“É TRISTE O AUDITÓRIO DE GAIA TER UMA PROGRAMAÇÃO PAUPÉRRIMA”

Nesta nossa ronda pelos criadores teatrais com ligação a Gaia, para uma reflexão sobre o estado do teatro profissional neste concelho da margem esquerda do rio Douro, vamos hoje ao encontro do ator Fábio Alves. Nasceu em Vila Nova de Gaia, em 1988, e é licenciado em interpretação pela Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo, na sequência de ter concluído o curso de formação de atores da Escola Profissional Balleteatro. A sua estreia como profissional ocorreu no palco do Centro Cultural e Social do Olival, ao serviço do Teatro Experimental do Porto, em 2006.

Passou depois por vários teatros do país, como os míticos Sá da Bandeira (Porto) e Trindade (Lisboa), entre muitos outros, tendo participado até hoje em mais de 30 produções teatrais. A música, a televisão e o cinema fazem também parte do seu universo criativo: foi vocalista da banda Soul Approach; integrou o elenco das telenovelas “Deite-te Quase Tudo” (TVI) e “Vidas Opostas” (SIC); protagonizou os episódios piloto das séries “Nata Ataca” (projeto da Academia RTP) e “Phenomena” (produção da Jelly Pix Entertainnement); e, nos domínios da sétima arte, participou numa dezena e meia de curtas e médias metragens. Já fez rádio, dá aulas de interpretação, movimento e voz, e ainda tem tempo para praticar algumas modalidades desportivas. Mas há mais para saber sobre este jovem ator gaiense:

 

Que recordações guardas da tua estreia como ator profissional no Teatro Experimental do Porto, do processo criativo que a precedeu e da reação do público?

Guardo as melhores recordações desse período. E embora a estreia tenha sido pelas mãos do Teatro Experimental do Porto [TEP], que tinha no Auditório Municipal de Gaia a sua casa, foi no Centro Cultural e Social de Olival que me estreei com sessões para escolas do “Felizmente há Luar”. Só pisei o palco do Auditório Municipal dois anos depois com um dos maiores desafios que o Mestre Norberto Barroca me propôs: Protagonizar “Eclipse Total” no papel de Rimbaud. Mas voltando à estreia… Estávamos no final de janeiro de 2006 e por indicação de outro mestre, o Roberto Merino, fui chamado pelo Norberto Barroca para integrar o elenco de “Felizmente há Luar”. E como estava no último ano do curso profissional de teatro do Balleteatro, este trabalho foi o meu estágio curricular. Como tal não havia lugar a cachet, apenas a uma avaliação que, diga-se, foi muito boa. No entanto, o TEP dirigido na altura pelo Júlio Gago fez questão de me pagar cachet (só por aqui já se percebe como os atores eram bem tratados e valorizados). Foi então o meu primeiro ordenado, o meu primeiro recibo verde como ator. Ainda hoje o guardo religiosamente num velho livro de recibos verdes.

 

Que memórias tens do primeiro contacto com os atores que integravam o elenco do espetáculo e com os demais criadores e pessoal técnico-artístico do TEP?

Recordo-me de nos primeiros ensaios de mesa chegar e ficar deslumbrado com os atores com anos e anos de palco, com o seu saber que gostavam de passar aos “benjamins” e sobretudo com as imensas histórias que tinham para contar de dentro e de fora dos palcos. O ambiente era muito familiar e de imediato me senti acolhido. Tinha um grande respeito pelos atores mais velhos que depressa viraram companheiros e esses tinham por mim um certo sentimento de proteção. Sentia-me em casa. “Felizmente há Luar” era um espetáculo que há anos seguidos se fazia no Auditório Municipal sempre com a mesma encenação (e sempre com imenso público), por isso não posso dizer que o processo tenha sido muito exigente, mas na altura para mim tudo era novidade e eu era extremamente observador, de tal maneira que se fosse preciso substituir alguém de um dia para o outro eu estava preparado, como chegou a acontecer. E este sentido de observação aliado à minha atenção, disciplina e respeito pelo processo de trabalho e pelos colegas (juntamente com algum talento que já na altura deveria ter) foram o passaporte para dois anos depois o Norberto Barroca me convidar para protagonizar “Eclipse Total” no papel de Rimbaud.

 

Esse convite foi uma grande prova de confiança de Norberto Barroca no teu talento e sentido de responsabilidade, que decerto jamais esquecerás…

Foi o meu primeiro grande papel e este sim foi um trabalho muito exigente, mas concluído com sucesso. Pelo menos a julgar pela opinião do público e pelas críticas. Aqui talvez tenha sentido mais o calor do público gaiense do que em qualquer outro projeto, por vários motivos. O filme inspirado na mesma obra tinha sido um sucesso com o DiCaprio no principal papel, o espetáculo foi alvo de uma excelente divulgação e era também baseado numa história verídica e biográfica, uma vez que abordava as vidas e obras de Rimbaud e Verlaine. Todos estes motivos fizeram com que as sessões tivessem sempre uma casa muito preenchida (quando não estava cheia). E este público era exigente, uma vez que por lá passaram muitos aficionados por Rimbaud e sua poesia, e por isso a minha responsabilidade de não defraudar as suas expectativas era grande. Percebi que a missão estava a ser um sucesso quando esse mesmo público esperava no átrio depois da sessão para me felicitar e trocar algumas palavras.

 

A reação do público e a repercussão que esse trabalho teve na imprensa foi a prova de que estavas no caminho certo. E funcionou como estímulo para o futuro…

Foi muito gratificante.Foi também a fase das primeiras entrevistas… Muita nostalgia quando recordo este período… e saudade daqueles que não só foram grandes atores como excelentes companheiros e que já cá não estão. Para esses, com quem muito aprendi, deixo aqui a minha homenagem. O Norberto, o Adriano, o José Brás….E quando falo no José Brás é impossível não lembrar a forma castiça como fazia flexões enquanto aquecia para mais uma sessão de “Felizmente há luar”, mas atenção, com oitenta e alguns anos!!… Ah pois é! E muitas mais histórias haveria para contar…Termino só com mais duas (sem querer abusar)…Recordo o dia em que me tornei “maior de idade”. Era dia de espetáculo no Centro Cultural e Social do Olival e o TEP tinha decidido fazer-me uma surpresa comprando um bolo para celebrar. Eis que chego e ao atravessar o átrio oiço alguém chegar atrás de mim e olhando para trás vejo o Júlio Gago a chegar com um bolo na mão. Ele ao entrar no átrio e deparando-se comigo ficou de tal maneira atrapalhado e foi tal a sua preocupação em tentar esconder-se a si e ao bolo que naquele “vira para aqui, vira para acolá” quase que não havia bolo… Outro gesto que guardo com carinho.

 

São esses gestos e momentos de cumplicidade vividos nos bastidores e no palco com os camaradas de profissão que reforçam a nossa paixão pelo teatro…

Também já fiquei à rasca no palco do Auditório Municipal de Gaia numa das sessões de “Eclipse Total”, é verdade… Numa cena muito tensa entre o Rimbaud e o Verlaine em que este, embriagado, se despede do Rimbaud dando-lhe um tiro, que por acaso lhe acertaria na mão, a arma não funcionou… Os fulminantes tinham apanhado com líquido e a arma não disparou. Neste impasse e uma vez que as cenas seguintes estavam diretamente ligadas a este acontecimento só restou uma solução: partir para cima do meu parceiro numa cena de pancadaria improvisada no momento. É com carinho que guardo este período no meu baú das memórias.

 

Como vês a atual situação do Auditório Municipal de Gaia, há muito sem companhia residente, com uma programação irregular e escassa oferta teatral?

É o chamado desperdício. É triste ver um equipamento com as condições deste auditório completamente desaproveitado e com uma programação pontual e paupérrima. Então no que ao teatro diz respeito nem se fala, quase não existe. E uma vez que não há uma companhia residente, o espaço podia ser colocado à disposição de grupos de teatro amador, que esses sim, em Gaia existem em grande número. Agora não nego o meu descontentamento por não existir uma companhia de teatro profissional em Gaia que faça do Auditório Municipal a sua casa, como em tempos o foi para o Teatro Experimental do Porto. Foram bons e belos anos esses em que a cidade respirava cultura e teatro. Não escondo que o facto de o TEP ter deixado a cidade após ter mudado a sua direção artística me deixou triste e deixou a cidade culturalmente mais pobre, não tenho dúvidas disso. Mas também não condeno esse facto até porque o TEP nasceu na cidade do Porto, a mesma que lhe dá o nome, só que na verdade a minha geração cresceu habituada a ver o TEP como a companhia da cidade de Gaia, daí sentir muito essa “retirada”. O problema surge quando se cultiva a ideia de que o teatro só pode viver nas grandes cidades, como se de algo elitista e cosmopolita se tratasse, dando a entender que nas periferias não há condições para que o teatro sobreviva e que não há público, o que muitas vezes não é verdade e o teatro não pode nem deve ser elitizado. É certo que tem de haver um entendimento entre as companhias e as autarquias para a ocupação dos espaços municipais e aí colocam-se entraves políticos e burocráticos tanto de um lado como de outro. Tem de existir uma cooperação e embora às vezes seja difícil é possível. Há casos de sucesso em localidades alentejanas, por exemplo, em que as companhias se instalam em vilas pequenas e rurais, têm uma grande proximidade com a comunidade e têm público e sucesso. Podes dizer-me que são contextos diferentes, é certo, mas servem de exemplo. É certo que nunca seria possível surgir uma companhia por cada auditório e cineteatro que existem no país, mas hoje parece que uma companhia para ser credível não basta apresentar um bom trabalho, tem de se instalar na grande cidade. Estar na grande cidade é que é “in”. Agora pensando em trazer o teatro profissional até Gaia novamente acho que a autarquia deveria apostar, assim que esta situação pandémica o permitir, em fazer acolhimentos no Auditório, convidando companhias de todo o país para apresentarem os seus espetáculos na cidade promovendo dessa forma uma boa agenda cultural.

 

Na tua opinião, até que ponto a concertação de estratégias entre o teatro amador e o profissional pode propiciar o enriquecimento da oferta teatral de Gaia?

Acho que embora falemos de teatro em ambos os casos, o teatro profissional e o teatro amador são coisas distintas, até porque desde logo o seu compromisso e o objetivo a que se propõem são diferentes, embora ambos completamente válidos e com espaço para viverem lado a lado numa cidade como Gaia. E ambos são necessários desde logo para todos os envolvidos como para o público. Gaia sempre foi orgulhosamente uma cidade com uma enorme tradição em teatro amador e com muitos grupos de teatro que para além de inúmeros anos de vida, sempre deram grandes provas da sua competência e da qualidade dos seus espetáculos. E seria interessante ver os equipamentos culturais da cidade serem partilhados por uma companhia profissional e por grupos amadores. Seria possível, enriquecedor, movimentaria muitos agentes culturais e estimularia diversos tipos de público. E quando falo em equipamentos municipais falo não só do Auditório Municipal, mas também do Cineteatro Eduardo Brazão, por exemplo, mais um belo espaço e equipado. Poder-se-ia aproveitar o conhecimento técnico e a experiência dos elementos de uma companhia profissional para formar e melhor munir de ferramentas técnicas os grupos de teatro amador, desde logo dando formação aos seus atores e técnicos. Seria uma ótima forma de criar sinergias e um envolvimento entre os dois mundos do teatro, o amador e o profissional, e assim os dois caminharem na mesma direção: o enriquecimento teatral da cidade.

 

A terminar, fala-me de ti: quais são os projetos em que estás neste momento envolvido e quais são os teus sonhos ou desejos que ainda estão por realizar?

Quanto a mim e apesar da situação complicada que se vive, não só a nível sanitário, mas também económico e social, não me posso queixar do ano anterior e este ano também arrancou muito bem. Acredito que seja um bom prenúncio. No mês de janeiro tive a oportunidade de protagonizar uma média-metragem que está agora em fase de pós-produção e à partida estará finalizada em meados deste ano. Portanto acredito que “Dilúvio” de Eduardo Cruz no próximo ano estará disponível para o público. Aproveitei também estes tempos de incerteza para voltar a pegar em trabalhos de escrita, projetos meus pensados para ficção e que tinha na gaveta, e claro, o desporto, nomeadamente o pugilismo. Algo que sempre gostei e que agora aproveitei para me dedicar de forma mais séria e intensa. Mas o grande papel, o mais importante da minha vida e no qual estarei bastante focado acontecerá também ainda este ano e será o de pai…. Era um dos desejos que estava por realizar e vai concretizar-se agora.