dispensário materno-infantil, e outros serviços, que começou ali a funcionar em 1961, para que no ano seguinte pudéssemos ali nascer. Hoje, naquele edifício totalmente recuperado funciona a biblioteca municipal Daniel de Sá. Esclarecido isso, resta-nos acrescentar que, mesmo assim, os desafios do domingo mesmo sendo proibidos continuaram ali por algum tempo. Era só uma questão de ter a polícia debaixo de controlo. Não era difícil. Porque o Adro tinha (e ainda tem) três saídas, e geralmente a polícia só obstruia uma. Porque só um agente era destacado ao local, e só um policial fazia a ronda diária.

Os pequenos, por sua vez, contentavam-se com o arruamento que envolvia o largo verdejante. O caminho circular ovalizado só era calcetado em frente da Assistência. Ou seja: desde o outeiro da Rua Ponte Nova até à Rua das Freiras. O resto do círculo e a rua Trás-os-Mosteiros tinham pavimentação de cascalho, ora preto, ora vermelho, conforme a vontade dos responsáveis pela sua manutenção anual.  À frente da muralha das ruinas do Mosteiro de Jesus, onde hoje se encontra o palácio da Justiça é que quase sempre funcionava o “campo pequeno”. Atenção: não vamos confundir este “campo pequeno” com o das touradas, e além disso, convém recordar que naquela época ainda havia poucos cornos na Ribeira Grande. Este campo pequeno a que nos referimos era aquele aonde os “rapazins”, com quatro pedras no chão faziam duas balizas e se consolavam a jogar à bola. Ora, bolas é o que não havia à disposição da rapaziada. Ter uma bola de borracha era luxo; e quem as tinha determinava quem poderia ou não brincar. Era nesta altura que todos se tornavam amigos do dono da bola. Quando não se conseguia a bola de borracha, que era cara, comprava-se na mercearia do João Pascoal a bola de “casquinha”, que geralmente durava dois dias; e quando não havia bolas, fazia-se uma de velhos trapos, ou de algum resto de saca de lona, ou até com o próprio lenço de assoar o nariz, recheado de ervas e alguns pedregulhos.

A escola preparatória Gaspar Frutuoso ainda estava por inventar. Porque a partir do seu funcionamento os jogos de futebol no adro acabaram.

Sem sombras de dúvida, o melhor “estádio” do nosso futebol foi o calcetado da Rua de São Vicente. Não era largo, mas sim comprido. Porque ia desde a parte estreita da rua até ao seu início, que se situa no cuzamento desta com as ruas do Ouvidor e dos Condes. As balizas eram duas portas do solar de São Vicente, que agora serve de museu municipal: uma era a porta da ermida; a outra, era a situada no extremo do edifício. Tantos golos, tantas vitórias. Derrotas, nem se fala. Perderam-se jogos mas não se perdeu a infância nem a juventude. Por isso ninguém foi derrotado. Dos jogadores mais falados do nosso tempo o maior destaque vai, sem sombra de dúvidas, para o Ricardo José Moniz da Silva. Mas também não podemos esquecer: Mário Jorge Gaipo, António Marreta e tantos outros. A nossa pessoa encabeçava a lista dos piores jogadores, e algumas vezes só brincava à bola quando era o dono dela. No entanto, por duas ou três vezes, em casa, chegámos a elaborar o jornal da bola, relatando nele os golos do Ricardo Correia (Silva) e as defesas do guarda-redes Carlinhos Barbita.

O futebol de rua também se jogou muitas vezes no Caminho da Palha (Rua dos Condes Da Ribeira Grande). Praticamente no espaço que hoje se compreende ficar diante da frente da Escola Secundária.

Mais acima, num pequeno troço da travessa de Trás-os-Mosteiros, ao lado da Ponte que Mestre António Vieira se orgulhava de ter construído, também se jogava futebol. Ali havia algumas árvores, que por si serviam de balizas.

Mestre António Vieira, um homem que deu muito que falar na Ribeira Grande, mais conhecido por Mestre António Maneta foi o mestre de obras da Câmara da Ribeira Grande por algum tempo, sendo antecessor do Mestre António Alves, pai do nosso amigo Mitó. Antes de emigrar com a família para a América chegou a ser nosso vizinho, na Rua de São Vicente. Nos Estados Unidos cruzámos com ele algumas vezes, e tivemos longas e agradáveis conversas. Numa delas ele contou-nos que constriu aquela ponte, e a outra do Monte Verde, por cima do leito da ribeira Seca, com o pouco material disponível naquela altura. Em 1961 e 1963, respectivamente.

Aquele pequeno troço da travessa de Trás-os-Mosteiros era pictoresco e muito agradável, principalmente durante o verão. Mesmo ali ao lado havia uns tanques para lavagem de roupa, também construídos pela câmara, e temos quase a certeza de que Mestre António Maneta, como era conhecido em toda a Ribeira Grande, foi o seu engenheiro e arquitecto.

Quem disse que “águas passadas não movem moinhos”?

A água que vinha para os lavadouros era captada no Poço da Mãe, que ficava (fica) ali perto; e depois de lavar roupa alimentava um moinho, mais abaixo, deixando nos rodizes o perfume do sabão Clarim e a espuma do Branco e Azul. Aliás, a represa teria sido feita por causa do moinho, e a ideia dos tanques ali construídos veio a calhar. Uma questão de aproveitamento da água que por ali passava. Além disso, os moradores daquela zona ficaram muito bem servidos. Estes lavadouros até chegaram a ser cobertos por um alpendre, que abrigava as lavadeiras do sol e da chuva.

Fazemos questão de registar uma curiosidade, ou lembrança, para os esquecidos: dali, da ponte de “Trás-os-Mosteiros”, como era vulgarmente conhecida, e daquele pequeno recinto arborizado, passando pelos tanques e indo ribeira acima, como já foi mencionado, estava o Poço da Mãe, onde a rapaziada se regalava a tomar banho no verão. Continuando, depois de passar o aqueduto conhecido por Muro de Água das Freiras, que outrora conduzia água da vala do Conde para o Mosteiro do Santo Nome de Jesus,  encontramos o Poço do Homem. Estes dois poços eram os mais populares e mais usados para as banhocas dos rapazes durante o verão, havendo, porém, muitos outros igualmente frequentados, onde se tomava boas banhocas até a polícia aparecer.

Esta coisa dos rapazes tomarem banho na ribeira, “in-couros”, não era do agrado dos pais. Por isso, muitos bons rapazinhos levavam uma coça ao chegar a casa, se os pais soubessem que eles se tinham banhado na ribeira. Mas se um deles trouxesse para casa três ou quatro eirós era uma alegria, porque daquilo se poderia ter uma excelente refeição.

Por falar em eirós, ou irós, como eram mais conhecidos, debaixo de brincadeira também chegámos a fazer com eles famosas petiscadas. Pelo menos uma recordamos. Os rapazes da rua acertavam entre si o que roubariam de suas casas para levar para a ribeira. Assim, uns encarregava-se do pão, outros de sal e pimenta, outros de fósforos, e alguém teria de trazer uma faca ou navalha. Chegando ao local combinado, um calçava as mãos com um par de piúgos, e metendo-as na água cercava uma pedra, enquanto outro a removia. Se fosse a pedra da sorte, lá estava um iró tentando enfiar-se na areia todo o custo. Mas o hábil caçador já o agarrara, sempre com o cuidado de manter a boca do animal longe da sua pele. É que, uma dentadinha daquele bicho cortaria um dedo sem problema nenhum. Mesmo com piúgos a “cobra de água” ainda deslizava pelas mãos do caçador. A rapidez da manobra consistia em pôr o animal numa área seca, ou, pelo menos, dominar-lhe a cabeça. Depois era a festa, com aquilo que se apanhava. Hoje temos quase a certeza que quanto mais “cholé” tivessem os piúgos, melhor seria a apanha dos irós.

Na primeira vez que participámos na caça ao eiró nenhum foi visto e muito menos apanhado. Talvez porque os piúgos usados na operação eram lavados e secados ao sol. Mas não deixou de ser um passatempo divertido. Na segunda, éramos quatro rapazes e apanhámos três. Fogueira acesa, cabeças fora, e peixes cortados em seis partes; todas elas aos pulos, mesmo barradas com sal e pimenta; e só pararam de saltar quando o fogo as dominou. Nesta petiscada faltou o vinho de cheiro, mas para isso não tínhamos nem dinheiro nem idade. A água da ribeira tomou conta da sede. Aquele manjar podia ter sido a pior porcaria que o nosso paladar experimentou. Mas naquela altura foi muito bom, ainda mais por ter sido temperado e saboreado com risos e gargalhadas.

O electricista José Alberto Calouro foi o caçador de eirós mais hábil que conhecemos, porque os apanhava de mergulho em água turva, com a maior facilidade, no poço do Paraíso, nos dias seguintes às enxurradas. Equipava-se debaixo da ponte e aparecia em cima do rochedo da queda de água em calções de banho; calçava as mãos com um par de piúgos; olhava para cima e ao redor, para certificar-se que estava sendo observado. Se sim, em artístico salto mergulhava no poço, deixando de ser visto por cerca de um minuto. Depois deste tempo voltava a aparecer, lá em baixo, segurando nas mãos uma cobra-viva enquanto saía da água. Ele lá conhecia exactamente o local daquela piscina natural onde os irós se refugiavam. Estamos a falar de uma época anterior a 1980.

A partir deste ano foram introduzidas trutas na ribeira, e por causa delas recordamos com saudade um dia de pesca desportiva na companhia do nosso irmão José Francisco, em 1983, em que apanhámos cerca de uma dúzia de formosos peixes, entre o Salto do Cabrito e a Fajã do Redondo.

Por aqui ficamos porque acabamos de notar que o texto já vai longe. Se Deus não acode teríamos chegado às Lombadas! Sem ter intenção de passar acima do Poço do Homem, chegámos à Luz Velha sem querer. É isto que acontece quando a gente se apercebe que somos maus jogadores de futebol: abandonamos o estádio para ir tomar banho na ribeira, ou apanhar irós. Haja saúde!

 

Foram rapazes da rua

Atletas e valentões.

Que até enguia crua

Cozinharam sem fogões!

 

De tanto jogar à bola,

De segunda a sexta-feira,

Aquilo que os consola

É andar pela ribeira.