É verdade. O tema não é novo, mas para o compreendermos – e vermos respondida a questão – necessitamos de recuar mais de um século na história, iniciando a nossa viagem no tempo pelo discurso de Fontes Pereira de Melo, na sessão de 15 de janeiro de 1849:
“Quero o progresso material do país; quero estradas; e não seria um grande progresso o termos estradas? … Nós que não podemos dar dois passos, sem que pelo mau estado em que estão os caminhos tropecem os cavalos, e nós quebremos a cabeça!”
O excerto do mesmo revela-nos, de forma inequívoca, a necessidade de modernização do país em termos de transportes e comunicações, modernização essa que muito se lhe deve, no âmbito da política do fontismo no seio daquele período compreendido entre 1850 e 1880 que, entre outras coisas, ficara marcado pelo desenvolvimento de infraestruturas – a Regeneração. Foi neste contexto – em que Fontes Pereira de Melo era ministro das Obras Públicas – que se deu a introdução do caminho de ferro em Portugal, a qual se caracterizou pela morosidade. No dia 28 de outubro de 1856, inaugurou-se o troço de via-férrea entre Lisboa e o Carregado, no entanto, a ideia de ligar a capital portuguesa à cidade do Porto, sob a forma de caminho de ferro, era bem mais antiga… Em boa verdade, a 8 de fevereiro de 1846, esta já havia sido discutida nas Cortes e, antes deste acontecimento, a 10 de outubro de 1844, Benjamim de Oliveira já idealizava esta possibilidade, prevendo, também, a edificação de estações ferroviárias nas cidades de Santarém, Leiria, Coimbra e Aveiro. Contudo, numa época em que as prioridades se debruçaram, originalmente, na construção da linha ferroviária do Leste, teríamos de aguardar cerca de 20 anos para que a Linha do Norte ficasse “completa”, unindo as cidades de Lisboa e Vila Nova de Gaia. Mas havia um senão, como nos recorda Frederico Abragão, em 1952, já que “para que essa ligação fosse efectiva e prática, necessário se tornava transpor o fosso formidável daquele rio”, assim como definir a localização da nova estação terminal ferroviária na margem direita do rio Douro. Não foi um processo fácil. Como nos sintetiza Manuel de Sousa (2021), a transposição do rio Douro por pontes era difícil, devido a fatores naturais como o “leito profundo, [a] corrente muito forte no inverno e [as] cheias frequentes”.
A partir do ano de 1860, é colocado em prática o projeto aprovado pelo Governo Português denominado de “Traçado de Campanhã” (ou “Traçado do Areinho”), o qual previa a construção de uma ponte ferroviária metálica à cota baixa, a “cerca de 27 m acima do nível da maré baixa”, como refere Rui Alves (2015), bem como a localização da nova estação na freguesia de Campanhã, daí o seu nome. Com uma extensão de cerca de 5 km, este traçado tinha o seu início na estação ferroviária das Devesas, seguindo em direção a General Torres e, deste ponto, em túnel; prolongar-se-ia até ao lugar do Eirado, na freguesia de Oliveira do Douro, onde terminaria. Deste último lugar, rumaria em direção ao rio até um outro – o do Areinho – vencendo, pelo caminho, o grande desnível do Vale de Quebrantões. A ponte metálica erguer-se-ia no mesmo local onde, hoje, se encontra uma outra: a Ponte do Freixo. Na margem direita do rio, o caminho de ferro direcionar-se-ia para a nova estação ferroviária de Campanhã, situada a “meia encosta”. De facto, em 1863 e 1864, a empreitada já se tinha iniciado em Vila Nova de Gaia quer com a construção do túnel, quer com os paredões “que suportariam o início do tabuleiro”, como informa Luís Almeida (1985), todavia as desvantagens eram superiores às vantagens… Relativamente às primeiras, as discussões acesas centravam-se no afastamento da nova estação de Campanhã com o centro do Porto (cerca de 2 km) e o grande investimento financeiro que isso acarretava, com a conceção de vias de comunicação, que teriam, ainda, de suprir o próprio relevo, muitas vezes com inclinações superiores a 10%; a alteração do projeto, ou mesmo a sua anulação, traduzir-se-ia em grandes prejuízos para o Governo Português e a Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses, existindo, ainda, a própria questão das cheias do rio Douro, que muitos entraves colocavam à execução e à permanência desse traçado.
Mas, qual terá sido, então, a solução encontrada? E o que é feito desse túnel na margem esquerda?
Continua…
* Fábio Soares é natural da freguesia de Mafamude, em Vila Nova de Gaia, e residente na freguesia de Oliveira do Douro, também no mesmo concelho. É licenciado em Arqueologia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e pós-graduado na mesma área pela Universidade do Minho. Participou em diversos projetos de investigação em Arqueologia e foi o responsável pela organização e inauguração da Sala Museu Silva Leal, no Instituto Profissional do Terço, no Porto. Hoje, além de trabalhar na área do ensino, é Sócio-Gerente da empresa Fábio Soares – Serviços de Arqueologia que, entre outros serviços, se dedica à divulgação do património cultural.
Rubrica “Memórias & Identidades”
Apresentação
A rubrica “Memórias & Identidades” trata-se de uma iniciativa cultural promovida mensalmente pelo Jornal Audiência, através do contributo científico do Arqueólogo Fábio Soares, que tem como objetivo a reprodução e a divulgação da história do património cultural do concelho de Vila Nova de Gaia, sob uma perspetiva única e diferenciadora: a recolha escrita e oral de testemunhos de pessoas anónimas, mas que, por guardarem as memórias e estórias dos lugares, imóveis, monumentos e afins, constituem-se como testemunhos válidos e imprescindíveis na (re)construção da história local.
Na “Memórias & Identidades” partilhamos o que de bom o património tem e damos voz a quem o conhece bem!