DON JUAN E A MORTE

“E que o devedor não pense / que Deus castigo não traga; / o prazo sempre se vence / e a conta sempre se paga”. (Tirso de Molina)

O título desta crónica poderia ser perfeitamente o título de mais uma das centenas de obras literárias dedicadas a esta figura que nascida na península ibérica atravessou fronteiras para converter-se num mito universal. Junto às muitas tradições do 1 de novembro, e o dia de Todos os Santos há uma da qual ainda fui testemunha na minha infância, estou a me referir a representação teatral da peça Don Juan Tenorio, de José Zorrilla, autor espanhol do romantismo peninsular.

O tema de Don Juan, junto à tradição literária do Doutor Fausto constituem os dois grandes pilares de uma tradição europeia rica em produção não apenas na literatura, mas também na ópera, na poesia lírica e no cinema. Alcalá de Henares, a cidade berço de Miguel de Cervantes, com as suas representações desta peça, mantém esta tradição. Don Juan, um dos poucos mitos espanhóis universais, está ligado desde o século passado à data da morte, sendo Don Juan Tenorio de Zorrilla a única peça espanhola que durante décadas foi apresentada todos os anos e na mesma data fixa.

A cidade de Alcalá de Henares, através da Fundação Colegio del Rey, tem se encarregado de manter e recuperar esta tradição em Espanha nos últimos anos, que se tornou um verdadeiro cerimonial em alguns países da América Latina, fundamentalmente no México. Na representação assistimos a uma celebração religiosa/pagã que, no entanto, está muito longe de outras tradições que se realizavam nas vésperas daquele dia. Cerimónias de recolhimento, rituais de silêncio e luto, ida aos cemitérios e outros.

“Na peça Don Juan Tenorio, na noite de 31 de outubro, assistimos a uma história de amor que culmina, no seu acto final, no Dia de Todos os Santos; daí que esta seja uma das razões pelas quais é comum que muitos teatros do nosso país realizem uma revisão teatral deste clássico da literatura. Porém, na origem desta tradição está uma disparidade de critérios já que outras teorias sugerem, sem confirmação oficial, que a obra foi escrita no dia 1 de novembro e daí a data para ser executada todos os anos. é que ao longo da obra são mostradas toda uma série de recursos dramáticos relacionados com a morte, as formas fantasmagóricas, a redenção ou a salvação da alma que bem poderiam estar associadas ao dia dos mortos no nosso país.

Também no cinema, a importância da peça de Zorrilla ficou registada pelo facto de ter sido o argumento escolhido para o primeiro filme de ficção do continente latino-americano e em espanhol, realizado em 1898 /1899 por Salvador Toscano. A popularidade foi tanta que em 1908 surgiu uma nova versão, esta vez realizada por Ricardo de Baños e Alberto Marro, e mais tarde novamente em 1921. O tema de Don Juan aparece ligado aos temas de amor, dinheiro, inconstância, traição, destino, fatalidade, paternidade, velhice, fidelidade, amizade, temor, redenção e morte com certeza.

No Dictionaire de Don Juan de Pierre Brunel, Edição de Bouquins 1999, o autor reúne mais de 100 colaboradores que escreveram 300 notas dedicadas a escritores, músicos, pintores, personagens, lugares, temas, referências que nos permitem acompanhar todas as metamorfoses de Don Juan. Neste livro não contam algumas referências às obras portuguesas sobre o tema, como a peça de António Patrício, Don Juan e a Máscara, Don Juan o Jardim das Delicias (**) do amigo açoriano Norberto Avila, nem também, a uma das últimas obras de José Saramago Don Giovanni ou O dissoluto absolvido de 2005.  

No Porto na década dos 80 como espectador assisti à representação desta peça pela desaparecida companhia de teatro Os Comediantes, Don Juan Tenorio, encenada por Moncho Rodriguez em 1985, com tradução do dramaturgo Norberto Ávila, no teatro d´Os Modestos frente ao Jornal de Notícias.  Mais tarde numa curiosa e singular versão para um teatro de papel e de sombras, O Convidado de Pedra, a partir de O enganador de Sevilha, de Tirso de Molina com encenação de Marcelo Lafontana, numa co-produção do TNSJ/Teatro de Formas Animadas de Vila do Conde no ano de 2006. Muitas são as tradições ligadas à morte e ao seu culto, se destaca nesse sentido um país como o México, onde as tradições europeias se aliaram de uma forma quase natural ao culto dos mortos que existiam na civilização pré-colombiana.

Enquanto na Europa se adornam as sepulturas com crisântemos (em grego flor de ouro) flor de origem asiática de notável significado na cultura chinesa e do Japão, os mexicanos decoram os seus altares dedicados aos defuntos com a flor de Cempasúchil que graça a sua cor e aroma é um dos elementos mais representativos nas oferendas para os mortos.Hoje, 30 de outubro, quando escrevo este texto de manhã, já meu cruzei com uma bruxinha, é Halloween!