Natural de Oliveira de Azeméis, Abílio Guimarães dividiu a sua vida em duas grandes paixões: a pintura e o ensino. Em conversa com o AUDIÊNCIA, o pintor falou sobre o seu percurso artístico e escolar, as suas pinturas e o futuro.
Quem é Abílio Guimarães?
Sou um rapaz muitos simples. Sou natural de Oliveira de Azeméis. Com 4 anos, tive uma tragédia enorme onde podia ter perdido a vida. Cai a um poço de 19 metros de altura e tive a sorte de ser salvo por alguém com uma coragem incrível. Tenho 54 anos, sou casado e tenho dois filhos, uma rapariga e um rapaz. Fui professor do ensino básico da disciplina de trabalhos manuais que depois passou a designar-se Educação Visual. Tive a sorte de me aposentar com 35 anos de serviço. Fui muito feliz no ensino. Sei que, hoje em dia, é muito complicado ser professor. Os meus antigos alunos passam por mim e reconhecem-me. Como professor fui um bom formador. Quando se ensina miúdos dos 10 aos 14 anos nunca se poderia exigir que fossem um Leonardo da Vinci porque as crianças querem jogar à bola e brincar às escondidas. Eu fazia muito teatro, normalmente, com temas sempre relacionados com a parte cívica, a conservação da natureza, ecologia, educação. Valores que fazem falta a uma criança e, muitas vezes, não chega lá por palavras e com o teatro a minha mensagem chegou. Os pais têm que transmitir aos filhos que é necessário respeitar os adultos e crianças. Não há respeito. Não se respeita os colegas, os professores ou os funcionários.
O que surgiu primeiro: o amor pela pintura ou o amor pelo ensino?
Eu comecei a trabalhar aos 16 anos. Trabalhava numa atelier de publicidade. Na escola já tinha algumas bases que vinham do emprego que eu tinha e os professores só completavam. Andava a estudar à noite e a trabalhar de dia. A lei permitia que o patrão me concedesse andar a estudar à noite. E, foi assim que completei o curso de pintura decorativa em Soares dos Reis. Depois, mais tarde, fui para a guerra colonial, entre 1967 e 1969, para a Guiné, mas não devia ter ido porque tinha problemas de visão e audição muito acentuados mas toda a gente tinha que ir. A minha geração foi muito sacrificada com a guerra. O caminho de professor surgiu, acidentalmente, em 1971. Um colega meu, que tinha estudado comigo, disse para concorrer ao ensino pois tinha habilitações. Fui à Escola Soares dos Reis, concorri e fui chamado para dar aulas. Todas as peças que criava era eu que escrevia os texto e pintava os cenários. Enquanto os professores tinham ido embora, eu ficava lá noites a pintar.
Já conta com um longo percurso pelo mundo da arte. Quando surgiu a primeira pintura?
A minha primeira pintura foi aos 15/16 anos quando fui para esse atelier. Eu ia a casa do patrão à noite e ele dava-me umas dicas sobre a pintura. Recordo-me que a minha primeira pintura foi na presença dele e ainda a tenho como recordação. Em 1977, comecei a pintar com muita intensidade e fiz a minha primeira exposição na galeria do Primeiro de Janeiro. Depois em 1994, pintei a Regata do Infante, onde vieram veleiros de todo o mundo fazer uma regata no Rio Douro e a Leixões. Andei a pintar ao vivo os veleiros. O Jornal O Comércio do Porto publicou durante 22 semanas uma imagem das minhas pinturas reproduzidas que as pessoas colecionavam. Em 1998, fui a Lisboa fazer a regata do Vasco da Gama, que foi última regata do século XX. Depois, acidentalmente, em 2000, encontrei a Regata do Pedro Álvares Cabral, no Brasil. Fiz uma exposição no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa, sobre a regata. Fiz um catálogo designado “A Bela aventura”. Eu sou muito associado ao Porto e dizem que sou o pintor da cidade do Porto. O Porto proporciona aos pintores uma cromática.Tenho a particularidade de pintar ao vivo.
Tem uma particularidade de pintar em aguarela. É mais difícil?
Muito difícil. A aguarela tem muitos inconvenientes quando se pinta no local. Não se pode estar a pintar com o sol a bater muito na folha de papel devido à secagem. A secagem não pode ser demasiado brusca. A temperatura e o vento são outros inconvenientes. Uma vez, eu estava a fazer uma pintura junto à Rua General Torres quando veio uma grande rajada de vento e a folha voou, mas consegui recuperar a pintura. Eu nunca utilizei o lápis. Ganhei esse hábito. Essa grande aventura de estar a pintar no local é que me deu um suporte muito grande a nível de concentração e a nível de desenho. Muito mais tarde é que comecei a pegar no lápis para fazer retratos das pessoas.
Recentemente realizou uma exposição sobre o naufrágio do Reijin, na Madalena, a convite de José Carlos Cidade, ex-presidente da Junta de Freguesia e atual presidente da Associação Para a Defesa da Praia da Madalena. Como é que foi vivenciar este acontecimento através da pintura?
Foi algo muito espontâneo. Quando o naufrágio aconteceu, uma pessoa virou-se para mim e perguntou-me “Professor, não vai pintar o barco?” E eu disse que aquilo era só chapa. Passou abril, maio, junho e julho. Comecei o observar o barco e foi uma paixão. Andei um ano a pintá-lo. Quando a escola acabava, andava a correr para pintar o barco antes de anoitecer. Foi uma experiência extraordinária. 14 anos depois fiz uma exposição na Junta de Freguesia da Madalena. E, agora, passados 30 anos, a Defesa da Praia da Madalena convidou-me para fazer uma amostra do acontecimento. No dia 26 de abril naufragou na Praia da Madalena um barco com 3 500 automóveis. Eu queria fazer novamente uma outra exposição para que as crianças da escola fiquem sensibilizadas com este acontecimento. Gostava imenso de contar esta história. A tragédia teve um grande impacto ambiental, mas, não teve maior porque houve um grupo de ecologistas franceses que protestaram às autoridades internacionais que entenderam chamar a atenção às autoridades portuguesas para não despejarem os carros no próprio local.
As confrarias são também uma paixão grande. Quando é que começou o caminho?
Tudo começou com a Confraria da Pedra. Uma vez o José Carlos Leitão convidou-me para fazer parte da confraria e eu com muito gosto fiz parte. A minha envolvência nas confrarias deu-me para conhecer pessoas e outras terras. As indumentárias cativaram-me o olhar e eu estava sempre a retratar. Curiosamente, a presidente da Federação da Confrarias, Olga Cavaleiro, convidou-me, um dia, para mostrar esse trabalho que foi feito ao longo dos anos. Fiz uma exposição na Figueira da Foz com o título “O traço das confrarias”, em que além dos desenhos, coloqueis algumas localidades de Portugal, desde o Norte ao Sul. Faço também parte da Confraria das Papas de S. Miguel, em Oliveira de Azeméis.
A literatura faz parte do seu currículo…
Tenho 3 livros que publiquei. O primeiro é o ”Porto nas nossas mãos”, que foi feito com uma poetisa e foi apresentado na Casa do Infante. Mais tarde, elaborei um livro com o Barbosa da Costa, “Sr. da Pedra; um olhar”, em 2007, em que fiz as pinturas e ele redigiu o texto. O último é referente à minha autobiografia chamada “Autenticidades”. Um livro que tem um resumo da minha atividade pictórica desde que comecei a trabalhar até hoje, e, ainda, tem depoimentos de muitos amigos. Um livro é uma partilha.
E qual é a sua inspiração?
Eu pinto tudo. Havia alguém que me dizia que eu era um pintor versátil. Foi no atelier que aprendi as técnicas todas, e depois fui desenvolvendo. Gosto de fazer em pequenos formatos. Vou para a praia, sento-me no banco e pinto. O pianista que não for para o piano tem dificuldade, e na pintura é exatamente a mesma coisa. A parte mental e as mãos, as duas têm que estar ao mesmo nível. O retrato funciona como uma descompressão. É muito interessante eu desenhar por prazer e não por imposição. Eu não vivo da pintura e isso dá-me uma certa independência.
O material que usa para as suas inspirações é muito variado. Como surgiu a ideia de saltar do papel para as pedras e para as cabaças?
As pedras mergulhadas na água parecem estar vivas e eu fui apanhando e melhorando as pedras. Comecei a tirar partido delas. Uma parte é a sua essência e outra parte é criar uma superfície para conseguir pintar. As cabaças foi o meu irmão mais velho que trouxe uma cabaça da Alemanha que tinha um formato muito curioso. A partir daí, comecei a criar cabaças e pintar paisagens. É uma paixão. É preciso ter muita paciência para pintar a cabaça porque demora mais tempo, já que é necessário prepará-la.
Muitos anos de pintura e muitas histórias para contar. Existe alguma peripécia?
A Voz de Azeméis, um jornal regional, levava uma comitiva de Oliveira de Azeméis ao Brasil para fazer um bloco de jornalismo regional e eu fui convidado. Eu queria pintar a Baía e o Prefeito da região arranjou-me um guia e um táxi para fazer o percurso e pintar. Recordo-me de estar a pintar e atrás de mim alguém dizer “Quem sabe sabe, quem não sabe bate palmas” e fiquei surpreendido. Quando estou a pintar abstraio-me de tudo. Há algum tempo, falei com alguém que era assessor do Presidente da República e disse que gostava de lhe oferecer uma pintura e essa pessoa explicou-me como devia fazer. Assim fiz. Mandei uma aquarela da cidade do Porto. O tempo foi passando mas não me preocupei. Um dia vou ao correio e vejo uma carta com selo da presidência e um cartãozinho do Presidente “Bem haja amigo! Os meus parabéns.” Foi uma coisa tão singela mas tão bonita. Fiquei sensibilizado. Nunca imaginaria que ele tivesse tempo para deixar uma mensagem de agradecimento.
Falando em política, a política e a cultura andam de mãos dadas?
No pós 25 de abril, nem toda a a gente que ficava nos pelouros da cultura era por sabedoria, mas sim por conveniência política. Isso marcou muito as gerações e, infelizmente, é isso que acontece hoje. Há uma parceria por conveniência. Tu és conhecido daquela pessoa, por isso, tens benefícios. Perdem-se muitos valores. Não são divulgados artistas por desconhecimento. Isso é terrível. Como nunca estive ligado a nenhum partido político, dá-me para observar estas coisas. Às vezes parece que os políticos querem que nós mendiguemos.
Como vê o mandato de Eduardo Vítor Rodrigues?
O Eduardo Vítor Rodrigues foi meu aluno na escola. Fez teatro comigo numa peça chamada Incendiário (risos). Eu tenho uma boa relação com ele mas nunca a aproveitei. Respeitamo-nos. Acho que ele está a fazer um trabalho extraordinário aqui em Gaia. É um elemento muito válido, inteligente, e trabalhador. A política é como a vida, vamos aperfeiçoando as coisas. Não basta ser só um bom político, também tem que ter uma boa equipa à volta.
Pensando no futuro, quais os próximos projetos e ambições?
Neste momento, só tenho um objetivo. Vou fazer, em 2020, 40 anos artísticos. Não sei se vou fazer uma exposição sobre a retrospetiva, se todos os anos. Ainda estou a amadurecer a ideia. Queria fazer a exposição do Reijin outra vez. Eu gostava muito de ir aos Açores pintar. Estou ansioso. Acho que será muito bonito. A paisagem deve ser uma experiência extraordinária. Ainda sinto que tenho muito para dar.