O nosso convidado de hoje, o ator Mário Santos, nasceu em Angola em 1973, na cidade de Gabela, reside em Gaia e completou a sua formação em 1995, na Academia Contemporânea do Espetáculo, no Porto. Nesse mesmo estreou-se no universo audiovisual como ator-assistente no programa “Praça da Alegria”, da RTP, onde se manteve durante cinco anos. Paralelamente, foi um dos membros fundadores do coletivo portuense Teatro Bruto a que esteve ligado até finais de 2007.
Freelancer desde então, tem integrado o elenco de inúmeros espetáculos para as mais diversas entidades produtoras, o último dos quais teve estreia em setembro passado no Teatro Nacional São João (“A Morte de Danton”), percorrendo agora diversos palcos de norte a sul do país, com passagem também pelo Teatro Húngaro de Cluj (Roménia). O público reconhece-o das novelas “A Lenda da Garça” (RTP) e “Coração d’Ouro” (SIC) e das séries “Os Andrades”, “Garrett” e “Ora Viva”, todas da estação pública de televisão. A dobragem de filmes e séries tem também preenchido boa parte da sua carreira. Hoje levanta a sua voz para uma reflexão sobre o estado da arte teatral profissional em Gaia.
Na sua opinião, o que falta para que a oferta de espetáculos de teatro profissional tenha uma maior expressão em Gaia?
Respondendo muito diretamente: falta investimento, vontade e estratégia. O teatro profissional, como sabemos é uma arte cara que precisa de fortes investimentos (mesmo que estejamos a falar de monólogos), por isso, para termos em Gaia oferta de teatro profissional de qualidade e em quantidade, seja em produções próprias produzidas por estruturas profissionais do município ou sediadas no município, seja em acolhimento de espetáculos produzidos fora, nada se faz sem investimento. E como a sala que temos em Gaia melhor estruturada e melhor equipada é sem dúvida o Auditório Municipal, estamos obviamente a falar de investimento do Município. Reafirmo que sei que o investimento em teatro profissional é elevado mas, havendo vontade em tornar esta arte cénica num meio de juntar e educar os seus munícipes, o retorno do investimento, isto é, os dividendos que se vão retirar mais à frente podem ser extraordinários. Afinal de contas estamos a falar de investimento e não de “esbanjamento”. Daí ter mencionado a estratégia como um dos pilares. Com a estratégia certa podemos catapultar o investimento para níveis de retorno no mínimo muito interessantes. E não falo só em retorno financeiro. A educação e cultura são bens incomensuráveis. Cidadãos instruídos e cultos são, por norma, cidadãos mais aptos ao exercício pleno da cidadania participativa.
Como se explica então que o financiamento público às artes ainda seja olhado de lado por alguns autarcas e por boa parte da nossa sociedade?
Porque a cultura ainda é vista como um bem dispensável. Uma espécie de luxo que se pode ter em tempos de abundância mas que é o primeiro a ser cortado em tempos de crise. Assistimos a isso mesmo, ainda há pouco tempo, aquando da intervenção da Troika em Portugal. A cultura em todas as suas formas foi a primeira a sofrer os cortes do Estado e das famílias. E isto deve-se, acho eu, e antes de mais, ao aspeto primário da sobrevivência individual e que está ligado ao lado económico das nossas famílias: primeiro comer depois sonhar – uso aqui a palavra sonhar num sentido muito largo que pode significar o que cada um entende por cultura e o que ela suscita à sua imaginação. Temos salários demasiado baixos e impostos demasiado altos, o que retira às pessoas a capacidade para investirem em cultura. E para além disso a cultura não tem o devido protagonismo nas nossas escolas – nós não aprendemos a gostar e a analisar cultura, portanto, não podemos olhar para a cultura como um bem essencial à nossa existência em sociedade. E, por fim, sejamos francos, ainda temos o estigma de que quem precisa de apoio para existir é um subsidio-dependente, um parasita que esbanja os dinheiros públicos. É triste mas é assim. E isto é um problema que vem do défice de protagonismo da cultura nas nossas escolas de que falava há pouco. A maior parte das pessoas, meros cidadãos-comuns ou cidadãos-políticos, não consegue ver o apoio às artes como um investimento na construção de sociedades mais justas, livres e evoluídas. E, portanto, o apoio às artes continua a ser olhado de lado. E, por isso, a reivindicação do tal um por cento para a cultura continua a ser uma miragem – mas temos de continuar a lutar por essa reivindicação.
E a produção, a investigação e o desenvolvimento artísticos não poderão ser sustentáveis sem o apoio financeiro dos organismos públicos?
Adoraria que isso fosse possível. Mas não temos massa crítica suficiente, somos um país demasiado pequeno. A menos que fizéssemos só os chamados espetáculos comerciais com atores das novelas ou outros colunáveis que muitas vezes nem atores são mas que chamam público (e mesmo esse tipo de espetáculo por vezes dá prejuízo) – atenção que não estou a criticar o género de espetáculos comerciais, eles são necessários e úteis, mas temos de ter variedade. Desculpem-me a analogia, mas seria como comer salsichas com batatas fritas todos os dias, que, por muito que se goste, acaba por enjoar. Por isso, como desejamos ter a possibilidade de escolher o que queremos e do que gostamos, e como não temos massa crítica suficiente para as artes serem auto sustentáveis, os apoios financeiros dos organismos públicos são absolutamente essenciais. E sinceramente acho mesmo que a expressão apoio às artes devia ser abolida de vez dos nossos vocabulários e substituída pela expressão investimento nas artes. Quando isso acontecer estaremos prontos para aceitar a cultura como um bem essencial a uma sociedade moderna e evoluída. Permita-me também referir aqui a lei de mecenato. Se esta lei, que existe, mas que tem pouca expressão, fosse alterada e atribuísse reais benefícios aos investidores mecenas poderíamos talvez alcançar a desejada meta do um por cento para a cultura.
Face à escassez de oferta artística, que crie massa crítica, até que ponto a escola pode contribuir para a formação de públicos e criação de hábitos culturais?
Bom, está mais que estudado e provado que o ensino artístico aumenta exponencialmente as capacidades intelectuais e emocionais das pessoas. Não sou eu que o digo só para parecer bonito ou para “puxar a brasa à minha sardinha”. Basta digitar na Internet algo como “a importância do ensino artístico” e o material que aparece é vasto e interessantíssimo, desde sites de organismos oficiais e públicos a artigos publicados em sites e blogs privados ou pessoais. O ensino das artes desenvolve, entre muitas outras coisas, a comunicação, a capacidade de socialização, o controlo emocional, o pensamento criativo individual, e até o pensamento estrutural e abstrato tão úteis ao ensino das duas disciplinas nucleares do nosso sistema de ensino: o Português e a Matemática. Portanto, só por isto, já seria mais do que benéfico que as nossas escolas tivessem um sistema de ensino baseado na aprendizagem e/ou na experimentação de artes. Mas é melhor não me alongar muito nesta área pois não sou pedagogo nem pretendo sê-lo, no entanto é assunto ao qual devíamos, como sociedade, dar algum relevo, especialmente nesta altura em que se discute a autonomia curricular das escolas e a gestão municipal dos agrupamentos escolares.Agora, depois de todo este pequeno preâmbulo, e voltando ao assunto concreto da pergunta inicial, o ensino baseado nas artes cria nos alunos o hábito do contacto com as artes e com isso potencia o consumo de cultura em todas as suas formas, incluindo o teatro, o que contribui para a criação de públicos e consequente aumento de massa crítica, que ajudará, também, a melhorar a qualidade dos espetáculos a produzir – tal como acontece em qualquer área. Pessoas com instrução em determinada área exigem produtos de melhor qualidade, e produtos de melhor qualidade aumentam os nichos de mercado onde podem atuar. É a chamada “bola de neve” que depois de começar a rolar vai aumentando cada vez mais. Daí eu continuar a dizer que se devia de deixar de usar a expressão “apoio às artes” e adotar definitivamente a expressão “investimento nas artes”.
Em conclusão: o aumento da oferta artística em Gaia passa por uma partilha solidária de responsabilidades entre a autarquia, a escola e os agentes culturais.
Penso que só pode ser esse o caminho. Eu, assim como a maioria da população, defendo uma descentralização de poderes, logo acredito que as “forças locais” têm uma enorme responsabilidade na dinamização local em todas as áreas incluindo na área cultural. Claro que o Estado Central não se pode demitir das suas responsabilidades e simplesmente entregar o poder às autarquias sem criar as devidas condições, principalmente financeiras, para isso. Mas de facto, como todos sabemos, o poder central está demasiado longe e quase sempre desligado das necessidades específicas de cada região; por isso, só com a partilha de responsabilidades entre a autarquia, a escola e os diversos agentes culturais, poderemos construir uma oferta cultural de relevo e pensada para as especificidades da população de Gaia. E isto também é extremamente importante: não nos interessa simplesmente aumentar a oferta cultural sem se pensar no público a que se destina. A formação de públicos demora muito tempo e se não for devidamente pensada pode “levar eternidades” a dar os seus frutos.