A ONDA AVASSALADORA QUE ATINGIU A GOVERNAÇÃO

Um mês depois do conhecido e debatido escândalo de corrupção no governo ter contribuído para derrubar o executivo de António Costa, o Primeiro-Ministro apresentou a sua demissão no dia 7 de novembro a Marcelo Rebelo de Sousa, que a aceitou de imediato e, consecutivamente, decidiu dissolver o parlamento e marcar eleições legislativas antecipadas para 10 de março.A gravidade, natureza e consequências dos recentes acontecimentos no plano político-institucional não iludem nem anulam os reais problemas que afectam a vida dos trabalhadores e da população nacional nem reduzem a urgência de lhes dar resposta e solução adequada.

A demissão do Primeiro-Ministro, precipitada pelas recentes investigações judiciais envolvendo o actual Governo, não é separável das opções e da política de direita, do agravamento dos problemas e das desigualdades e injustiças, causando crescente descontentamento expresso na dimensão da luta de vários sectores da vida social e política nos últimos tempos.

O estado a que chegou o regime democrático fundado com a Revolução do 25 de Abril e com a Constituição de 1976, mostra claramente que nunca como hoje a confiança dos portugueses nas instituições atingiu um ponto tão crítico ou mesmo de ruptura, mas é justamente em tempos como este que estamos a viver que o escrutínio jornalístico é fundamental para informar e esclarecer os cidadãos, cumprindo-se assim uma das razões de ser da democracia, ou seja, impedir que algum dos três grandes poderes do Estado, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário se sobreponha ao outro ou que o poder económico continue a dominar o poder político como tem acontecido até aos dias de hoje.

Ainda não tínhamos conseguido interiorizar totalmente o grave acontecimento da corrupção no meio governativo e de novo fomos confrontados desta vez com o chamado caso das Gémeas Luso Brasileiras por alegado favorecimento proporcionado às mesmas num tratamento com o medicamento Zolgensma, valorizado em 4 milhões de euros, tratamento esse concedido através de suposta cunha do Presidente da República, a pedido do seu filho Nuno Rebelo de Sousa, dirigida ao Hospital de Santa Maria.

A partir daqui, tudo o que de mais negativo pode existir numa governação que se exige seja transparente e honesta, começou a surgir na comunicação social através de entrevistas efectuadas a algumas personalidades que pelas suas funções estão ou estiveram ligadas ao acontecimento, nomeadamente responsáveis governamentais da tutela e das instituições hospitalares, mas que de uma forma ou de outra se foram descartando de responsabilidades por dito esquecimento do sucedido na sua área profissional.

As trapalhadas foram surgindo em catadupa, tendo como figura de proa o próprio Presidente da República dos afectos que andando de Herodes para Pilatos ainda não se livrou de ter contribuído para manter a cunha como instituição nacional.

Deve fazer parte do comportamento ético de qualquer político governante que aos seus familiares directos, políticos ou não políticos, seja vedado utilizar  contacto para favorecimento próprio e  as fronteiras de separação de actividade entre os dois devem estar bem definidas e legalmente tratadas.

Marcelo Rebelo de Sousa deveria ter respondido de imediato ao filho Nuno Rebelo de Sousa que por ele ser filho do Presidente da República, não podia usar a Presidência para obter o referido favor, não só para defender a Presidência de uma suspeita, mas também para defender como exemplo a generalidade das instituições democráticas da acusação de se submeterem aos interesses particulares de alguém  privilegiado que tem acesso facilitado aos mandantes deste País.

Num tempo em que são do domínio público as contínuas falhas no SNS, por falta de meios humanos e materiais que obrigam os utentes a longas filas de espera por uma consulta ou intervenção cirúrgica e em que um milhão e seiscentos mil não possuem médico de família, a tentativa de favorecimento ou tráfico de influências constitui uma clamorosa injustiça.

A Inspeção-Geral das Atividades em Saúde, IGAS, abriu uma auditoria ao tratamento das gémeas no Hospital de Santa Maria, até porque existem objecções sobre a viabilidade do tratamento com Zolgensma, devido à falta de evidência científica suficiente, por muito que se compreenda o mérito de ajudar duas bebés doentes. Entretanto, o Ministério Público está a tentar apurar se houve algum tipo de favorecimento no caso e se houve, quem interferiu no sentido de acelerar o processo de tratamento das gémeas luso-brasileiras no Serviço Nacional de Saúde.

Acresce o facto e de acordo com o advogado Wilson Bicalho, a família tentou obter o medicamento mais caro do mundo no Brasil, levou o caso a um tribunal que não decidiu a seu favor e até organizou uma angariação de fundos para tentar fazer o tratamento nos Estados Unidos, que obteve apenas 300 mil euros, muito aquém dos quatro milhões necessários.

Os pais, possivelmente orientados pelo caso da bebé Matilde, que recebeu o Zolgensma no Serviço Nacional de Saúde-SNS, viram em Portugal uma nova oportunidade para a suas filhas serem tratadas com sucesso.

Como consideração final e face aos acontecimentos relatados, fica-nos a percepção de que a autoridade presidencial ficou claramente diminuída, nomeadamente no que concerne à sua função constitucional consagrada no artigo 120º da Constituição que o incumbe de garantir o regular funcionamento das institições democráticas.