Esta famosa frase, dita por Hamlet durante o monólogo da primeira cena do terceiro acto na peça homónima de William Shakespeare, tem servido de mote para muitas produções literárias, no entanto e em relação aos conceitos ou opiniões, eles só se poderão considerar de utilidade prática quando se torna transparente para o comum dos mortais que «a cara diz com a careta», sob pena de estarmos a confundir o todo com a parte.
Vem este arrazoado a propósito do conceito de esquerda, sobre o qual nos últimos tempos, nomeadamente após o chumbo do Orçamento de Estado para 2022, muitos se têm pronunciado considerando não ter existido convergência de esquerda para o aprovar, apesar de outros considerarem que era um Orçamento de esquerda como nunca houve outro igual, mas que as divergências na esquerda não produziram os resultados esperados.
Será então caso para nos questionarmos sobre: afinal o que isso de ser de esquerda? Será um posicionamento político, uma declaração de intenções ou uma atitude momentânea para agradar a outros?
Poderá o cidadão comum considerar de esquerda quem luta por um Serviço Nacional de Saúde de qualidade, universal, geral e gratuito, e ao mesmo tempo considerar de esquerda quem por acção ou omissão contribui para a debandada de bons profissionais para o sector privado ou mesmo para a emigração, que promove o negócio com a saúde dos portugueses através das parcerias, em vez de financiar adequadamente o SNS, de construir mais Hospitais e Centros de Saúde e apostar nos CSP, ou seja, na prevenção da doença?
Poderá o cidadão comum considerar de esquerda quem luta pela Educação como um direito fundamental e uma condição determinante para a emancipação individual e colectiva da juventude, da população em geral e dos trabalhadores em particular e condição para o desenvolvimento económico e social do país, cuja concretização é inseparável da existência de uma Escola Pública, de qualidade, para todos, inclusiva e gratuita, e considerar também de esquerda quem continuamente lhe coloca obstáculos ao seu desenvolvimento?
Será de esquerda quem considera a luta contra a corrupção como forma de defesa fundamental da democracia e do Estado de Direito Democrático e a convicção da necessidade de aperfeiçoar os mecanismos legislativos existentes e sobretudo de dotar as autoridades judiciárias e a investigação criminal com os meios necessários para garantir a eficácia das suas missões, ao mesmo tempo que considera de esquerda quem conduz à negação dos meios indispensáveis à investigação de crimes de corrupção e fraudes?
Poderá o cidadão comum considerar de esquerda quem luta pela valorização dos salários e do trabalho com direitos e ao mesmo tempo considerar de esquerda quem obedece aos ditames do grande poder económico que generaliza a precariedade e os despedimentos colectivos e pretende deixar em banho-maria o subsídio de desemprego e as condições de a ele aceder?
Poderá o cidadão comum considerar de esquerda quem luta pelo direito a uma habitação condigna e ao mesmo tempo considerar de esquerda quem facilita os despejos, fomenta a especulação e transforma os centros históricos em locais para condomínios de luxo?
Será de esquerda tanto quem luta por controlar o preço dos combustíveis como quem protege os interesses das petrolíferas ou quem luta por um serviço público de cultura e quem lhe consagra no Orçamento de Estado para 2022 uma irrisória verba?
Em resumo, fica-nos uma advertência de que «nem tudo o que parece é» e o «ser ou não ser» são conceitos que devem ser pensados maduramente, no sentido de olharmos mais atentamente para os conteúdos do que para os rótulos, a fim de não cairmos no logro.