A CIDADE SEM XERIFE

Mais um ano de “férias cá dentro”. Enquanto houver vida e saúde, tudo bem. Nunca é demais conhecer melhor aquilo que é nosso, o meio que nos rodeia. Todos sabemos que estas tais “férias cá dentro” são mais caras do que as férias lá fóra. Mas é necessário apoiar a economia local, e enquanto este drama da pandemia nos ameaçar há que ter todo o cuidado, vivendo o dia-a-dia em segurança. As férias já lá vão. Ficaram as recordações. Este ano o marco central foi o Estado do Maine, zona litoral. Coisa mais linda! Mas o custo de três dias dava para passar uma semana no México, nas praias de Cancún, com tudo incluído! Mas, pronto! Está feito. Gosto do Norte. Ar mais fresco e saudável. E quando ao Norte me dirijo, em busca de aventura, lembro-me sempre da história da Cidade sem Xerife, que passo a contar:

José Francisco da Ponte sempre teve familiares na América do Norte, tanto do lado do pai, como do lado da mãe. Tios que atravessaram o Atlântico nos fins do século dezanove e princípios do século vinte, que chegando ao Novo Mundo lançaram sementes à terra. Criaram raízes, floriram e deram os seus frutos, que vieram a ser os primos americanos, de primeiro grau, do José da Ponte. Alguns mais velhos do que ele, outros rondando a mesma idade, e ainda outros um pouco mais novos, como foi o caso de um tal Alfredo de Melo Botelho, sarjento americano que morreu na guerra da Coreia, de cuja memória resta o nome do contador desta história, porque José da Ponte tinha de dar a um filho o mesmo nome do heróico primo da América.

Vivendo na Ribeira Grande, São Miguel, Açores, já sendo um homem maduro e pai de filhos, José da Ponte recebera uns sapatatos americanos de presente, que chegaram à ilha numa saca de roupa. Calçou-os durante longos anos. Duas décadas, sem exagero. Solas e protectores metálicos indispensáveis na manutenção anual, tinta e a graxa lustrosa aplicadas uma vez por semana. Por causa dos poucos filmes que havia visto na sua juventude, recordava que o melhor tinha por título “Vinte Anos Depois”. Tratava-se de um Western que descrevia a história de um cowboy, que fora preso inocentemente e que, quando saiu da cadeia fez uma terrível vingança. Talvez tivesse visto mais uma meia dúzia de filmes deste género, mas este era o que mais recordava. Quando se falava em construções fortes e seguras na ilha de São Miguel, José da Ponte lembrava que as casas da América eram feitas de madeira, escapando, claro está, os arranha-céus de Nova Iorque e de outras cidades grandes. Era esta a sua visão da América, sem nunca ter saído de São Miguel, pelos filmes que viu e por aquilo que lhe contavam. Também defendia a opinião do Canadá ser mais moderno e que, graças ao Dr. António Oliveira Salazar, a saída autorizada de muita gente dos Açores para aquele país beneficiou muitas famílias, e a própria região, que se sentia sufocada de população sem haver terra para todos.

Aos setenta anos de idade José da Ponte visitou a América do Norte, acompanhado pela filha mais velha, genro e netos. Não teve outro remédio. Era viuvo e vivia com eles desde que passou à reforma. Até àquela ocasião, nunca lhe havia passado pela cabeça realizar tal viagem. Saíram de São Miguel com destino ao Canadá. Passaram uns dias na área de Toronto, onde morava seu irmão mais novo. Depois seguiram para Montreal, onde o genro tinha oito irmãos a viver, para além de sua mãe. Tudo de acordo com os planos desta viagem, depois de cerca de quinze dias no Canadá, um pulo aos Estados Unidos, porque em Fall River vivia, e ainda vive, um filho do José da Ponte. Já, agora, uma ótima oportunidade para conhecer os primos americanos.

No seguimento da história, às zero horas de 1 de Agosto de 1992, uma carrinha de doze passageiros saiu de Fall River, Estado de Massachusetts, com destino ao Canadá, transportando dois casais, debaixo de forte chuva, numa imensa escuridão. Às sete em ponto, estavam na cidade de Montreal, à porta da casa onde se alojaram os visitantes. Abraços, beijos, outros cumprimentos, descanso de uma hora, com pequeno-almoço apreciado e agradecido.

Às oito iniciou-se o regresso a Fall River, na carrinha de doze passageiros, que agora transportava dez. Já fazia sol, e nem parecia que havia chovido toda a noite. As lindas paisagens do estado de Vermont eram deslumbrantes, como sempre são em dias de boa visibilidade. Formosos montes, maravilhosos vales, graciosas lagoas e lindas ribeiras. A estrada 89 não tem estações de serviço. Poucas e muito distânciadas entre si são as saídas daquela via, e dela poucas povoações se avista a curta distância.

Quando as barrigas e bexigas deram sinal, percebeu-se ter chegado à hora do almoço. Era conveniente uma refeição ligeira. Não aparecendo sombras de Mc. Donald’s ou Burger King, resolveram sair da auto-estrada, seguindo uma sinalização que desapareceu por completo, fazendo com que a localidade fosse encontrada depois de percorridas umas cinco milhas. Lugar fantástico. Nunca se soube se era cidade, vila ou aldeia. Mas parecia sim, uma cidadezinha do Far-West. Cem por cento “country”, como nos dias de hoje se diria. E entrando nela, o veículo depressa se habituou ao seu ritmo. Lento como os movimentos ilhéus açorianos. Uma paz, um socego, um “temos tempo”. José da Ponte, sentado perto da janela apreciava tudo o que via. Main Street. Rua direita. Sim, queremos ficar na Rua Direita, porque nela é que se concentram todos os negócios principais de qualquer aglomerado populacional. Sim, ali estavam os correios à esquerda, um banco à direita, uma igreja ali, mais à frente. Ainda por cima, mais esta: um bar/restaurante, tipo Salon, das cidades dos cowboys. Igualzinho! Ali foram almoçar, porque pareceu ser mesmo o único sítio que poderiam encontrar comida. Lá dentro, umas quatro mesas com homens de meia-idade a beber e a jogar. Só havia lugar ao balcão. Sentaram-se. Comida escolhida. Sandes. Da ementa não sobressaía outra coisa. Sandes de carne assada, o que os americanos chamam de roast-beef, e batata frita. Começaram a comer normalmente, mas quando alguém alertou o facto da carne estar vermelha, meia ensanguentada, a maioria parou, fazendo a fome morrer com a batata frita. O mexicano que acompanhava o grupo teimava a dizer que assim é que se devia comer, assim é que a carne tinha toda a sua proteína, e outras coisas mais; e sendo um grande apreciador de roast-beef, comeu tudo o que teve na vontade,  e guardou os restos dos outros para se saciar nos dias seguintes. Era familiarizado com aquele tipo de comida. Pensando bem, com tudo aquilo a que já nos habituamos, não estava nada mau. Hoje papamos qualquer roast-beef por prazer, num abrir e fechar de olhos, e já tivemos oportunidade de reparar que as próprias gentes de São Miguel também já mudaram de opinião neste assunto de carnes demasiadamente cozinhadas.

José da Ponte mirava tudo. Apreciava até os movimentos das pessoas, e guardou recordações de tudo aquilo que viu. Já no lado de fora, quando a caravana se aprontava para seguir viagem, naquela Rua Direita, onde só se viu pouco mais de meia-dúzia de automóveis estacionados, apareceu um homem em cima de um cavalo, usando chapéu e botas de cowboy.

A viagem continuou, e o resto dela dá para fazer outras estórias. Para acabar com esta, realça-se que José da Ponte até ao fim da sua vida nunca se esqueceu desta localidade. Queria tanto saber o seu nome, mas ninguém se informou a este respeito. Nem mesmo o número da saída da auto-estrada foi memorizado. Por isso, todas as vezes que a ela se referia, José da Ponte chamava-a de “Cidade sem Xerife”. Pois, é! Nos filmes do John Wane, ou do Kirk Douglas, e de outros do género, sempre aparecia o Xerife na cidade. Mas esta localidade de Vermont era pacata demais. Se não necessitava um policial, muito menos de um xerife!

Já muitas e muitas vezes temos atravessado o Estado de Vermont, e grande é a conta de nos temos enfiado em suas pequenas localidades. Mas não há maneiras de re-encontrar a tal Cidade sem Xerife. É como outra localidade de Vermont, que aparece nos filmes de Natal do Hallmark Channel, que tem por nome Evergreen. Na realidade, o Estado tem, pelo menos, quatro sítios com este nome, mas nenhum deles é povoado. Tem também três cascatas com o nome de Moss Glen Falls, afastadas entre si dezenas de milhas. Já conhecemos uma, que de acordo com algumas opiniões é a mais bela. Temos intenção de visitar as outras duas. Qualquer dia, sem ser hoje. Quando isso acontecer havemos de tentar, novamente, encontrar a velha Cidade sem Xerife, que José da Ponte guardou na memória como recordação da América.

 

Ao som das nossas violas

Cantam-se belas canções.

Um xerife sem pistolas

Não precisa munições.

 

Muito eu já viajei,

Tantas vezes comi bife.

Ainda não encontrei

A cidade sem xerife.